06 Setembro 2019
Todo o debate sobre ficar ou sair da Igreja Católica em meio à crise dos abusos sexuais é uma forma de Brexit eclesial.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, em artigo publicado em La Croix International, 04-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em seu romance “Um legado de espiões”, John Le Carré pondera sobre a relação entre a Inglaterra e a Europa.
O personagem mais icônico dos seus contos de espionagem, George Smiley, é um inglês que passou a vida espionando os soviéticos. Agora aposentado em um mundo pós-Guerra Fria, ele diz a seu subordinado Peter Guillam:
- “Pois bem, foi tudo pela Inglaterra, então? Houve um tempo, é claro que houve. Mas a Inglaterra de quem? Qual Inglaterra? A Inglaterra sozinha, cidadã do nada? Eu sou europeu, Peter. Se eu tinha uma missão – se eu alguma vez estive ciente de uma missão para além dos nossos negócios com o inimigo, era com a Europa. Se eu fui impiedoso, eu fui impiedoso pela Europa.”
“Um legado de espiões” foi publicado em 2017, apenas um ano após a Grã-Bretanha aprovar um referendo em favor de abandonar a União Europeia. O Brexit agora se tornou um fantasma que assombra a Europa e além.
O prazo para deixar a União Europeia é 31 de outubro, que também é o Dia da Reforma. Essa é mais do que apenas uma coincidência, dada a interpretação histórico-teológica da medida que alguns brexitistas deram.
É muito mais que uma grave situação política. Em vez disso, representa uma escolha gritante entre “sair da União Europeia” ou “ficar”. São duas escolhas diferentes que envolvem visões de mundo variadas.
O Brexit se tornou um sinal dos nossos tempos. Ele foi analisado a partir da perspectiva da economia, do direito constitucional, da diplomacia e da defesa. No entanto, muito poucas pessoas – incluindo lideranças da Igreja – discutiram as repercussões do Brexit a partir do ponto de vista espiritual.
Existe um número incontável de escolhas “sair versus ficar” que enfrentamos todos os dias em um mundo em rápida mudança.
Se não tem a ver com sair ou ficar na União Europeia, tem a ver com o seu trabalho, a sua família, o seu país ou a sua Igreja. Em um mundo feito de diásporas, somos todos potenciais migrantes e exilados – espiritualmente, senão também literalmente.
Todo o debate sobre sair ou ficar na Igreja Católica nos tempos da crise dos abusos sexuais é uma forma de Brexit eclesial.
O recente debate sobre as “opções” dos cristãos norte-americanos é apenas outra maneira de apresentar duas visões contrastantes de “sair versus ficar”. A mais conhecida é a “Opção Bento” de Rod Dreher, que pede que os cristãos saiam das suas igrejas ou paróquias locais e que os católicos tirem seus filhos das escolas paroquiais a fim de salvar suas almas.
As situações e os motivos pelos quais os indivíduos optam por deixar a União Europeia, o seu país ou a sua Igreja são todos diferentes. Mas as questões levantadas por essas decisões são semelhantes.
O que eu espero do futuro? Quem somos “nós”? Quem pertence e quem não pertence? Eu ainda pertenço? É possível construir uma comunidade com quem é ou parece diferente de mim?
Às vezes, não há outra escolha senão sair (e abandonar os outros). Mas muitas vezes a decisão de sair se baseia em ideais empobrecidos: expectativas ilusórias de autossuficiência e uma visão excessivamente romantizada do passado.
Seja o Brexit ou a Opção Bento, não se trata realmente de uma questão de conveniência prática. Na realidade, é algo que se eleva a um nível superior.
A escolha sempre se enquadra em termos morais: “os reais” (britânicos reais ou cristãos reais) versus os ilegítimos ou corruptos. No debate intracatólico sobre o Brexit, as principais vozes que fizeram campanha desde 2016 em favor da saída da União Europeia frequentemente fazem parte do catolicismo neotradicionalista, que se diferencia do resto dos católicos, uma Igreja dentro da Igreja.
A pressão por uma “reforma das reformas” do Concílio Vaticano II (1962-1965), que parece estar na moda entre alguns católicos no Reino Unido, também tem um lado político – um surpreendente entusiasmo pelo Brexit como a realização do sonho das glórias vitorianas.
Um artigo acadêmico publicado no início de 2019 estudou a relação entre os valores e a história compartilhada associada à religião pessoal e ao modo como um eleitor percebe o desempenho da União Europeia no cumprimento dos seus objetivos políticos, assim como a sua operação como uma instituição legítima. O artigo concluiu que “a relação positiva entre o catolicismo e o apoio à integração à União Europeia não é aparente no Reino Unido”.
O Brexit é um sinal dos nossos tempos porque mostra a proliferação de linhas de falha em comparação com um mapa muito mais simples do século XX. O mundo de George Smiley tinha uma única grande cicatriz geopolítica: o Muro de Berlim. Era o teatro de visões de mundo conflitantes, mas elas se encontravam em um ponto específico do mapa.
No mundo de hoje, rompido pela globalização, há muitas cicatrizes geopolíticas no mapa – Lampedusa, Hong Kong, a fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, a fronteira EUA-México, as fronteiras entre o Líbano, Síria e Turquia. Em todos esses casos, há uma história e uma presença particularmente ricas do cristianismo.
Mas também se soma à paisagem moral e geopolítica mais complexa de hoje uma narrativa religiosa excessivamente simplificada que tende a identificar o caráter cristão com a cultura em termos nacionalistas.
Sem dúvida, a Guerra Fria, às vezes, foi simplisticamente descrita como uma grande guerra religiosa entre o bem e o mal, entre os sem Deus e os tementes a Deus.
Mas também havia uma leitura espiritual do conflito do Ocidente com o comunismo, que incluía muitas nuances e avisos sobre o perigo de um tipo de autorretidão no sentido “Deus está do nosso lado”.
Essa leitura mais nuançada não se encontra apenas nos romances de George Carney, de Le Carré, mas também na “Carta a um pastor na República Democrática Alemã” (Alemanha Oriental), de Karl Barth, de 1958, no documento de 1965 das Igrejas luteranas da Alemanha sobre “A situação dos refugiados e as relações do povo alemão com a Europa Oriental”, e na meditação de João Paulo II sobre a falsa ilusão da moral da vitória do capitalismo, em sua encíclica Centesimus annus, de 1991.
As narrativas sobre a atual disrupção global concentraram-se quase exclusivamente nos aspectos econômicos, políticos e de segurança dessa crise de múltiplas frentes.
Sem entrar nas especificidades do debate sobre a União Europeia, a única voz na Igreja Católica que não perdeu de vista o aspecto espiritual do fato de sair e ficar é a do Papa Francisco.
Em seus discursos aos líderes da União Europeia, o papa não repetiu o pedido de seus antecessores de reconhecer as “raízes cristãs” da Europa.
Em vez disso, ele chamou a Igreja para assumir as suas responsabilidades. Em seu discurso de maio de 2016 na entrega do Prêmio Carlos Magno, Francisco disse:
“Só uma Igreja rica em testemunhos poderá trazer de volta a água pura do Evangelho às raízes da Europa.”
A decisão de iniciar o projeto europeu, sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial, também foi um esforço espiritual. Do mesmo modo, a decisão de sair ou ficar também tem uma dimensão espiritual muito mais profunda do que o uso da linguagem bíblica por parte do primeiro-ministro britânico Boris Johnson em favor de sair da União Europeia o mais rápido possível.
A subestimação da dimensão espiritual do “sair versus ficar” – seja na União Europeia, na Igreja ou no que quer que seja – revela quão pouco sabemos ou valorizamos a experiência dos migrantes, apesar do fato de os vermos nas nossas telas (pelo menos) quase diariamente. Porque, dentro do fenômeno da migração, existe um recurso vastamente inexplorado que poderia nos ajudar a entender melhor a espiritualidade do sair e do ficar.
Muitos migrantes não conhecem a Igreja e menos ainda a teologia, mas sabem o que o fato de deixar a sua família e o seu país faz com o seu espírito e o espírito daqueles que ficam.
No entanto, as nossas comunidades cristãs não fizeram quase nada para explorar esse depósito de riquezas espirituais, provavelmente porque isso revelaria tensões e contradições.
Uma delas é que o preço que devemos pagar atualmente por essa situação de deslocamento em massa é apenas uma pequena fração do que acabaremos pagando por futuros movimentos migratórios causados pelas mudanças climáticas.
Os católicos não encontrarão uma resposta simples no Catecismo, nos documentos do Vaticano II, no Compêndio da Doutrina Social católica ou em nenhuma das encíclicas papais para orientar a sua resposta à União Europeia.
Mas, em termos teológicos, a “desproporção fatal entre o sonho e a realidade” significa a divisão entre uma expectativa idealizada e ideológica de glória versus uma teologia mais humilde da encarnação na nossa realidade fragmentada.
As divisões em torno do Brexit e as divisões dentro da Igreja Católica surgem de respostas diferentes para a mesma pergunta: é possível construir uma sociedade fraterna e uma humanidade compartilhada com não crentes e não cristãos, mas também com católicos e cristãos de outros nacionalidades e etnias?
Essa não é uma batalha entre a Igreja e o secularismo, ou uma batalha entre o cristianismo e as outras religiões. Na realidade, é uma crise teológica e espiritual dentro do próprio cristianismo.
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O Brexit como crise espiritual: a Igreja encarnada e a escolha entre ficar e sair. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU