10 Janeiro 2019
"O problema de Deus não é colocar a si mesmo na frente, é fazer crescer o homem à sua estatura, não é ser amansado, como divindade exigente, não é ser conquistado com sacrifícios e holocaustos, é que o homem tenha misericórdia e o mundo seja salvo. É difícil para a Igreja admitir isso", escreve Raniero La Valle, em artigo publicado por Chiesa di tutti Chiesa dei poveri, 05-01-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
La Valle é jornalista, intelectual e político italiano. Atualmente é diretor da Vasti – Scuola di critica delle antropologie, presidente do Comitato per la Democrazia Internazionale e, ainda, escreve para a revista Rocca. É autor, entre outros, de Chi sono io, Francesco? Cronache di cose mai viste (Milano: Ponte alle Grazie) e Quel nostro Novecento (Ponte alle Grazie, Milano 2011).
A luta sobre o coração do Estado tornou-se dura, o que se está decidindo é se setenta anos depois do parto doloroso do qual nasceu, o nosso estado deve manter um coração de carne ou transplantar um coração de pedra. Poderia ser definido como um confronto de identidade, de fato: portos fechados ou abertos, crianças discriminadas desde o jardim de infância, estrangeiros marginalizados porque "apenas os italianos"; todas estas não são apenas uma mudança de política, são uma mudança do Ser.
É singular como tudo acabe sendo invertido. Os governo populista insurge contra os prefeitos do povo, o país que queria dar uma lição para a Europa, torna-se lacaio da Europa, selando as fronteiras meridionais e instaurando no mar um regime de apartheid, o Ministério da Segurança Pública se torna o portador da extrema insegurança prometendo via livre para os fabricantes e vendedores de armas, jogando os requerentes de asilo na clandestinidade, violando a lei da universalidade da saúde, de forma que se uma parte da população não é atendida também a outra parte fica doente, e se acumula sobre as cabeças dos cidadãos e daqueles futuros a ameaça de ódio estrangeiro e sentimentos incontroláveis de vingança sobre aqueles que carregam em sua carne a memória de rejeição e perseguição sofrida em nosso mar e os nossos campos de concentração, de identificação e deportação. Como escreveu a secretária da Magistratura Democrática, Mariarosaria Guglielmi, "devemos estar cientes de que a Itália está renegando a si mesma, sua história de hospitalidade, o orgulho pelas vidas salvas pela maior operação de ajuda humanitária levada a cabo no Mediterrâneo representada pela operação Mare Nostrum”.
Mas a República não está perdida: ela, como afirma a Constituição no art. 114, não é constituída apenas pelo Estado, mas “pelos municípios, pelas províncias, pelas cidades metropolitanas, pelas regiões e pelo Estado”.
E o Estado também são cidadãos prontos a acolher, e o Estado também é a Constituição que, tal como sancionado na famosa decisão do Tribunal Constitucional, de 1991, é fundado na "consciência individual", que é "a base espiritual-cultural e o fundamento de valor ético-jurídico" dos direitos invioláveis e das liberdades fundamentais do homem e, portanto, não só admite a objeção de consciência, mas, em relação a leis não humanas, exige o descumprimento.
E se pelo menos a Igreja navegasse com sua barca pacificada e segura! Não, ela também se atirou no mundo e celebrou este Natal registrando "as aflições" que fora e dentro a acometem, como o Papa as chamou em seu discurso tradicional de votos natalícios aos cardeais da Cúria. As aflições externas:
"Quantos imigrantes, forçados a deixar seus países e arriscar suas vidas, encontram a morte, e quantos sobrevivem, mas encontram as portas fechadas e seus irmãos na humanidade empenhados nas conquistas políticas e de poder.
Quanto medo e preconceito!
Quantas pessoas e quantas crianças morrem todos os dias devido à falta de água, comida e remédios! Quanta pobreza e miséria!
Quanta violência contra os mais frágeis e contra as mulheres! Quantos cenários de guerras declaradas e não declaradas!
Quanto sangue inocente é derramado todos os dias! Quanta desumanidade e brutalidade nos rodeiam por todos os lados!
Quantas pessoas são sistematicamente torturadas ainda hoje nas delegacias de polícia, nas prisões e nos campos de refugiados em diferentes partes do mundo!"
E ainda as dificuldades internas, o papa disse, continuam sempre a ser as mais dolorosas e destrutivas.
A Igreja, este ano, foi tão acometida por "tempestades e furacões" que uns se perguntaram se o Senhor estaria dormindo e não estaria se importando em ver que "estamos perdidos" e outros "atordoados com as notícias, começaram a perder a confiança nela e abandoná-la, outros, por medo, por interesse ou por outros motivos, têm tentado atacar seu corpo, aumentando suas feridas, outros não escondem sua satisfação em ver seu choque, muitos, no entanto, continuam a agarrar-se com a garantia de que 'as portas do inferno não prevalecerão contra ela’”(Mt 16, 18). Duas foram as pragas que o papa recordou: a de tantos “ungidos do Senhor", homens consagrados, que abusam dos mais frágeis, aproveitando-se de seu poder moral e de persuasão e a da infidelidade daqueles que traem sua vocação para "apunhalar seus irmãos e semear discórdia, divisão e perplexidade". Face a estes males, o Papa dirigiu à Igreja a advertência suprema para espelhar-se em si mesma sem medo em reconhecer seu pecado, aliás, o Papa teve a coragem de lembrar que o primeiro a pecar por ter cometido um tríplice abuso, sexual, de poder e de consciência, foi o mítico rei Davi, ungido pelo Senhor e descendente de Jesus, que tinha abusado da mulher de seu melhor oficial e com abuso de consciência e de poder o havia enviado para morrer em batalha.
Mas de onde vem a serenidade e a fé com que o Papa ainda proclama a salvação ao mundo? Parecia que ele tivesse dito tudo, agora, depois de mais de cinco anos de pontificado. Mas agora, nesta época de Natal, mais do que nunca vivenciada como uma revelação da pequenez e não da imensa majestade de Deus, é como se quisesse dizer a palavra última, fazer a entrega definitiva: melhor viver como ateus, se não se prestar testemunho do amor de Deus, melhor não frequentar as igrejas que rezar orações, estas sim, "ateias", sem Deus, "odiando os outros ou falando mal das pessoas". Este é realmente o Evangelho levado ao extremo, como foi anunciado para a multidão na audiência geral de 02 de janeiro, como Jesus fez quando deixou de lado a si mesmo dizendo: "Não quem me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai".
O problema de Deus não é colocar a si mesmo na frente, é fazer crescer o homem à sua estatura, não é ser amansado, como divindade exigente, não é ser conquistado com sacrifícios e holocaustos, é que o homem tenha misericórdia e o mundo seja salvo. É difícil para a Igreja admitir isso. Para uma Igreja declarar que prefere o ateísmo a uma fé hipócrita é como negar a própria razão de ser, porque uma Igreja sem Deus não pode existir, seria clericalismo puro, um horror. No entanto, para a Igreja de Francisco seria melhor não existir, seria melhor que Deus não fosse professado e acreditado, ao invés dos homens não se amarem, ao invés de não conhecerem o amor, seria melhor que fossem homens ao invés de homens lobos. Apostasia? Não, é o Evangelho, é a "revolução" do Evangelho, disse o Papa Francisco. Não é um paradoxo, porque o amor é Deus, porque quem ama os inimigos é, mesmo sem sabê-lo, "filho do Pai", e para isso a Igreja veio, para proclamar o amor. Chega-se assim a uma declaração que um grande monge do séc. XX, o camaldulense Benedetto Calati, deixou no final da sua vida: a Igreja deveria educar para viver sem depender da Igreja, abrindo o caminho para o Espírito, que é liberdade; ela não é um fim em si mesma, é um meio, é um instrumento, é um sinal, é "hospital de campanha", sua função é pedagógica, é a pedagogia da fé, para o encontro direto com o amor de Deus. E dizendo que o ateísmo é melhor do que o ódio, a Igreja exerce aquele "ministério da troca" de que falava o apóstolo Paulo em uma epístola aos Coríntios: Deus troca a si mesmo com o mundo, por meio do Filho coloca os homens em seu lugar como destinatários do amor, não pretende ser ele o primeiro a ser amado, ele é o primeiro a amar, "primerea", como o Papa Francisco costuma dizer, floresce primeiro, como a amendoeira na primavera. É o transplante do divino no humano dentro da história.
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'Tempestades e furacões' acometeram a Igreja em 2018. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU