02 Setembro 2019
“Separações formais na comunhão católica não ocorrem da noite para o dia. Mas, em certo sentido, a Igreja Católica dos EUA já está fragmentada, com partes dela ainda mais separadas do papado de Francisco, e algumas delas também separadas umas das outras. Outro Sínodo está chegando, agora sobre a região pan-amazônica. Será que ele poderia fornecer a oportunidade para que as brechas aumentem ainda mais?”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova Univeristy, em artigo publicado em Commonweal, 29-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Faz apenas um ano desde que o arcebispo Carlo Maria Viganò publicou a agora infame carta na qual ele acusava o Papa Francisco de acobertar os abusadores sexuais e o “lobby gay”, e pedia que ele renunciasse.
A “carta Viganò” surgiu menos de duas semanas após o lançamento do relatório do grande júri da Pensilvânia sobre o abuso sexual clerical e cerca de um mês depois de Francisco pedir a renúncia ao Colégio de Cardeais de Theodore McCarrick (que logo depois foi expulso do sacerdócio).
Cerca de duas dezenas de bispos estadunidenses vieram a público para confirmar a integridade de Viganò, embora se recusando a defender o Papa Francisco – uma crise que chegou a um fim provisório em meados de setembro, quando a liderança da Conferência dos Bispos dos EUA se encontrou com Francisco em Roma.
Digo “provisório” porque, um ano depois, a crise não diminuiu tanto, mas entrou em uma fase diferente. Em uma coluna recente, Michael Sean Winters comentou que “a fidelidade a Viganò se tornou um cartão de visita entre os cismáticos” opostos a Francisco, aqueles que esperavam que a carta, de fato, o forçasse a sair do papado.
Embora seja verdade que a Igreja dos EUA não está em um estado formal de cisma, as brechas internas são reais – e, portanto, também os riscos. A carta de Viganò e o esforço midiático anti-Francisco por trás dela foram uma tentativa de golpe e, embora tenha fracassado, deixou cicatrizes profundas no corpo da Igreja dos EUA. Se existe algum lugar no catolicismo global em que pode ocorrer uma divisão, é aqui.
Para entender o porquê, é útil examinar um pouco da história. A forma mais radical de ruptura da comunhão católica no último meio século ficou conhecida como 'sedevacantismo'. Os sedevacantistas rejeitam o Vaticano II e todas as suas reformas, e sustentam que o papado está vago (do latim, “sede vacante”) desde a morte de Pio XII em 1958, por causa das heresias dos papas que vieram depois dele.
Existem vários movimentos e grupos sedevacantistas, alguns com o seu próprio “antipapa”, mas são pequenos; o sedevacantismo não é nada parecido com os cismas que se desenvolveram desde a Idade Média até o século XV.
Mas, depois, há a história da Fraternidade São Pio X (SSPX), fundada em 1970 pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre. Apenas alguns anos depois de aceitar e assinar os documentos do Vaticano II, Lefebvre começou a equiparar suas principais doutrinas aos ideais da Revolução Francesa: a liberdade religiosa correspondia à “liberdade”, a colegialidade à “igualdade”, e o ecumenismo à “fraternidade”.
Em um manifesto de 1974, ele declarou que não seguiria “a Roma de tendências neomodernistas e neoprotestantes, que ficou claramente evidente no Concílio Vaticano II e, depois do Concílio, em todas as reformas que dele surgiram”. Isso lhe rendeu uma convocação por parte de Roma no início de 1975 para se explicar. Em julho de 1976, ele recebeu uma suspensão a divinis. Nesse mesmo ano, ele publicou o livro “Eu acuso o Concílio”, no qual afirmava que o Vaticano II não provinha do Espírito Santo, mas “do espírito do mundo moderno, um espírito que é liberal, teilhardiano, modernista e contrário ao reinado de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Em 1983, Lefebvre e o arcebispo Antônio de Castro Mayer, do Brasil, escreveram uma carta aberta a João Paulo II, denunciando os erros magisteriais pós-conciliares. Eles escreveram a João Paulo II novamente em 1985, desta vez durante a preparação do Sínodo Extraordinário dos Bispos sobre o Vaticano II. Em outubro daquele ano, Lefebvre também submeteu 39 “dúbias” à Congregação para a Doutrina da Fé a respeito das discrepâncias entre a doutrina sobre liberdade religiosa do Vaticano II e os ensinamentos anteriores da Igreja.
Lefebvre continuou a sua campanha. Após a decisão de João Paulo II de realizar o primeiro encontro inter-religioso pela paz em Assis, em agosto de 1986, Lefebvre escreveu a oito cardeais, pedindo-lhes que se opusessem à “procissão programada das religiões pelas ruas da cidade de São Francisco”. Em março de 1987, ele recebeu do cardeal Ratzinger as respostas às “dubia” de 1985 sobre a liberdade religiosa que ele havia submetido. Ratzinger admitia que a doutrina sobre a liberdade religiosa da Dignitatis humanae era uma novidade, mas afirmava que era o resultado do desenvolvimento doutrinal na continuidade. Para Lefebvre, a resposta confirmou a sua convicção de que a “doutrina liberal” do Vaticano II e a “doutrina tradicional” eram irreconciliavelmente opostas.
Naquele mesmo ano, ele publicou um livro no qual denunciou o “Concílio dos Ladrões do Vaticano II”, uma referência ao “Concílio dos Ladrões de Éfeso”. Finalmente, em junho de 1988, ele e Castro Mayer seguiram em frente com as consagrações episcopais programadas, pelas quais eles incorreram em excomunhões latae sententiae. As ordenações provocaram uma profunda fissura entre os tradicionalistas; aqueles que optaram por permanecer na SSPX rejeitaram o Vaticano II ainda mais categoricamente, e seus laços com Roma se tornaram mais fracos.
Mas foi diferente para aqueles que romperam com Lefebvre. Em julho de 1988, logo após as consagrações episcopais, João Paulo II emitiu o motu proprio Ecclesia Dei, que acolhia um pequeno número de padres e seminaristas que haviam deixado a SSPX. Em janeiro de 2009, o decreto XVI levantou a excomunhão contra os bispos da SSPX. Um deles, no entanto, provou ser um negacionista do Holocausto, sugerindo um aspecto antissemita à rejeição por parte dos tradicionalistas do ensino do Vaticano II, particularmente a Nostra aetate.
Depois de Francisco se tornar papa, ele continuou com o esforço de reconciliação. Mas, ao mesmo tempo, deixou claro que uma negociação no Vaticano II não faria parte de um acordo para o retorno da SSPX à comunhão com Roma. Em janeiro, ele encerrou oficialmente a Ecclesia Dei, um momento decisivo que indica a diminuição da influência dos tradicionalistas na Cúria.
O crescente movimento neotradicionalista no catolicismo dos EUA, de certa forma, ecoa o desenvolvimento da SSPX. Há uma rejeição semelhante ao Vaticano II, por exemplo, que também se manifestou em uma radical dissidência teológica contra o Papa Francisco. E, assim como o Sínodo de 1985 pareceu ser um gatilho para Lefebvre, o Sínodo de 2014–2015 (junto com a Amoris laetitia) pareceu impulsionar os tradicionalistas contemporâneos. E ambos os movimentos usaram o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa como questões-chave.
Mas o contexto mudou significativamente desde os anos 1970 e 1980. As mídias católicas e as mídias sociais ajudaram a amplificar as vozes de oposição e a enfraquecer o senso de unidade na Igreja. Essas vozes “paracismáticas” foram efetivamente normalizadas e globalizadas, sendo utilizadas politicamente contra o Papa Francisco e o catolicismo emergente do Sul global, em um esforço para minar a influência da Igreja em questões como o ambiente e a migração.
O contexto intraeclesial também mudou. Uma característica do neotradicionalismo católico contemporâneo hoje é a preocupação com o ensino sobre a família e o matrimônio e com a ascensão do movimento LGBT na Igreja – algo que simplesmente não existia nas décadas passadas. Se o movimento de Lefebvre não pode ser entendido fora do contexto do catolicismo francês, da Revolução Francesa e da laïcité, o movimento neotradicionalista dos EUA é incompreensível fora da história das guerras culturais norte-americanas.
Um crescente ecossistema midiático de canais de TV a cabo, canais da internet e blogueiros agindo como vigilantes autoindicados ajudou a alimentar o movimento, ao mesmo tempo em que atuava quase como uma guerrilha contra o Papa Francisco. Por exemplo, a EWTN, a única grande emissora de televisão católica nacional dos EUA (que também tem alcance global) possui uma joint venture editorial com a editora Sophia Institute Press, que lançou recentemente um livro intitulado “Infiltration”. Ele não apenas promove as teorias da conspiração anti-Francisco, mas também leva o sedevacantismo para muito além, acusando Pio XII de ficar sob a influência do modernismo teológico.
Esse tipo de coisa floresceu desde a renúncia de Bento XVI em 2013, cuja permanência continuada no Vaticano e os sinais públicos periódicos sobre questões-chave que afetam a Igreja tiveram o efeito de criar uma espécie de magistério paralelo – dando maior cobertura aos católicos (incluindo clérigos e hierarcas) opostos a Francisco.
Quase 20 anos se passaram entre a fundação da SSPX e da excomunhão formal; passaram-se mais de dez anos entre a suspensão a divinis de Lefebvre e a excomunhão de 1988. Por outro lado, apenas três anos se passaram desde que um quarteto de cardeais levantou as “dubia” contra o Papa Francisco em setembro de 2016. Então, ainda estamos no meio das coisas, sem nenhuma forma de saber o que ocorrerá daqui a cinco ou dez anos.
Separações formais na comunhão católica não ocorrem da noite para o dia. Mas, em certo sentido, a Igreja Católica dos EUA já está fragmentada, com partes dela ainda mais separadas do papado de Francisco, e algumas delas também separadas umas das outras. Outro Sínodo está chegando, agora sobre a região pan-amazônica. Será que ele poderia fornecer a oportunidade para que as brechas aumentem ainda mais?
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A carta de Viganò, um ano depois. As brechas intracatólicas estão aumentando? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU