Ele abalava os dogmas, não suportava as conversas devocionais: Karl Rahner queria transmitir aquilo em que o indivíduo pode acreditar. Por isso foi admirado – e contestado. No 40º aniversário de sua morte, o especialista em Rahner, Andreas R. Batlogg, conta a fascinante história do grande teólogo.
Ao longo de sua vida, Andreas R. Batlogg honrou não apenas a Deus, mas também a Karl Rahner. Karl Rahner foi um famoso e corajoso inovador da teologia. Suas ideias ainda hoje são radicais. Batlogg tem 61 anos, é um jesuíta e um incansável divulgador do mundo de Rahner.
Na entrevista, ele fala de forma clara e inequívoca. O que ainda precisamos saber sobre Karl Rahner hoje – e por quê?
A entrevista é de Christina Rietz, publicada por Die Ziet – Christ & Welt, 13-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Karl Rahner nasceu no dia 05-03-1904 e morreu no dia 30-03-1984.
Sr. Batlogg, circula uma piada que diz que Deus, diante dos escritos teológicos de Karl Rahner, exclama: “Eu também não o entendo”. Como pode um leitor normal compreender esse grande teólogo?
O fato de Rahner ser difícil de ler é um clichê no qual o Papa Francisco também caiu quando aconselhava os seminaristas: “É melhor vocês lerem Hugo Rahner, irmão de Karl”. Claro, Karl Rahner é difícil, às vezes escreve frases complexas que se estendem por páginas. Não poupa ninguém do “esforço de compreensão do conceito”. Mas pensar e crer andam de mãos dadas, complementam-se. 40 anos após sua morte, ainda o lemos.
O que um leigo deveria ler se estiver interessado nessa figura do século?
Para começar com algo leve, por assim dizer, pode servir Sobre a necessidade e a bênção da oração. São homilias quaresmais do inverno da fome de 1946, nas quais ele compara os porões cheios de escombros dos bombardeios aos corações dos alemães, igualmente enterrados, após o período do nazismo. Depois recomendo Palavras no silêncio. Enquanto o lia, parecia que ele estava na minha frente e conversava comigo.
Que tipo de homem era ele, aquele “star”, teólogo e padre jesuíta? Nos antigos vídeos parece espiritual, inacessível e comovente.
Ele era mal-humorado e propenso à depressão. Era germânico e reservado. E, sim, também era difícil. Quem recebe 16 títulos honoris causa e muitos prêmios e é considerado uma estrela. Mas ele não era um professor distante.
Karl Rahner era uma pessoa cordial?
Sim, gostava das crianças, brincava com elas, puxava os vagões dos trenzinhos de brinquedo com o seu rosário. Tinha senso de humor. Uma vez foi convidado para ir à casa de um amigo. Quando começou a comer, a menina com deficiência da família lhe disse: “Nós primeiro rezamos!” Ele adorava contar essa anedota.
Ele era capaz de lidar com as situações da vida cotidiana?
Karl Rahner era um jesuíta da velha escola, um “trabalhador”. Mas não sabia costurar um botão, suas habilidades sociais não eram muito desenvolvidas. Nem precisava, vivia num internato jesuíta com pensão completa.
Ele não encontraria o leite em um supermercado.
Provavelmente não.
Quando você era um jovem estudante, o conheceu pessoalmente na década de 1980. Como foi?
Eu ainda não era jesuíta e frequentava as aulas em Innsbruck. Era tratado quase como um semideus por seus assistentes. "Ah, Padre Rahner, Padre Rahner!" Isso me desanimava.
No entanto, o culto à personalidade não é comum entre os jesuítas.
Não. Também não era fácil para os outros jesuítas, porque a imprensa falava sempre e apenas de Rahner e não deles. Muitas vezes ficava do lado dos teólogos a que Roma se opunha.
Se você tivesse que explicar a alguém que não entende nada de teologia em que consiste a obra de Karl Rahner, o que responderia?
O Padre Rahner abordou a tradição de forma criativa. Ele se perguntou: como posso falar essas coisas para o homem de hoje? Queria transmitir o conteúdo da fé e as definições dos concílios para que todos pudessem entender.
Li a introdução do seu famoso livro Espírito no mundo e não entendi quase nada. Por exemplo, está escrito: "Não são abordadas de forma alguma questões como a species expressa, o verbum mentis, a resolutio de uma cognição (nos primeiros principia come nos sensibilia), as analogia entis, a unidade da apercepção, etc., embora sejam importantes para a compreensão final das questões aqui discutidas".
Essa era sua tese de doutorado em filosofia. Ele sempre falhou em escrever de forma compreensível. Contudo, ele não dirigia sua atenção para temas estranhos ao mundo, mas para problemas reais enfrentados pelo homem moderno. “Os pensamentos das gerações anteriores não podem servir de travesseiro sobre o qual descansar”, dizia. A história da Igreja não acabou, não é tradição morta, devemos continuar a trabalhar nela”.
O livro Espírito no mundo tornou Rahner instantaneamente famoso entre os teólogos em 1939. Do que trata?
Nessa obra ele trata de Tomás de Aquino. Seu irmão Hugo pensava que o título fosse estúpido e dizia que era banal. E mesmo o subtítulo não é vendável como simples título principal: “Sobre a metafísica do conhecimento finito em Tomás de Aquino”. Nela, Rahner falava de um Deus misterioso e insondável. Ele não dizia: “Eu sei exatamente o que é Deus”.
De que ambiente vinha Karl Rahner?
Ele vinha de uma família de professores de Freiburg, devotos, mas, como ele mesmo esclarecia, não demais. Rezavam muito, o terço, iam à missa. Seus pais também acolhiam hóspedes de fora, que moravam de aluguel na casa e eram cuidados. Entre eles estava o filho do embaixador italiano, falecido jovem e posteriormente beatificado: Pier Giorgio Frassati. O jovem Karl brincava com ele na floresta. Seu crescimento na fé foi natural. Rahner fazia parte de um movimento juvenil católico, o Quickborn, no qual valores como liberdade e autodeterminação eram importantes. Em seguida obteve o diploma do ensino médio e três semanas depois, em abril de 1922, ingressou na ordem dos jesuítas.
Parece uma escolha direcionada.
Ele absolutamente queria isso. Seu irmão Hugo já havia ingressado em 1919 e havia se tornado um historiador da Igreja. A formação jesuíta naquela época significava: dois anos de noviciado, três anos de estudos de filosofia, um ou dois anos de experiência profissional, por exemplo numa escola. Depois, quatro anos de teologia. Após três anos de teologia o formando se tornava padre.
Quase parece um quartel.
Eles não voltavam para casa durante a formação. Eram como doze anos de quarentena, um trabalho espiritual e intelectual. Um exercício jesuíta. Num colégio, 150 ou 200 candidatos ao sacerdócio viviam isolados e usavam batina. Durante um período de formação na Holanda, Karl Rahner foi apicultor — por quê? Porque com as abelhas ele tinha permissão para fumar. De resto, ele sempre apenas estudou. Em 1932 foi ordenado padre pelo Cardeal Faulhaber em Munique. Na época, Faulhaber disse aos candidatos após a missa: “Tempos difíceis os aguardam, ser padre agora não é fácil”.
Os nacional-socialistas estavam prestes a chegar ao poder.
Poucos meses depois da ordenação veio a tomada do poder. Rahner fez seu doutorado primeiro. Foi influenciado pelo filósofo de Friburgo Martin Heidegger, cujos conceitos em parte adotou. Um ano após seu doutorado teológico em Innsbruck, já havia obtido a habilitação. Em 1937 tornou-se docente de teologia em Innsbruck e tratou da graça, isto é, da capacidade de Deus de acolher as pessoas no amor sem pré-condições. Em 1938, a Áustria foi anexada pela Alemanha nazista. A partir daquele momento ele não pôde mais trabalhar normalmente.
Ele fugiu?
Os nazistas fecharam a faculdade de Innsbruck. Muitos jesuítas exilaram-se na Suíça. Rahner estava realizando uma conferência em Leipzig na época. Ele voltou e o internato onde morava foi ocupado pela Gestapo. Eles lhe disseram: “Você tem 30 minutos para fazer as malas”. Ele foi banido da Gau e inicialmente foi para Viena, onde continuou a ensinar clandestinamente e desempenhou atividades pastorais sob a orientação do cardeal Innitzer.
Quando Rahner começou sua carreira acadêmica como jovem professor na década de 1930, qual era a situação da teologia católica e da Igreja, mesmo fora da Alemanha?
Estava fervendo. Havia os movimentos juvenis críticos e tentativas de reforma da liturgia. No início do século XX havia um movimento que foi chamado de modernismo. Pio X demonizou as ideias modernistas e, em 1910 impôs, um chamado juramento antimodernista que todo clérigo tinha que prestar. Os papas mais uma vez tentaram limitar tudo. O sistema de ensino neoescolástico prevalecia nas faculdades teológicas em todo o mundo.
O que significa?
Tudo na teologia tinha que ser baseado em Tomás de Aquino, o mais importante escolástico da Idade Média.
A língua era o latim. Por isso era possível vir de Nova York a Innsbruck e entender tudo o que se falava nas aulas. As respostas eram as mesmas em todo o mundo. O que é a graça? Teriam dito a mesma coisa na Cidade do Cabo e em Paris. Todos os livros didáticos eram idênticos. A neoescolástica era estéril. Mas: o cânone das perguntas sobre a vida há tempo havia se tornado completamente diferente. Karl Rahner conhecia bem a tradição, mas se perguntava: o que tudo isso significa para as pessoas de hoje?
Obviamente ele não vivia numa torre de marfim.
Não, ao contrário de Joseph Ratzinger, que escrevia de forma brilhante, mas que vivia num paraíso platônico de ideias do qual não desceu. Naquela época se estudava teologia como se estivéssemos numa sociedade composta apenas por homens, só por acaso se encontrava uma mulher e não havia nenhuma preparação para uma vida pastoral por meio dos estudos. O credo de Rahner era: a teologia não é “l'art pour l'art”, mas deve servir para anunciar. Quando, depois da guerra, ele ensinou junto com seu irmão em Innsbruck, eles se tornaram um ímã. Bispos de todo o mundo enviavam seminaristas a eles.
Com as suas abordagens modernas, Rahner encontrou-se em oposição ao magistério romano?
Nunca. Ele nunca deixou dúvidas sobre a sua eclesialidade. Bem, na década de 1950 ele recebeu uma chamada pré-censura quando se tornou impopular entre os conservadores com um manuscrito que tratava do dogma da assunção corporal de Maria ao céu. Outros críticos desse dogma, incluindo os dominicanos franceses, só puderam deixar o seu convento sob proteção. Muitos foram excomungados. Houve uma glaciação teológica.
Lemos sobre conflitos com Roma na década de 1950 e com a ordem. Por que ocorreram? Não estavam todos felizes por haver uma estrela dos jesuítas?
Ele não era a única estrela e tinha que trabalhar como parte de uma equipe. Ele não podia escolher as suas aulas. No início era: você é o mais novo, você ensina a graça, a criação, o pecado. Sempre estava ocupado com sermões, sempre no confessionário. Isso o deixava abatido. Ele sabia que não poderiam existir dois mundos diferentes: o ensino nobre e o cuidado pastoral. Todos queriam seus escritos naqueles anos. Mas admito: os jesuítas também são humanos. Havia ciúmes e invejas. Sempre se acabava em conflito com Roma por causa de denúncias. Era assim que funcionava na época, é preciso dizer com clareza.
Ele escreveu apenas sobre alta teologia?
Não, ele também escrevia sobre pastoral carcerária, sobre a missão nas estações ferroviárias ou sobre a biblioteca paroquial. Na década de 1950, tornou-se coeditor do Lexikon für Theologie und Kirche, que ainda é atual hoje em dia. Cada faculdade o tinha em suas prateleiras, então todos o conheciam. Seus escritos foram traduzidos para vários idiomas. E ele não tinha escritório nem secretário. Era ajudado por jovens jesuítas e estudantes, a quem encorajava, mas certamente também explorava. Karl Lehmann, que mais tarde se tornou cardeal, era um deles.
Que tipo de “pastor” era Rahner?
Ele levava todo mundo a sério. Organizava retiros, era uma espécie de guia espiritual. Ele não deixava que o professor circulasse por aí. Ele roubava comida da cozinha da universidade para os filhos de um amigo. Ele nunca passou a ninguém a sensação de que sua pessoa o incomodava. E por outro lado, falava com cientistas ou mesmo marxistas do mais alto nível. Com eles o Padre Rahner estava no Olimpo.
Nesse contexto, devemos falar de Luise Rinser. Uma sua conhecida especial.
Ela escrevia poesia e era divorciada de Carl Orff. Absolutamente queria conhecer Rahner. Ele se tornou o seu guia espiritual. E depois se viu completamente indefeso. Porque provavelmente se apaixonou pela primeira vez na vida, quando já tinha cinquenta anos. Suas cartas provam isso. Ela se chamava Wuschel, ele Fisch.
Sabemos até onde isso foi?
Ela teve relações com um abade beneditino, o que o deixou com ciúmes. Certa vez perguntei a Karl Lehmann: por que vocês não o ajudaram a sair dessa? Ele respondeu que não ousavam. Quando saiu, seus críticos disseram que ele levava uma vida dupla. Certamente, ele não fez isso.
No entanto, isso o torna humano.
Por um lado, sim. Por outro lado, hoje temos uma sensibilidade diferente quanto às transgressões no cuidado pastoral.
Em 1959, o recém-eleito João XXIII convocou o Concílio Vaticano II. A Karl Rahner foi pedido para participar. Como se chegou a essa decisão?
O que todos se perguntavam era: depois do Concílio Vaticano I de 1869/70, há necessidade de outro Concílio, se o Papa pode agora insistir na infalibilidade e tem um primado de jurisdição e pode decidir tudo sozinho? João XXIII achava que era necessário. Ele viu o enorme atraso das reformas. Ele não queria mudar a doutrina, mas queria atualizá-la, chamava isso de “atualização”. Os conservadores pensavam: faremos um pequeno concílio, um concílio relâmpago. Tudo acabará em dois meses. Em vez disso, demorou três anos.
Como estavam as coisas no Vaticano?
No Concílio Vaticano I havia aproximadamente 800 bispos em Roma. Em vez disso, cerca de 2.500 bispos mais os assessores foram a Roma para o Concílio Vaticano II, o que significa que 15.000 homens envolvidos no Concílio estavam presentes nas sessões em Roma. As sessões aconteceram de setembro a dezembro. No início, Rahner não era um grande fã da ideia do Concílio. O que mais pode acontecer?, ele pensava.
Depois mudou de ideia?
Recebeu os esquemas preparatórios que haviam sido escritos na Cúria em Roma. Deixaram-no chocado. Ele disse: um concílio não pode permitir-se uma filosofia tão absolutamente inaceitável! Essas pessoas não têm a menor noção de ação pastoral! Ele percebeu que sem um forte empenho as coisas passariam em silêncio.
O seu bispo o levou consigo para Roma como assessor?
Cada bispo podia trazer um teólogo, Rahner veio para ficar ao lado do cardeal Franz König. Como Rahner era tão importante e trabalhador, o próprio Papa o nomeou perito, conselheiro. Joseph Ratzinger também se tornou um perito.
Que relação existia entre estas duas estrelas, talvez os últimos teólogos da história a serem reconhecidos na sociedade civil?
Rahner apoiou Ratzinger, que era 20 anos mais novo. No entanto, quando a situação ficou desconfortável na universidade, Ratzinger fugiu. Ele escrevia bem. Mas...
Mas?
Quando ouço que ele foi o maior teólogo depois de Tomás de Aquino ou que foi um “papa teólogo”, penso que é um exagero. Ele tinha uma linguagem compreensível, sim, mas também vinha de um mundo diferente daquele de Rahner. Os dois se encontraram no Concílio e escreveram juntos textos brilhantes, que foram incluídos nos documentos finais do Concílio.
Demorou três anos para redigir esses documentos?
Sim, o trabalho continuou depois das semanas de sessões em Roma. Os teólogos trabalhavam em laboratórios para os textos. É preciso dar-se conta que o Concílio realmente mudou a doutrina, disse coisas que antes eram impensáveis.
Por exemplo?
O Concílio Vaticano I havia declarado que não existe liberdade de consciência e de pensamento para os católicos, que é uma ideia que vem do diabo! O Concílio Vaticano II diz o contrário. Rahner estava envolvido nessa modernização. Depois veio o decreto sobre o ecumenismo com a hierarquia das verdades. Afirma que pode haver salvação também fora da Igreja, até para os ateus. Isso era algo inaudito. Depois houve a renovação completa da Missa, a introdução das línguas locais. O Concílio deu uma virada de 180 graus.
Essa afirmação tradicionalista de que a doutrina é imutável é uma lenda sem fundamento?
Exato. E ao mesmo tempo, no seu primeiro discurso de Natal como Papa à Cúria, Ratzinger disse que a doutrina sempre tem uma continuidade. Tudo entrou em ebulição novamente. Rahner teria gritado bem alto: “Não é assim que funciona, caro Joseph Ratzinger!”, isso teria dito.
O Concílio Vaticano II teria ido ainda mais longe. Na época o Papa retirou alguns temas do Concílio. Planejamento familiar, por exemplo. Outro tema foi o celibato. Muitos pensavam que aos padres teria sido permitida a liberdade de escolha.
Realmente se pensava isso?
Sim, muitos decidiram ser ordenados porque pensavam que o Concílio teria mudado as coisas. Mas não foi assim. A Igreja Católica nunca foi tão apreciada em todo o mundo como na época do Concílio Vaticano II. Foi um despertar geral. Muitas das ideias modernas do Concílio também podem ser reconduzidas ao Padre Rahner. Mas ele não foi o “escritor-fantasma do Espírito Santo” do Concílio, como afirmam as fontes restauradoras.
No entanto, a apreciação mudou…
Nos anos que se seguiram à conclusão do Concílio, as coisas começaram a desmoronar.
No verão de 1968, Paulo VI publicou a encíclica Humanae vitae, na qual proibia a contracepção artificial. Foi uma catástrofe. Depois vieram as nomeações episcopais de João Paulo II na década de 1980, com as quais ele queria alinhar todos novamente. Karol Wojtyla inicialmente participara do Concílio como bispo auxiliar, mas pertencia à minoria teológica. Karl Rahner percebeu esse recuo, que o frustrou bastante. O declínio havia começado. No catolicismo e também nele.
Ele se tornou um idoso decepcionado e amargurado?
Não, mas estava frustrado pelos desenvolvimentos da Igreja pós-conciliar. Ratzinger uma vez também criticou Rahner de forma obscena. Os dois haviam se distanciado um do outro porque Ratzinger havia se tornado subitamente conservador a partir de 1966.
Rahner nunca se tornou bispo, não estava interessado no poder?
Ao contrário de Ratzinger, ele teria o conhecimento necessário da natureza humana para o cargo de bispo. Mas não estaria tão interessado nas cerimônias litúrgicas. Ela era o que os outros chamam de “javali jesuíta”. Não sei se Rahner fosse candidato ao cargo de cardeal. Como cardeal, também estaria vinculado à lealdade do posto. Esse também é um velho truque.
Hans Küng também recebeu a oferta do cargo de bispo por esse motivo. Ele "recusou-se a ser comprado". João Paulo II parabenizou Karl Rahner por seu octogésimo aniversário e Rahner teve uma audiência privada. O Papa perguntou: "O que você está fazendo agora?" Rahner respondeu: "Estou em Innsbruck esperando a morte".
É uma expressão muito triste.
Perto do fim da vida, os jovens jesuítas o levavam para tomar sorvete. Depois do Concílio, estava exausto, cansado, havia dedicado todas as suas forças ao Concílio. Ele definia esse retrocesso como um inverno. Ele tinha uma secretária, a quem muitas vezes pedia para acompanhá-lo de Innsbruck, através do passo do Brenner, até Trento para tomar um café. Ele adorava os carros velozes. Na estrada, ele dizia: “Vamos fazer saltar o cavalo!”
O que o Padre Rahner teria pensado do Caminho Sinodal, o processo de reforma da Igreja Católica alemã?
Especulação. Uma coisa é certa: para ele a teologia era um serviço para as pessoas, não uma ciência contra elas. Ele teria gostado de Francisco.
Se você pudesse transmitir um pensamento importante de Rahner, qual seria?
Nos seus últimos anos de vida, ele falava muitas vezes do esquecimento de Deus: Deus não pode mais ser considerado algo dado como certo. Ele não estava interessado nos discursos sobre as reformas e os impostos eclesiásticos. Mas se perguntava como poderia fazer as pessoas entenderem que existe vida após a morte, que ainda há algo por vir. Para ele tudo isso era óbvio, mas o via desvanecer nas pessoas. Ele frequentemente falava sobre isso com os jovens.
Estamos vivendo uma provação da Igreja, o risco de uma dilaceração. Cada nova modernização leva o Papa a ser suspeito de heresia, continentes inteiros duvidam da sua permissão para abençoar os homossexuais. O que é mais importante no sentido de Rahner: o progresso ao serviço do homem ou a unidade da Igreja?
Não devem necessariamente ser mutuamente exclusivos, ele diria. Mas: a Igreja deve estar ao lado das pessoas, com os marginalizados. Com aqueles que são marginalizados pela vida. Francisco quer mostrar aos conservadores que a sua fidelidade ao Papa dura enquanto o Papa fizer o que eles querem. E se não o fizer, então pensam em voz alta – veja o Cardeal Müller – em como depô-lo. Nenhum Papa encontrou tanta resistência.
Os conservadores dizem que isso está enfraquecendo a tradição.
Posso barrar qualquer processo de reforma apelando para a tradição. Só se pode derrotar os tradicionalistas com a tradição mostrando-lhes que a sua tradição tem no máximo 200 anos. Existem tradições enterradas e suprimidas. É possível escrever algo assim com Francisco. Antes dele não era possível. O sucesso do seu papado dependerá do seu sucessor. Os conservadores já poderiam estar preparando as coisas para que seja um deles. Se um novo papa retirar as reformas, o catolicismo perderá toda credibilidade. Tenho certeza de que o Padre Rahner pensaria da mesma maneira. Ele sempre dizia: “Precisamos de uma boa teologia. Não precisamos de conversas piedosas”. Ele não derrubou nenhum dogma.
O que fará no aniversário de sua morte?
Já escrevi quatro artigos. Toda a minha vida foi caracterizada pelos seus ensinamentos. Fui responsável pelo arquivo de Karl Rahner e li a sua correspondência. Tenho à disposição 32 volumes da edição completa. Isso me comove profundamente pela enorme dedicação com que escrevia. Mas não acredito que conseguirei ter uma visão global da sua grandiosa produção.
Pensávamos que iria para Innsbruck naquele dia.
Ainda não sei, mas ainda me lembro de 31 de março de 1984, quando eu estava em Jerusalém. Ouvimos no rádio que Karl Rahner tinha morrido em Innsbruck no dia anterior. Um jesuíta sentado ao meu lado ficou com a voz embargada. Eu tinha 22 anos, me pegou de surpresa e pensei: e agora?
Qual a importância do Padre Rahner no nível histórico mundial?
Como teólogo, está no mesmo nível de Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Boaventura. Rahner repensou tudo: graça, ecumenismo, cristologia. O Cardeal Lehmann disse certa vez: “Rahner é um homem para depois de amanhã”. Rahner conhecia os documentos da Igreja, “mas eles não me deixam viver”, dizia ele. No próximo ano celebraremos o 1700º aniversário do Concílio de Niceia. O Credo foi escrito lá.
Mas o que tudo isso significa? O que significa “da mesma substância do Pai”? O que significa "verdadeiro homem e verdadeiro Deus"? O que significa “Deus em três pessoas”? O que significa “Jesus é Deus”? Rahner refletiu sobre tudo isso. Ele cunhou a famosa frase: o homem piedoso de amanhã será um místico ou não será.
O que significa?
Se a Igreja como instituição for desmantelada e degenerar num clube que se limita a um certo tipo de comportamentos, então é importante que apenas o indivíduo tenha uma experiência de Deus que o sustente. Rahner se perguntou: como posso educar as pessoas para que isso seja possível? Isso se chama mistagogia. Se a Igreja se torna uma minoria, como podemos fazer com que o indivíduo tenha uma experiência de Deus? Uma ideia desse tipo torna o clero quase supérfluo. Como você vê, o Padre Rahner não era apenas difícil de ler, também era um homem perigoso.
Karl Rahner (1983) Zeugen des Jahrhunderts - Karl Rahner (*1904, †1984) im Gespräch mit Meinold Krauss (ZDF 1983) -