03 Mai 2024
No mundo católico, há “muita moral, pouca comunidade, zero cultura”. Assim definiu Pierangelo Sequeri, teólogo. Houve muitas discussões sobre essa escassez já crônica de católicos italianos. Entrevistamos Roberto Righetto, ex-responsável pelas páginas culturais do Avvenire, o jornal dos bispos italianos.
A reportagem é de Daniele Rocchetti, publicada em La Barca e il Mare, 18-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Mons. Pierangelo Sequeri começou uma série de artigos nas páginas do jornal Avvenire. “Muita moral, pouca comunidade, zero cultura”: essa foi a análise implacável que ele fazia do catolicismo italiano, a falta de atenção à cultura por parte da Igreja e sua profunda incapacidade de incidir na vida pública. Seguiu-se uma contribuição magnífica de Roberto Righetto, por 30 anos responsável pelas páginas culturais do jornal dos bispos italianos e coordenador da Vita e Pensiero, a revista cultural da Universidade Católica de Milão.
Righetto elencou, com grande lucidez e coragem, os desafios a que somos chamados e, ao mesmo tempo, mostrou os muitos obstáculos que impedem a comunidade cristã de levar a sério a natureza humana da vida e da história. Esta é a primeira parte do diálogo com ele.
Comecemos pelo título de seu artigo: por que os católicos custam a responder aos desafios culturais?
Eu parti de uma simples constatação: a desvalorização da cultura por parte da Igreja e do mundo católico italiano. É um fenômeno universal e transversal, que afeta bispos e padres, mas também leigos e leigas. É muito raro ler pronunciamentos do magistério que abordem o tema, e é difícil encontrar paróquias que invistam tempo e dinheiro para realizar iniciativas culturais. Trata-se de um limite que nós, católicos na Itália, tivemos nas últimas décadas: houve uma espécie de excesso de ativismo e de sociologismo a partir dos anos 1970.
Na minha opinião, o fato de ter ignorado e subestimado o mundo da cultura por parte de nós, cristãos, foi uma das culpas mais graves, especialmente no pós-guerra. Há fortes responsabilidades que se manifestaram durante o século XX e, na minha opinião, essa é também uma das causas profundas do fracasso do chamado “partido católico”.
Nos últimos anos, foram realizadas investigações nos jornais sobre a hegemonia cultural marxista; tendo dirigido as páginas culturais do Avvenire durante 30 anos, lembro-me de quantas palavras foram gastas, e, com razão, pensamos nos livros didáticos nas escolas e no modo como certos assuntos foram tratados. Tudo verdade, mas certamente houve um espaço que foi totalmente abandonado por nós, católicos, talvez pensando apenas na política. Não tenho qualificações para levantar processos contra ninguém, mas certamente a falta disso foi muito, muito grave.
E agora a situação piorou sensivelmente. No meu artigo, sem a pretensão de dar lições a ninguém e muito menos desenterrar épocas do passado – penso no Projeto Cultural – quis apenas reiterar um conceito-chave para a presença histórica do cristianismo na Europa e no Ocidente, a importância da cultura. Como escrevi, para se situar como um sinal de contradição, como as primeiras comunidades cristãs, na minha opinião é preciso aceitar dois desafios: o primado da cultura – e a redescoberta do imenso patrimônio teológico do cristianismo – e a consciência de que a evangelização hoje se realiza por meio do belo e do bom. Por isso, observei que, frente ao assustador analfabetismo religioso do povo italiano, incluindo os católicos e os jovens em particular, seria preciso que toda a Igreja italiana se tornasse promotora de uma iniciativa de fôlego para superar o atual grave estado de estagnação da cultura católica: a cultura é desvalorizada, e o compromisso social é feito para coincidir apenas com a caridade.
Mas a fé cristã não se expressa fora da cultura (ou das culturas), e é preciso um novo imaginário da fé que atraia os jovens. E, sem cultura, isso não é possível. Na minha opinião, essa é a primeira tarefa de leigos e leigas na Igreja: redescobrir a cultura. Na minha longa atividade como jornalista cultural, sempre pensei que, sem cultura, não há cristianismo, mas também que, sem cristianismo, não há cultura, pelo menos no Ocidente.
Você menciona o perigo e a tentação de reduzir a fé à moral, a um repositório de bons comportamentos, apenas ao compromisso social ou de caridade. Como conservar a diferença cristã em um tempo cada vez mais secularizado?
Para responder, parto de dois desafios, de duas constatações que interpelam a todos nós, pessoas de fé. Em primeiro lugar, as novas formas da indústria cultural e da informação que a veicula de forma massiva e uniforme. Tornou-se cada vez mais difícil exprimir e difundir ideias não padronizadas, ressoar vozes que não são orgânicas ao sistema econômico e tecnocientífico, que expropriou o setor editorial, a imprensa, os meios de comunicação e que proclama aquelas suas verdades relativas, na repetição de lugares-comuns que alimentam fofocas de posição contrabandeadas pelo debate cultural.
Saliento ainda que, na França, onde o catolicismo se encontra em uma profunda crise de fiéis e de praticantes, mas ainda está presente uma notável efervescência intelectual, está em curso uma discussão que, na minha opinião, é relevante sobre a presença (e sobre o destino) do cristianismo, e muitos dos que intervieram, por exemplo nas colunas do jornal La Croix, usaram a definição de “contracultura”.
Na Itália, os debates abertos sobre essas questões são raros, o mundo católico está afligido pela preguiça intelectual. Mas a questão é decisiva: trata-se de um engajamento cristão, capaz de exprimir uma resistência cultural e espiritual ao mesmo tempo, um testemunho evangélico que, como nos recorda continuamente o Papa Francisco, não se disfarça de exibicionismo, mas se realiza nos gestos quotidianos.
Nesse sentido, mais do que “contracultura”, seria correto falar de uma orientação de vida diferente. Um sinal daquilo que o teólogo ortodoxo Olivier Clément prefigurava como um “cristianismo da liberdade”, não mais baseado na reivindicação do poder e na obsessão pela sexualidade: um cristianismo renovado, uma religião de rostos e de beleza.
Depois, o segundo desafio que quero mencionar é que a discussão em torno do paradigma da modernidade, que trazia consigo a liquidação do sagrado por meio de um processo crescente de secularização da vida, levou, sim, ao retorno da religião como fator relevante para a nossas sociedades, mas com aspectos contraditórios que precisam ser examinados. Um sociólogo que marcou as últimas décadas, Zygmunt Bauman, denominou a religião pós-moderna como uma “religião mínima”, feita de espiritualidade flexível, desligada dos dogmas e da racionalidade que distinguiram a civilização ocidental. Em poucas palavras, uma religião sem Deus.
Acredito que é preciso se interrogar sobre as características dessa nova forma de religião. Vejo três orientações emergentes, três referências culturais: a redescoberta das filosofias orientais, que representaria um caminho menos exigente em relação ao sistema judaico-cristão e que uniria de forma mais pacífica a meditação e a reflexão em uma experiência religiosa capaz de dar alívio ao corpo e ao espírito; o retorno do politeísmo, que permitiria romper a propensão do monoteísmo à violência, que ainda hoje apresenta muitas vezes o rosto do fundamentalismo; e, por fim, um novo ateísmo, capaz de ampliar os espaços para uma espiritualidade plural e, sobretudo, sem Deus.
Tudo isso dá origem a um nomadismo espiritual, a uma religião do tipo “faça você mesmo” que rejeita qualquer Igreja. No que diz respeito à moda das filosofias orientais, lembro-me de uma lúcida intervenção de Slavoj Žižek, em que o filósofo esloveno credenciava o budismo como a filosofia mais apropriada para a globalização e o neocapitalismo tecnológico predominante. As religiões orientais seriam o antídoto mais válido contra o estresse da vida moderna, porque permitem encontrar o caminho para uma paz interior. Não só isso, elas podem convivem muito bem com o mundo pós-industrial avançado e, de fato, tornar-se seu complemento ideológico perfeito. Todo o contrário do cristianismo, cujo elemento subversivo e revolucionário constitui a crítica mais forte às dinâmicas distorcidas do desenvolvimento econômico e tecnológico que provocam desigualdades cada vez mais evidentes.
Diante esses novos desafios e provocações, o cristianismo certamente não pode reagir entrincheirando-se ou pensando em travar uma guerra, mesmo que cultural. Em primeiro lugar, trata-se de reconhecer a genuinidade da busca religiosa pós-secular, dado que alguns de seus sinais, do desejo de bem-estar à vontade de realizar o próprio “eu”, da nova fenomenologia da mística ao amor pela terra, não estão absolutamente distantes de uma verdadeira experiência cristã. Há uma abundante tradição teológica que tende a separar a experiência cristã da religião: basta reler Tillich e Bonhoeffer.
Não só isso, durante o século XX, houve uma elaboração muito rica do pensamento cristão que pôs em crise a metafísica abrangente que havia dominado no passado. Pensamos na crise do conceito de onipotência de Deus, seguindo também as perguntas suscitadas pela tragédia da Shoá que puseram em discussão toda a teodiceia. Von Balthasar e Rahner escreveram coisas iluminadoras sobre essa virada por parte do cristianismo ao ver Deus. Conceitos que foram reiterados por pensadores como Simone Weil e Etty Hillesum.
Mas certamente a renúncia muitas vezes por parte da Igreja em relação a uma pregação sobre a vida eterna, que soubesse valorizar o patrimônio da patrística e da mística e, ao mesmo tempo, não excluísse o horizonte da existência concreta, é um dos motivos da afirmação da espiritualidade sem Deus do nosso tempo, de formas de religiosidade capazes de despertar novas emoções. Diante disso, o que temos a dizer? Eu penso muito sobre isso, mas não existe um espaço real de reflexão. Apoiamo-nos em iniciativas concretas, e sabe-se lá quantas realidades bonitas ainda operam no nosso mundo em nível social e caritativo. Mas e a elaboração cultural? A fé também precisa de teoria, não apenas de prática.
A história cristã apresenta um paradoxo. Por um lado, não pode ser identificada com uma cultura; por outro, para ser encarnada, a fé precisa lidar adequadamente com a cultura do tempo em suas diversas formas. Os católicos italianos muitas vezes parecem carecer de uma gramática humana de referência, razão pela qual abunda aquilo que você chama de “desleixo cultural”. Quais são as razões disso?
Uma pergunta que levanta outra pergunta: a Igreja deveria abandonar o Ocidente já destinado à secularização completa? E resignar-se ao fato de que o calendário cristão, com suas festas e seus ritos, se transforme em um calendário feito de feriados seculares e consumistas, como aquilo a que o Natal ou a Páscoa estão agora reduzidos? Eu acho que não.
Todos constatamos que a contribuição também numérica para o cristianismo hoje no mundo vem daquelas que antes eram periferias, África, Ásia e América do Sul, e é necessário e indispensável que a contribuição das Igrejas jovens seja valorizada e considerada, deixando para trás a convicção de um cristianismo apenas como expressão da cultura ocidental. Mas, ao mesmo tempo, não podemos jogar fora séculos de tradição e de cultura. Pensemos nos efeitos deletérios da cultura do cancelamento, que, em parte, visa a atingir símbolos e personalidades da cultura cristã.
Por outro lado, na minha opinião, também devemos ser capazes de sair de um complexo de inferioridade que, há muitos anos, tem afetado a nós, cristãos, um complexo de inferioridade devido ao qual um autor cristão dificilmente tinha o direito de participar no fórum, na praça do debate cultural. Isso ocorria em parte pela arrogância de uma certa cultura laicista, mas também por uma incapacidade da nossa parte de sermos conscientes da força e da originalidade da nossa própria cultura. Ter uma determinada cultura não é de forma alguma uma deficiência, não é de forma alguma uma condição de inferioridade de partida; pelo contrário, deve ser algo que nos dá força, tendo em mente, além disso, a capacidade de saber dialogar com todos, até mesmo com os mais distantes.
E há outro elemento que nós, cristãos, devemos recuperar, que é a capacidade de sermos curiosos em relação a tudo, aquela curiosidade que anda de mãos dadas com uma paixão pela verdade, como diziam os autores latinos: “Nada do que é humano me é estranho”, escrevia Terêncio, posteriormente retomado por Sêneca e vários outros. Aquela curiosidade que nos torna capazes de abrir os horizontes diante de todos os acontecimentos, de todas as culturas, sabendo ver o positivo onde quer que ele se manifeste, na consciência de que, como afirmou o Concílio, as sementes do Verbo se manifestam por toda a parte, mesmo onde elas não são reconhecidas.
São Tomás, além disso, também escreveu isso. É a curiosidade que anima as páginas culturais do Avvenire, que eu dirige durante muito tempo: uma abertura a todos os fenômenos da cultura, da ciência à filosofia, das artes à literatura, da religião aos costumes. Abrindo-se à contribuição de tantos autores não crentes, já que hoje muitas divisões não fazem mais sentido, depois da queda dos muros e das ideologias, assim como é repugnante para mim ver a contraposição aberta entre católicos conservadores e progressistas.
Mas me permitam apontar também para uma das carências de fundo que a chamada cultura laica muitas vezes demonstra: como me lembrou uma vez o escritor Giuseppe Pontiggia, enquanto os autores religiosos estão habituados a estudar e a aprofundar todos os âmbitos da cultura, os pensadores laicos às vezes permanecem fechados, ignorando o patrimônio literário e teológico da cultura religiosa.
Mais uma vez devo ressaltar que hoje há uma carência de figuras públicas portadoras de um pensamento crítico, capazes de desafiar e pôr em discussão o sistema de poder. E isso, infelizmente, também vale para o campo cristão. O clericalismo frequentemente denunciado pelo Papa Francisco ainda é dominante na Igreja, e os leigos, as mulheres e os jovens encontram muito pouco espaço. Os Sínodos realizados ou em curso serviram muito pouco nesse sentido.
Mas, além dessas razões já mencionadas várias vezes, acrescento outra: a falta de um pensamento teológico livre e provocador nas últimas décadas em nível europeu. A teologia católica secou, e o pensamento católico perdeu vitalidade. O mundo católico tornou-se menor. Como intelectuais e como católicos, somos menos numerosos e, sem dúvida, menos brilhantes, temos muito menos influência do que no passado nos grandes debates contemporâneos.
Mas há uma responsabilidade nossa, como cristãos, uma verdadeira “incultura” teológica, filosófica e ainda mais histórica. O que parece ainda mais grave em um momento histórico em que o religioso, em alguns casos, vive um retrocesso identitário. Pensando em muitos filmes ou livros nascidos diretamente do húmus cristão, praticamente nada me vem à mente: há uma produção espiritual e teológica de baixíssimo nível, especialmente na Itália. Por isso, falei sobre em um “monte de bobagens” e não me arrependo.
Continua...
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O mundo católico e a cultura que não existe mais. Entrevista com Roberto Righetto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU