23 Fevereiro 2019
“O magistério global do Papa Francisco, tendo finalmente pensado a reforma da Igreja a partir da reforma do papado (Santa Marta!), de fato, já realizou aquilo que os seus críticos malévolos rejeitam e que os seus críticos benevolentes reclamam. O cisma está agora fora do tempo.”
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 21-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É um momento dramático para a Igreja; filmes, livros e jornais a acusam, velhas histórias e novas denúncias se amontoam, enquanto ela mesma, com a reunião de hoje dos presidentes das Conferências Episcopais em Roma junto com o papa faz uma escolha de campo definitiva contra os abusos sexuais, de consciência e de poder do seu próprio clero, embora em meio aos protestos de alguns purpurados rebeldes.
Mas, por trás dessa fachada, existe outra partida ainda mais séria que está sendo jogada: é a partida daqueles que visam a um cisma na Igreja, uns para destruí-la, outros para separá-la da liderança do Papa Francisco.
Entre os primeiros, estão os oficiantes do pensamento único, que já consideram como incompatível a persistência da pregação evangélica com o esforço final de um mundo sem pensamento forjado e governado pelo dinheiro na sua última forma global de liberalismo selvagem.
Sem saber, quem dá uma notável contribuição a essa frente é a campanha da direita teológica que, em nome da tradição, opõe-se à renovação evangélico “naquela forma” – como pedia o Papa João XXIII – “que os nossos tempos exigem”; a carta do cardeal Müller contra o magistério do Papa Francisco é o exemplo mais recente disso.
Entre os segundos, há uma área progressista e reformista que critica o Papa Francisco a partir “da esquerda”, acusando a sua Igreja de imobilismo, porque até agora faltaram reformas institucionais, como a reforma da Cúria, uma colegialidade avançada, uma verdadeira “democratização”; o exemplo mais recente disso é o artigo de professor de Bérgamo, Marco Marzano, sobre “Francisco e a revolução inexistente”, publicado pelo jornal Il Fatto Quotidiano e também por alguns sites católicos. Ele convidava “os progressistas a tentarem a via da mobilização direta” para denunciar a paralisia “imposta a um bilhão de fiéis católicos por uma elite de homens idosos e celibatários” e “a ameaçar, se persistir o imobilismo absoluto, o abandono da barca e o desembarque em outros territórios eclesiais, mais sensíveis e interessados em uma relação menos hostil com a modernidade e os seus valores”, ou seja, “o método de Lutero”. É supérfluo sublinhar aqui a natureza catastrófica de tal posição aparentemente “inovadora”.
Queremos apenas dizer como é equivocada e conservadora a análise de quem concebe a renovação da Igreja apenas como uma mudança de caráter institucional e não como uma regeneração do seu anúncio e da sua identidade mais profunda, o mesmo erro dos tradicionalistas que sempre reduziram a Igreja à sua dimensão juridicista e factual.
Pelo contrário, a Igreja é renovada pela Palavra. A instituição é determinada por ela. E não se pode negar que a grande revolução trazida pelo Papa Francisco foi a da Palavra, até uma nova revelação de Deus, das religiões e da Igreja.
Além disso, isso não acontece apenas na Igreja. Há discursos, talvez não imediatamente seguidos pelos fatos, que mudaram o curso da história.
Pense-se no discurso de Jesus na sinagoga de Nazaré, que introduziu uma nova hermenêutica seletiva do Antigo Testamento, separou a misericórdia de Deus da sua vingança e introduziu uma leitura não sionista, isto é, não nacionalista das Escrituras hebraicas.
Pense-se no discurso de Paulo no Areópago de Atenas, que entregou “o Deus desconhecido” às religiões e às culturas de todos os povos, sem reivindicar a sua exclusividade a uma única tradição.
Pense-se no discurso de Gregório Magno aos fiéis de Roma, dilacerados pelos lombardos de Agilolfo: “Perecido o povo, desaparecidos os poderosos, ausente o Senado, a cidade vazia e em chamas”, mas o papa olha para o mundo novo que começa, para a ascensão dos povos novos e funda a Europa.
E, chegando a tempos mais recentes, pense-se no discurso de Luigi Sturzo em 1905, em Caltagirone, que mudou a identidade dos católicos italianos, tornando-os não mais súditos do papa e arautos das suas reivindicações temporais na questão romana, mas sim cidadãos do Estado, defensores da democracia, promotores da eleição proporcional e autônomos nas suas escolhas políticas, premissa necessária do papel que eles desempenhariam depois do fascismo.
Pense-se no discurso de João XXIII para a inauguração do Concílio, no qual atestou a Igreja na fronteira da misericórdia (“o remédio da misericórdia em vez das armas do rigor”), equipou-a para a “atualização” do próprio anúncio evangélico e sonhou com uma “Igreja de todos e, sobretudo, Igreja dos pobres”.
Pense-se no discurso de Togliatti de 1963, em Bérgamo, sobre o “destino do homem”, em que o líder comunista reposicionava o seu partido e a própria ideia de comunismo não mais apenas no campo das lutas econômicas e sociais, mas também no de uma nova antropologia universalista, para a qual a própria consciência religiosa, posta diante dos dramáticos problemas do mundo contemporâneo, era posta em causa e podia servir de estímulo para a mudança da sociedade.
Do Papa Francisco, ainda não se pode dizer qual será o discurso que fará história, depois do qual a Igreja, longe de estar imóvel, nunca mais será a mesma de antes. Seria possível citar a Evangelii gaudium, em que essa nova Igreja é desenhada, a Laudato si’, que envolve todos os habitantes do planeta na salvação da Terra, os discursos sobre a misericórdia que plantam o “Deus inédito” no coração de todas as pessoas, para além de todas as diversidades de religião, os discursos aos movimentos populares que exortam à luta, e não apenas à reivindicação de um outro mundo possível, o discurso à Europa para a saída do regime de cristandade, os discursos aos Estados para uma revolução dos ordenamentos que excluem e da economia que mata, ou o discurso com que derrubou, até no Catecismo, uma doutrina secular que admitia a pena de morte.
Mais provavelmente, para além de um único discurso, será o magistério global do Papa Francisco, que, tendo finalmente pensado a reforma da Igreja a partir da reforma do papado (Santa Marta!), de fato, já realizou aquilo que os seus críticos malévolos rejeitam e que os seus críticos benevolentes reclamam. O cisma está agora fora do tempo.
É claro que isso não pode ser suficiente; o governo não é apenas profecia, é também instituição, e um papa “governa” a Igreja. Mas tudo tem o seu tempo, e em tempos selvagens como estes não é possível fazer curtos-circuitos e falsos inícios. Mas, certamente, se a Igreja permanecer fiel, “a instituição seguirá”; talvez, hoje, não as reformas que todos trazemos no corações, mas certamente amanhã.
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O cisma. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU