22 Mai 2020
O que há de mais religioso, no sentido da referência à transcendência, do que a encíclica programática Evangelii gaudium e de mais político em relação aos dramáticos problemas ambientais e das mudanças climáticas do que a Laudato si’?
A opinião é de Alfonso Botti, professor de História Contemporânea na Universidade de Modena e Reggio Emilia, em artigo publicado por Vatican Insider, 20-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Corriere della Sera do dia 9 de maio, Ernesto Galli della Loggia escreveu “que, assim que ultrapassa o âmbito das cerimônias e dos ritos, o discurso público de Francisco tende a perder toda a especificidade de tipo religioso”.
A substância do seu discurso público, embora em sintonia com a mensagem do Evangelho, seria pobre “de especificidades ‘fortes’ de tipo religioso”, razão pela qual o seu pontificado marcaria “uma fratura em relação à tradição do magistério papal”.
Para demonstrar o que foi enunciado, ele recorre a dois argumentos. O primeiro é que, em vez de se dirigir a todos os homens de boa vontade, o papa se dirigiria “apenas a uma parte da sociedade, a menos favorecida”.
A segunda fratura (descomposta, seria preciso observar) diria respeito ao “substancial abandono da doutrina social da Igreja”, do “universalismo humanista tão central nas principais resoluções conciliares”, a “acentuada negligência em relação à história cultural do Ocidente”.
A isso se acrescentaria a hostilidade ao capitalismo e aos Estados Unidos, a simpatia pela auto-organização popular de baixo, a aversão aos aspectos formais e institucionais, a partilha das expectativas dos grupos marginais e, finalmente, a esperança de soluções igualitárias no plano econômico perspectivadas na fórmula da “renda universal”. Nada mais próximo do que é anunciado na Boa Nova, mas que faz Galli della Loggia torcer o nariz.
Na opinião dele, de fato, a mensagem do Evangelho e a respectiva referência ao depositum fidei tenderiam a evaporar, como provado pela falta de exortações à necessidade do arrependimento, da conversão “para descobrir o sentido cristão da vida e da morte, ou seja, a verdade da transcendência, elemento constitutivo de toda religião”.
Esvaziado de conteúdos religiosos, o discurso do Papa Francisco acabaria sendo ideológico, “de uma ideologia de fundo populista-comunitário-anticapitalista”.
Agindo assim, a Igreja de Bergoglio teria grande dificuldade para influenciar politicamente na atual situação. Dificuldades demonstradas pela falta de apoio aos países do sul da Europa de tradição católica no confronto no âmbito da União Europeia com os do norte sobre a situação criada pela pandemia da Covid-19, e pela falta de posicionamentos sobre a questão dos direitos humanos e da liberdade religiosos na China e na Rússia.
Até aí, o artigo, que, se por um lado é bastante óbvio ao ressaltar a descontinuidade do atual pontificado em relação aos anteriores, por outro, apresenta uma arquitetura argumentativa muito fraca ao descrever e avaliar a nova orientação.
Deixando de lado a visão confessional subjacente à referência às tradições católicas dos países do sul da Europa, que dá a entender que o papa deveria defendê-los contra os predominantemente protestantes do norte, retomo dois de seus aspectos.
Quanto ao primeiro, a impressão é que Galli della Loggia tem uma ideia muito catequética dos anos 1950 e devocional do “elemento constitutivo” do cristianismo, que certamente continua presente na Igreja, mas que não pode ser apresentada como única e, acima de tudo, como normativa.
A partir desse ponto de vista, observar que o papa é pouco religioso não é algo que deve ser tomado como um tiro irreverente, desde que nos demos conta de que a referência de Galli della Loggia não é ao “elemento constitutivo” do cristianismo, mas sim à sua interpretação daquilo que ele deveria ser, interpretação que, no atual debate eclesial, está se defrontando hoje com outras concepções teológicas e eclesiológicas.
Se muitos pontificados de meados do século XIX tiveram como subtexto cultural Joseph De Maistre e depois Jacques Maritain, na verdade nunca totalmente superados, não se entende por que se deve considerar pouco religioso um papa que se inspira em Karl Rahner.
O que há de mais religioso, no sentido da referência à transcendência, do que a encíclica programática Evangelii gaudium e de mais político em relação aos dramáticos problemas ambientais e das mudanças climáticas do que a Laudato si’?
Com o mesmo critério, não só o Papa Francisco, mas também o santo homônimo seria pouco “religioso”. E como pedir arrependimento e conversão a partir de um púlpito que representa uma instituição que apenas contraditoriamente iniciou o processo de arrependimento (com João Paulo II) e ainda não o da conversão?
O segundo aspecto é aquele que o artigo evita e que, precisamente por isso, surpreende, se possível, mais do que o primeiro, sendo o autor um historiador, ou seja, uma pessoa acostumada pelos protocolos do ofício a colocar as figuras no tempo e no espaço.
O Papa Bergoglio se viu no leme da Igreja depois de anos de não governo da instituição romana, abandonada nas mãos de uma Cúria voraz desde os últimos anos do pontificado de João Paulo II, devido à doença, e não governada pelo seu sucessor por manifesta inadequação para a tarefa, testemunhada pela sua renúncia, depois de 16 anos de incursões na política italiana por parte da Conferência Episcopal Italiana presidida pelo cardeal Camillo Ruini e, como se isso não bastasse, enquanto se deflagrava com as denúncias de tantíssimos casos o escândalo da pedofilia, o maior na história da Igreja desde os tempos da simonia.
No que diz respeito ao espaço, a proveniência de Bergoglio da Argentina não podia deixar de reequilibrar o eixo de uma Igreja historicamente eurocêntrica, quando, hoje mais do que nunca, o Velho Continente encontra uma justificativa demográfica do adjetivo, enquanto, na América Latina atingida pela repressão curial da teologia da libertação, transbordam seitas e pequenas igrejas autoproclamadas evangélicas. Tão evangélica a ponto de apoiarem personagens como Bolsonaro.
Tudo isso em uma fase em que o papa é objeto de uma sistemática campanha de difamação por parte dos setores eclesiásticos mais conservadores. Não se via algo semelhante na Itália desde os tempos de Pio IX. Com a única diferença de que, enquanto naquele época, pelo menos depois de 1849, foram os liberais que se inclinaram contra o papa Mastai Ferretti, agora é a direita que faz isso, desde aquela respeitável e bem-pensante até aquela declaradamente fascista, passando pelo descaradamente soberanista do terço nas mãos.
Entre os séculos XIX e XX, quando a Igreja Católica foi sacudida pelo movimento reformador modernista, a cultura idealista italiana aplaudiu com entusiasmo a sua condenação por parte de Pio X na encíclica Pascendi (1907). Enquanto estavam em gestão os acordos clérigo-moderados, de fato, o catolicismo ia bem assim como estava, ou seja, como fator de estabilidade dos equilíbrios sociais existentes.
É preciso se perguntar se, mais de um século depois, Galli della Loggia não é um epígono, não digo daquela linha, mas sim daquela atitude. No mínimo pela contribuição que ele deu (inconscientemente?) à ofensiva integralista contra o Papa Francisco.
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Quando o papa se inspira em Karl Rahner. Artigo de Alfonso Botti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU