07 Mai 2024
No seu novo livro, o historiador Gary Gerstle discute o processo de nascimento, construção e domínio daquilo que chama de ordem política neoliberal.
A reportagem é de Andrés Villena Oliver, publicada por El Salto, 04-05-2024. A tradução é do Cepat.
A confusão é, atualmente, a mensagem. A mistura de ideias, slogans, imagens e vídeos chamativos marca a agenda mental num século XXI que estava chamado a ser o da libertação dos seres humanos. Por esta razão, qualquer análise política ou social parece um exercício que procura às cegas vilões e culpados quando as causas estão fora do nosso alcance. Muitos de nós usamos o termo “neoliberalismo” para identificar o responsável último pela sucessão de crises que nos rodeiam, pela nossa infelicidade, frustrações e medos íntimos. Mas dedicamos menos tempo para pensar por que e como este conseguiu ter sucesso.
O historiador Gary Gerstle, professor emérito da universidade estadunidense de Cambridge, discute em seu novo livro Auge y caída del orden neoliberal. La historia del mundo en la era del libre mercado (Ascensão e queda da ordem neoliberal. A história do mundo na era do mercado livre) [Península, 2023] o processo de nascimento, construção e domínio daquilo que chama de ordem política neoliberal. Hegemônico depois dos anos oitenta e triunfante nos anos noventa, o neoliberalismo já está murchinho, mas carece de sucessor. Parafraseando o pensador marxista italiano Antonio Gramsci, “o velho mundo agoniza. O novo tarda a aparecer. E nesse claro-escuro surgem os monstros”.
Já estamos fartos da monstruosidade política. Figuras como o ainda ex-presidente Donald Trump, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, o golpista por vocação Jair Bolsonaro e os populistas vernaculares Isabel Díaz Ayuso e Santiago Abascal poderiam ser exemplos deste difícil e estreito processo de transição. “Não sabemos o que está por vir”, diz Gerstle, que dedicou ao estudo do neoliberalismo mais de 400 páginas de um ensaio tão entretido quanto necessário para entender o que os Estados Unidos e sua grande esfera de influência ocidental viveram desde a crise da década de 1970.
Gerstle parte “de uma definição simples de neoliberalismo à qual acrescenta sucessivas camadas de complexidade”. O neoliberalismo é “uma filosofia que procura libertar o capitalismo de todos os tipos de restrições, especialmente as restrições governamentais, com a convicção de que o maior crescimento e desenvolvimento econômico ocorrerá quando esse sistema for libertado do Estado regulador”.
Como principal ferramenta para aproximar o leitor a esta complexa realidade, Gerstle refere-se ao neoliberalismo como uma ordem política, ou seja, uma forma de hegemonia que consegue se entronizar quando os seus oponentes aceitam os seus princípios centrais. No caso dos Estados Unidos – país em torno do qual gira a análise e o panorama histórico –, a ordem neoliberal teria sido definitivamente imposta com os governos desregulamentadores de Bill Clinton, de forma similar a como o general Eisenhower teria admitido na década de 1950 os principais postulados da ordem anterior, a do New Deal.
Mas para compreender a ordem neoliberal é necessário prestar atenção ao comunismo. “Para muitos estudiosos, é como se a Guerra Fria tivesse sequer existido. O colapso da URSS e o ideal do comunismo colocaram a esquerda numa crise da qual ainda não se recuperou, pelo menos nos EUA. Para a visão convencional, o anticomunismo teria limitado o papel da política progressista durante essas décadas. Mas esta visão generalizada não é correta: quando foi que a desigualdade atingiu o seu nível mais baixo na sociedade estadunidense? No auge da guerra fria; quando o Estado de bem-estar social foi mais robusto? Durante a guerra fria; e quando o movimento sindical foi o mais organizado? No mesmo período. Tudo isto deveria levar-nos a pensar de forma diferente sobre o efeito do anticomunismo. Um capitalismo tão agressivo como o capitalismo estadunidense não teria feito as concessões sociais que fez se esta ameaça não tivesse existido”.
“Para entender melhor tudo isso temos que levar em conta dois aspectos. Primeiro, nas décadas de 1940 e 1950 não estava totalmente claro qual sistema poderia oferecer uma vida melhor. No âmbito desta questão, esse debate tão maravilhoso quanto estúpido aconteceu em 1959. O presidente Kruschev e o vice-presidente Nixon tiveram uma discussão em uma cozinha estadunidense que os russos tinham trazido dos Estados Unidos; nesse “debate de cozinha” discutiu-se sobre qual sistema poderia produzir e distribuir os melhores bens ao maior número de pessoas possível. Nos anos 1980, esse debate teria sido inimaginável”.
“Em segundo lugar, a URSS era então vista como uma profunda ameaça porque representava uma alternativa, mas também devido ao crédito dado a uma teoria sobre o totalitarismo segundo a qual o comunismo era um tipo de ditadura que, uma vez estabelecida, nunca mais poderia ser erradicado. Portanto, foi necessário enfrentá-lo tanto nos EUA como no exterior. E também era preciso fazer coisas para que os seus cidadãos não se sentissem atraídos por esse sistema. O comunismo – que devo dizer que me parece uma forma indefensável de tirania – representou então uma força compensatória que levou o capitalismo a fazer múltiplas concessões; hoje não temos nada parecido”.
Na história do neoliberalismo, que poderia abranger desde os seus primórdios, num encontro realizado em Paris em 1938 – o chamado Colóquio Lippmann –, até a sua primeira grande doença após o outono de 2008, houve inúmeras etapas, interpretações e correntes. Trata-se de um fenômeno heterogêneo que pode ter servido às elites para restaurar o seu poder de classe, mas que também atingiu as profundezas da alma e da imaginação popular. E é precisamente isto que nunca deve ser esquecido.
“O neoliberalismo tem sido frequentemente visto como uma técnica utilizada pelas elites para se tornarem mais ricas. Eu não nego isso. Mas nos EUA, o neoliberalismo também teve uma forte base popular, porque oferecia aos cidadãos um novo projeto para desfrutar de uma vida melhor: essa base era a liberdade individual. Isto estava enraizado na revolução norte-americana e na fundação dos Estados Unidos, que foi assinada com a ideia de libertar os cidadãos de qualquer tipo de tirania ou governo que pudesse se tornar uma fonte de opressão. Entendia-se que tal opressão poderia restringir a individualidade e impedir que os cidadãos desfrutassem de todo o seu potencial”.
Um potencial humano que, para muitos, não apenas para a romancista ultraliberal Ayn Rand – autora do roteiro do filme El Manantial (1949) –, se viu restringido pelas políticas bem-intencionadas do pós-guerra, patrocinadas graças à mobilização operária e sindical que respondia ao grande trauma do desemprego, da miséria e da desigualdade. “Durante o New Deal houve um nível de igualdade social sem precedentes; mas também uma maior burocratização, com um Estado mais presente e centralizado, e com o crescimento das instituições que com ele colaboram, como as corporações privadas e os sindicatos”.
“Quando os jovens estadunidenses tentam recuperar a sensibilidade esquerdista na década de 1960, começam com uma crítica ao capitalismo, claro, mas também questionam o governo como um aliado das grandes empresas. Era comum afirmar, sob esses pontos de vista, que o governo havia se tornado grande demais ou que havia sido capturado pelas grandes corporações”.
“Um dos primeiros lugares onde esse movimento explode é na Califórnia, na Universidade de Berkeley, onde, em 1964, houve um movimento a favor da liberdade de expressão que tinha o seguinte lema: ‘Não vão me dobrar, enrolar ou cortar’. Era uma referência à advertência que aparecia em todas as placas de computador IBM, necessários para que os programas funcionassem em cada uma de suas etapas: ‘Não dobrar, enrolar ou cortar’, diziam. Os estudantes de Berkeley sentiam-se assim como pacotes intelectuais compostos por milhares de cartões da IBM; por sua vez, as universidades, que supostamente deveriam ser lugares para abrir a mente, refletiam a padronização do cidadão por grandes instituições burocratizadas”.
“Parte dessa nova esquerda procurou libertar os indivíduos do fardo dessas grandes organizações, o que coincidiu com o impulso de uma nova direita que simplesmente procurava acabar com a ordem do New Deal. Não digo que a nova esquerda tentou regenerar o capitalismo de livre mercado, mas contribuiu para isso. Steve Jobs, por exemplo, era um dos hippies mais radicais da sua universidade: passou boa parte dos seus anos de universidade abraçando árvores, não indo às aulas, vivendo em comunas, sendo vegetariano... E parte da sua motivação para criar o computador pessoal foi libertar a revolução tecnológica das grandes empresas como a IBM do controle de cima para baixo”.
“O mais importante é que se quisermos realmente compreender a popularidade do neoliberalismo, temos de compreender como é que ele levou muitas pessoas de diferentes partes do espectro político a acreditarem na promessa de mais liberdade para moldar as suas vidas”.
Naqueles momentos cruciais do século XX houve uma crise de superprodução e de abastecimento de combustíveis. As habituais soluções keynesianas feneceram diante do aumento simultâneo da inflação e do desemprego. “As ordens políticas não nascem da noite para o dia. São grandes projetos que surgem em momentos de crise profunda, quando os projetos anteriormente existentes não podem ser reformados. Isto ocorreu na década de setenta, durante uma crise econômica não tão grave quanto a Grande Depressão, mas que envolveu problemas de desemprego, pobreza, perda de poder das corporações estadunidenses no exterior, etc. É então que um conjunto de ideias que até então estavam na periferia tornou-se central. Estas ideias, as neoliberais, não eram precisamente novas: vinham da década de 1940”.
“Digo isso a alguns representantes da esquerda: não esperem que a sua vitória venha de um dia para o outro; é preciso também respeitar os neoliberais, por mais que não gostemos deles: eles fizeram a sua longa marcha, uma viagem de quase trinta anos através do deserto. As ideias, repito, não eram novas; a novidade foi a oportunidade que surgiu naqueles anos”.
Fracassadas as promessas de prosperidade após as crises contínuas desde 2008, permanecem as ruínas do outrora bem-sucedido projeto humano que anunciou tais soluções mágicas. Líderes messiânicos conservados no ódio mediático e viciados em apontar bodes expiatórios surfam sobre estas soluções. O neoliberalismo, talvez, esteja morto, mas pode ser visto muito bem à noite no céu. Como afirma o professor Gerstle, esta noite lança tanto luzes como sombras: iniciativas interessantes que se alternam com o medo do possível regresso do etnonacionalista Donald Trump; as reformas empreendidas por Joe Biden foram ambiciosas e contaram como nunca em décadas com o apoio da esquerda, mas carecem de suficiente apoio parlamentar... E permanecem resíduos radioativos, como um apego às redes sociais que é transversal à ideologia e que leva o ser humano a se tornar uma criatura perfeitamente mensurável e controlável.
“Isso prevalece hoje tanto na esquerda como na direita: todos contamos tudo ao longo do tempo e usamos a contagem como uma medida de nós mesmos. Contamos quantos passos damos, quantas calorias ingerimos, quantos ‘likes’, quantos exemplares do meu livro... Esta contagem incessante é uma expressão do impulso neoliberal. Tem que haver uma rebelião. Aqui, o slogan dessa nova esquerda é mais uma vez relevante: os adolescentes, especialmente, sentem-se agora excluídos ou mutilados quando não têm curtidas ou seguidores suficientes. Por isso, chegará um momento em que alguém dirá que não quer ser analisado, concebido ou aceito em termos quantitativos. E essa rebelião vai acontecer. Mas gostaria de insistir que tudo o que os neoliberais suportaram entre as décadas de 1940 e 1970, aquela longa marcha, seja levado em conta”.
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Gary Gerstle: “O neoliberalismo convenceu pessoas de diferentes ideologias de que seriam mais livres” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU