13 Março 2024
O catolicismo só pode fazer cultura se estiver estruturalmente interessado na cultura. Caso contrário, ele entra em uma desculturação que não é apenas sofrida, mas também produzida pelo próprio catolicismo.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em seu blog Come Se Non, 12-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No debate que foi aberto sobre o “déficit cultural” do catolicismo [leia os artigos de Pierangelo Sequeri e de Roberto Righetto], não me parece inoportuno remeter a questão a raízes bastante antigas, que remontam a mais de um século atrás.
O catolicismo só pode fazer cultura se estiver estruturalmente interessado na cultura. Caso contrário, ele entra em uma desculturação que não é apenas sofrida, mas também produzida pelo próprio catolicismo. Basta uma menção para recordar aqui a lucidez de C. M. Martini e sua denúncia “extrema” do atraso de 200 anos da Igreja Católica.
Para aprofundar a questão, gostaria de recordar os desdobramentos que o antimodernismo provocou dentro do corpo eclesial católico. A irrelevância cultural do catolicismo foi desejada, não é apenas fruto do destino. E foi desejada não só pelo “inimigo”, mas também pelas decisões eclesiais do magistério.
O distanciamento de toda a cultura contemporânea convenceu a Igreja Católica da possibilidade de poder continuar sendo fiel à tradição utilizando exclusivamente o saber “interno”. O anúncio do Evangelho, a busca do bem, a formação dos ministros e a estrutura da instituição podiam ser imaginadas de forma autônoma, na convicção ilusória de ter alcançado a autossuficiência e de poder olhar de cima e de fora para a cultura “externa”.
Essa ideia totalmente nova surgiu no magistério entre o fim do século XIX e o início do século XX. E transformou profundamente o modo como a Igreja fala de si mesma e faz experiência de si mesma. O século XX foi profundamente marcado por essa ideia, não só antes do Concílio Vaticano II, mas também depois.
Poderíamos identificar primeiro os 50 anterior aos Concílio, mas depois também os 30 anos que se seguiram aos anos 1970, como profundamente marcados por essa orientação. Todo esse período foi amplamente dominado por aquela forma de antimodernismo que desconfia da cultura, de modo verdadeiramente radical.
Não houve apenas o antimodernismo do decreto Lamentabili (1907), da encíclica Pascendi (1907) ou da Humani generis (1950), mas também o da Veritatis splendor (1993), da Ordinatio sacerdotalis (1994), do motu proprio Ad tuendam fidem (1998) e Summorum pontificum (2007).
Tanto antes quanto depois do Concílio Vaticano II, que constituiu uma espécie de “ilha” nos anos 1960 e 1970, os teólogos nem sempre puderam ou quiseram fazer valer razões diferentes no nível espiritual e cultural. Não é possível se calar diante de Veritatis splendor e de Summorum pontificum e depois rasgar as vestes porque o catolicismo não se alimenta de cultura. A subcultura da qual se alimentam esses documentos ainda está viva, e sua abordagem condiciona a pobre produção cultural católica ainda hoje. Se o catolicismo é posicionado apenas na defesa, não é possível se lamentar pelo fato de ele não conseguir mais posicionar um jogo interessante.
Por outro lado, considerando o antimodernismo do início do século XX e do pós-Concílio, é preciso reconhecer o fato de que as condições institucionais e jurídicas para o exercício da teologia pioraram muito em 1983 em comparação com 1917. Entre as coisas que normalmente são ignoradas está a diferença de liberdade de expressão teológica entre o Código de Direito Canônico de 1917 e o de 1983.
O código que surgiu no meio da crise antimodernista era mais liberal do que o código de 1983, como já lembrou lucidamente W. Boeckenfoerde há 20 anos. A recepção distorcida do Concílio iludiu o magistério de poder ser autossuficiente. E, depois de 1983, todas as intervenções sobre esse ponto foram ainda mais restritivas.
Um diálogo verdadeiro com a cultura só é compatível para a teologia com uma reforma do Código de Direito Canônico, em relação às normas que dizem respeito à relação entre magistério e teologia. A liberdade garantida ao teólogo “em comunhão” se reduziu vistosamente, também do ponto de vista da punição canônica, e quem se relaciona com a cultura de forma explícita demais corre o risco de comprometer o próprio nome e o próprio trabalho.
O fato de que o silêncio preserva a comunhão é uma verdade que não pode valer sempre e toda a parte. Essa pretensão é digna dos regimes totalitários, não da comunhão eclesial. Se dizemos que a relação com a cultura voltou a ser considerada importante, devemos acima de tudo criar as condições para o exercício dessa relação. O diálogo com a cultura sempre tem um preço, até mesmo muito alto. Mas, se o sistema dissuade, de todas as formas, de uma abordagem crítica e censura fortemente o diálogo com a cultura comum, é preciso intervir no nível institucional.
Se os bispos também correm o risco de serem censurados quando se referem à cultura, por exemplo sobre o tema do ensino religioso, para favorecer uma adequação da legislação e da prática às condições reais da cultura escolar e dos jovens contemporâneos, no pluralismo religioso que vivemos hoje de fato, e são remetidos essencialmente à lógica da Concordata de 1929 (em que antimodernismo e modernismo podiam se beijar e dar as mãos tranquilamente), então a questão é mais séria do que parece.
Em 1904, em sua pequena obra-prima “História e dogma”, escrita justamente no início do conflito mais duro, Blondel dizia: “Em um prego pintado, só é possível pendurar uma corrente pintada”. Pintamos uma imagem de mulher e de homem e fazemos com que ela concorde com a imagem da Igreja. Tudo bem, mas é tudo falso.
A coragem de uma teologia que faça a tradição cristã e católica dialogar seriamente com a cultura contemporânea não permite correlacionar apenas “pinturas”: verdadeiros pregos e verdadeiras correntes exigem abertura, reflexão, crítica sincera, apreciações de verdade e novos paradigmas.
Não é possível pedir um diálogo com a cultura em geral e em abstrato e depois se refugiar, concretamente, apenas nas soluções do passado. Não se pode engrandecer as diversas culturas e defender apenas uma só. Não se pode elogiar a presença da mulher e mantê-la como papel de parede. Não se pode louvar abertamente a vocação matrimonial, mas confiná-la em um canto em relação ao ministério.
Ou abrimos novos caminhos concretos e determinados sobre as questões individuais mais candentes, com deliberações responsáveis, ou apenas contribuímos com as fofocas de salão. Um catolicismo capaz de “fazer cultura” não só tem muito a ensinar, mas também muito a aprender, depois de um século de forte surdez, marcada por grandes preconceitos. Também tem muito a contribuir com uma escola que saiba honrar todas as tradições religiosas, e não apenas uma.
A clarividência cultural nem sempre corresponde ao retorno imediato. Mas isso não significa que ser magnânimo não valha mais do que estar simplesmente inclinado à defesa de si mesmo, daquele “eu” que nos parece não ter alternativas.
Se soubermos dialogar com a cultura comum, poderemos pendurar as nossas correntes nos pregos alheios, e as correntes alheias nos nossos pregos. Foi assim que, no passado, foram construídas as igrejas e as praças, as casas e as pontes. Se não corrermos esses riscos da novidade, se não entrarmos em novos paradigmas, se não nos deixarmos advertir pela bela imagem de Blondel do prego pintado e da corrente pintada, produziremos, quase inadvertidamente, mas inexoravelmente, um catolicismo pregado e uma tradição acorrentada.
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O prego e a corrente. Desculturação, catolicismo e trabalho teológico. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU