29 Novembro 2019
Ece Temelkuran (Izmir, 1973) é escritora e jornalista. Seus artigos aparecem em meios de comunicação como The Guardian, The New York Times, Le Monde Diplomatique, New Statesman, Frankfurter Allgemeine Zeitung e Der Spiegel. Em seu último livro, Como perder um país. Os sete passos da democracia à ditadura (Temas e Debates, 2019), parte da experiência turca (precisou se exilar do país por suas colunas contra Erdogan) para explicar o populismo de direita que triunfa no Ocidente.
A entrevista é de Ricardo Dudda, publicada por Letras Libres, 27-11-2019. A tradução é do Cepat.
Em seu livro, menciona que os populistas chegaram para preencher um vazio deixado pelo neoliberalismo nos anos 1980. A que se refere?
É impossível falar sobre populismo de direita sem falar do neoliberalismo. É o filho bastardo do neoliberalismo. O neoliberalismo fragilizou a parte fundamental da democracia, que é a justiça social. A democracia sem justiça social é uma concha vazia: um processo repetitivo e protocolar e nada mais. É natural que as pessoas tenham perdido a fé nas instituições democráticas, especialmente após 2003, quando muitas pessoas foram às ruas para protestar contra a invasão do Iraque.
Até mesmo as pessoas mais progressistas, que se presume que devem proteger a democracia, perderam a fé nas instituições e no processo democrático. Enquanto isso, entramos no século XXI, existem novas ferramentas de comunicação que mudam tudo, a compreensão da representação política. Apesar disso, continuamos usando as ferramentas de representação do século XX. Isso criou um vazio. Podemos citar Gramsci, aqui: “O velho mundo morre. O novo demora para surgir.
O processo foi igual na Turquia?
Claro. Se você quer entender qualquer movimento populista hoje, deve ir aos anos 1980, durante a hegemonia do neoliberalismo. É preciso ir a Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que foram os primeiros políticos que plantaram a semente do populismo de direita. Foram os que disseram que a humanidade não poderia fazer melhor do que estava fazendo. E isso criou impotência política. E era uma mentira.
A injustiça social e a desigualdade cresceram muito. É claro que podemos fazer melhor. Promoveram a ideia de que não se deve pensar em política, é tediosa e muito complicada: não precisam ser sujeitos políticos, podem ser objetos políticos, já fazemos política por vocês. E quando alguém diz algo assim, provavelmente está fazendo algo contra seus interesses. Isso aconteceu globalmente.
Na Turquia, em 1980, houve um golpe que mudou o sistema econômico do país. A Turquia se tornou uma economia de mercado e foram impostos valores associados a uma economia de mercado, através da tortura, assassinatos, prisão ... O direito de associação e a liberdade de expressão foram restringidos. Nesse sentido, é lógico ver as semelhanças. Embora cada país tenha sua própria história e um passado complicado, essa tendência é global.
Nos últimos anos, fala-se de uma certa complacência liberal em relação ao populismo, com figuras do establishment que veem o populismo como um fenômeno natural e não como consequência de políticas errôneas.
Acreditam que restaurando um pouco as coisas, tudo ficará bem novamente, mas é impossível. Basta ver como a União Europeia começou, recentemente, a falar sobre o “modo de vida europeu”. Ou os Estados Unidos, onde todo o establishment precisou se unir para destituir Trump. Um homem que parecia um palhaço, de quem ríamos no início, virou completamente o establishment. O mesmo com Nigel Farage. Riram dele, mas moldou todo o processo do Brexit. Pode-se perceber o quanto o establishment é frágil, vendo que tipo de gente foi capaz de enfrentá-lo.
Critica a ideia de tentar compreender as razões do outro lado, dos trumpistas e partidários do Brexit. Compara isso com uma terapia de casal.
Está sendo produzida uma despolitização da política. O populismo de direita afirma estar acima da política. Esse discurso de que a política é algo sujo se popularizou nos anos 1980. Sendo assim, essa atitude ainda tem raízes. Por isso, os meios de comunicação oferecem uma espécie de terapia familiar para convencer o eleitor populista. Conversemos com eles, tenhamos um diálogo. Mas, eles respondem que não querem diálogo.
É um problema político e também filosófico. De repente, estamos discutindo se os direitos humanos são importantes. Se a vida é algo sagrado (dos refugiados, por exemplo) ou a razão pela qual preferimos a democracia a outros regimes. Estamos indo para o básico. Você não pode resolver isso com um pequeno diálogo com os spin doctors dos populistas de direita. E o mito do consenso foi criado com o neoliberalismo. Disseram-nos que um país que tivesse um McDonald's não poderia ter uma guerra. Havia muito medo do antagonismo e do debate.
Há um debate sobre como definir não apenas o populismo de direita, mas regimes como o da Rússia e Turquia: autoritarismo, totalitarismo, democracias iliberais, inclusive, menciona-se o fascismo.
Erdogan é uma mistura desses rótulos, mas, ao final, o que importa é que exige total obediência. Para além dos rótulos, é preciso observar o corpo nu ou esqueleto do regime. Esses regimes exigem obediência total, um povo homogêneo e constroem seguidores do partido. Erdogan é um político brilhante, como Putin. (Às vezes, penso que são todos a mesma pessoa com rostos diferentes.) As referências, divisões e hostilidades que promovem são as mesmas. Dá na mesma o modo como agem: estados mafiosos, totalitarismos, autoritarismos, exercem violência política. É violência e obediência. É bullying que usa a violência política para criar um Estado de partido único.
No livro, menciona que as mulheres são a única esperança contra o populismo. Contudo, existem líderes populistas femininas (na França, Áustria, Polônia) e, além disso, você menciona as mulheres do partido de Erdogan e seu enorme poder.
Sim, um exemplo é Priti Patel, a ministra do Interior britânica, que tem um discurso migratório muito duro. Nós, mulheres, também temos o direito de ser malvadas. Quando um regime transforma cidadãos em personagens cômicos, estereotipados, com apenas duas dimensões, nada muda se são mulheres ou homens.
Quando digo que a única esperança são as mulheres jovens, refiro-me a mulheres que atuam como canários na mina, que alertam, por primeiro, sobre regimes que exigem obediência absoluta.
Quando comecei este livro, não havia uma Greta Thunberg. Não havia um movimento global contra a mudança climática. É algo que continuará acontecendo. A próxima geração, especialmente as mulheres, está consciente que desta vez está lutando por sua vida. Por isso, não caio no essencialismo, mas vejo um grupo de pessoas que luta por sua vida. Não que eu veja esperança, mas, sim, inspiração.
Por outro lado, não há projeto de engenharia social que não utilize as mulheres como manequins de suas ideias políticas. Ao longo da história moderna, pediu-se às mulheres que sejam as melhores modelos que podem ser moldados, mais de uma vez, que sejam a cidadã ideal, ao menos por fora.
Considera que a esquerda ocidental ignorou a luta das mulheres no Oriente Médio e no Irã?
Há um beco sem saída nessa área. Ou você é islamofóbico ou acredita no Estado Islâmico. Entendo o dilema da esquerda ocidental. O que não entendo é a falta de resposta filosófica e a relutância em falar sobre isso e discutir o que é o véu e o que é o Islã. É verdade que os progressistas prejudicaram a luta das mulheres contra o islã conservador. É um assunto político. Não deveria nos assustar falar sobre religião na esfera política. Se não falarmos sobre isso, voltamos à Idade Média.
Estamos em uma época em que esse debate produz hostilidades muito perigosas. Há pessoas que são capazes de matar uma mulher apenas por utilizar o véu. Temos que encontrar uma maneira de falar sobre isso, ao mesmo tempo em que enfrentamos várias outras crises.
Você tem esperança de uma mudança na Turquia? Nas eleições locais, houve importantes vitórias da oposição (em Istambul, Ancara, Esmirna).
Essas vitórias locais deveriam ser muito importantes para os países europeus. Há muitos países que estão começando a ver a face do populismo de direita. Nós, turcos, sabemos muito. Não apenas sabemos como tais movimentos são formados, mas também o que fazer para vencê-los. Nessas três grandes cidades, os candidatos desenvolveram campanhas muito interessantes. Seu relato político se baseava, e penso que posso chamá-lo assim, em “amor radical”. Não importa o que fizeram conosco, prometemos não nos vingar. Queremos viver em paz, estamos cansados dessa polarização política. Vamos nos unir e esquecer a raiva e a hostilidade. É uma posição política muito perigosa.
A raiva e a hostilidade deixam as pessoas exaustas. Queremos viver em paz, física e emocionalmente. Os eleitores desses candidatos escolheram a paz social, não simplesmente um partido da oposição. Penso que isso pode ser inspirador para os partidos antipopulistas na Europa.
A oposição ao populismo costuma vir das grandes cidades. Causa-lhe preocupação a distância entre campo e cidade? Cidades cosmopolitas versus zonas rurais que votam em populistas.
Às vezes, essas cidades que separam seu destino do resto do país me parecem esses hotéis onde você fica em regiões de guerra. São como pequenas entidades soberanas. Estão cercados por sacos de areia, milícias e tiros. Penso que as grandes cidades estão tentando proteger a ideia de civilização humana, razoabilidade humana básica e as conquistas da democracia contra a ignorância conservadora e provinciana. O que o populismo faz é organizar massas populistas e cria uma identidade em torno dessa ignorância. As cidades protegem a si mesmas disso. É perigoso, porque a ideia de democracia cria tribos que tentam se proteger.
Outro dia, dizia a um amigo que algum dia teremos que proteger a ciência com armas. Imagine o MIT protegido por milícias. Quando se pensa nessas distopias, não se percebe que isso pode acontecer.
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“É impossível falar do populismo de direita sem falar do neoliberalismo”. Entrevista com Ece Temelkuran - Instituto Humanitas Unisinos - IHU