11 Março 2024
O reconhecimento da dignidade da mulher impõe que a teologia recupere sua própria dignidade.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em seu blog Come Se Non, 08-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A partir dos anos 1910, a “festa da mulher” sinaliza uma mudança profunda na compreensão da dignidade pública das mulheres. A Igreja Católica registrou esse dado em 1963, com a profecia de João XXIII na encíclica Pacem in terris, mas depois não conseguiu mudar a fundo a linguagem com que fala da mulher.
A teologia do magistério também ficou muitas vezes abaixo do mínimo necessário para honrar a dignidade da mulher. Um exemplo triste e impressionante dessa tentativa fracassada pode ser lido no texto de João Paulo II que se intitula Mulieris dignitatem (1988), justamente “a dignidade da mulher”.
Tentemos ler apenas um breve trecho, muito exemplar de um estilo argumentativo particular, que se encontra no fim do número 26
“Se Cristo, instituindo a Eucaristia, a ligou de modo tão explícito ao serviço sacerdotal dos apóstolos, é lícito pensar que dessa maneira ele queria exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é ‘feminino’ e o que é ‘masculino’, querida por Deus, tanto no mistério da criação como no da redenção. É na Eucaristia que, em primeiro lugar, se exprime de modo sacramental o ato redentor de Cristo Esposo em relação à Igreja Esposa. Isto se torna transparente e unívoco, quando o serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age ‘in persona Christi’, é realizado pelo homem. É uma explicação que confirma o ensinamento da declaração Inter insigniores, publicada por incumbência do Papa Paulo VI para responder à interrogação sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial” (Mulieris dignitatem, n. 26).
Aqui se sobrepõem três níveis da questão, de um modo bastante arbitrário e confuso, que deveriam permanecer distintos: a instituição da eucaristia, a missão dos apóstolos, a relação entre Cristo esposo e Igreja esposa. A harmonização dos três níveis, de modo direto e sem nenhuma verdadeira justificativa, permite chegar a uma tríplice conclusão incongruente e gravemente ideológica:
– que na instituição da eucaristia Cristo quis “expressar a relação entre homem e mulher”;
– que agir in persona Christi exige o sexo masculino;
– que essa reconstrução pode constituir uma “explicação” da reserva masculina afirmada pela Inter insigniores.
A primeira afirmação é um salto argumentativo tão evidente e tão infundado a ponto de ser embaraçoso: o fato de que na Última Ceia e na missão dos apóstolos a “reserva masculina” apareça como uma evidência é fruto de uma projeção sobre o texto das nossas visões e deriva sobretudo da interpretação de um silêncio como se fosse uma palavra, de uma omissão como se fosse uma proibição. Isso introduz um elemento fortemente arbitrário na interpretação dos textos.
O restante da discussão não explica por que o “sacerdote” é reconhecido pela tradição não apenas como aquele que age “in persona Christi”, mas também como aquele que age in persona ecclesiae, o que, segundo o raciocínio proposto mediante um uso “literal” da analogia Esposo/Esposa, pediria o sexo feminino. Agindo in persona Christi, mas também in persona ecclesiae, o ministro deveria ser, ao mesmo tempo e paradoxalmente, homem e mulher.
Isso também nem sequer explica por que na tradição se usa a terminologia do Cristo Esposo em relação à Igreja Hierárquica como Esposa, que, em sua feminilidade constitutiva, só pode ser representada, porém, por homens. A metáfora vacila não por si mesma, mas pelo uso que o nosso tempo pretende fazer dela. Esse uso clássico, usado por exemplo por Inácio de Loyola em seus Exercícios Espirituais, volta-se claramente a confirmar o poder hierárquico (masculino): a hierarquia, sendo “esposa” de Cristo, recebe dele a mesma autoridade do Esposo.
No caso atual, porém, usa-se a terminologia esponsal para negar a autoridade feminina: porque ela não pode ter acesso à representação do Esposo e, como Igreja Esposa, não recebe autoridade. Para os homens, Esposo e Esposa são figuras e analogias; para as mulheres são “papéis sexuados”.
Eis, então, o paradoxo: se o homem pode representar tanto o Esposo quanto a Esposa e, tanto em um caso quanto no outro, vê sua autoridade confirmada, a mulher se depara com um duplo obstáculo: ela só pode representar a esposa, mas sem autoridade, e não o noivo, porque é desprovida de autoridade: aqui há um uso distorcido da analogia, que é curvada a um uso explicitamente ideológico.
Com a analogia esponsal, em seu uso ao mesmo tempo figurado e literal, pode-se atribuir ao homem toda autoridade, tanto do lado do esposo quanto do lado da esposa, enquanto se atribui à mulher apenas um lado da relação, mas rigorosamente desprovido de autoridade, diríamos por anatomia. Para o homem, a determinação sexual é irrelevante, enquanto para a mulher é totalizante.
Uma teologia arbitrária, que usa de forma não controlada a linguagem elaborada pela tradição com outras intenções, não sabe reconhecer até o fim a dignidade da mulher, porque não valoriza adequadamente as palavras que emprega, deixando que o preconceito molde a argumentação à sua vontade.
Um defeito de linguagem tão evidente diante da dignidade da mulher pede uma teologia menos arbitrária e, por isso, dotada de maior dignidade. O reconhecimento da dignidade da mulher impõe que a teologia recupere sua própria dignidade.
Um “sinal dos tempos” tem precisamente esta função: ensinar algo novo à teologia e à sua linguagem, permitindo-lhe desempenhar de forma mais adequada seu próprio serviço eclesial.
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8M: dignidade da mulher e dignidade da teologia. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU