29 Junho 2021
Você sabia que Karl Rahner, ainda em 1965, já se perguntava o que a teologia tinha a dizer sobre o pós-humano? Prenunciando muitas das nossas questões de hoje, o seu ensaio [1] – que tinha como tema a automanipulação do ser humano – não se dedicava a estabelecer uma casuística prática sobre tecnologias específicas, mas delineava uma posição teológica a respeito de questões relacionadas ao aperfeiçoamento humano e às possibilidades pós-humanas. Tudo inserido e enraizado dentro da temática rahneriana da relação do ser humano com Deus.
O texto que segue é uma leitura do pensamento de Rahner, publicada no novo número da revista Concilium, dedicado exatamente a essas temáticas de fronteira. A autora é Jennifer Jeanine Thweatt-Bates, teóloga estadunidense, doutora em Teologia e Ciência pelo Princeton Theological Seminary e professora do Flagger College, nos EUA.
O comentário foi publicado em Teologia@Internet, 28-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O ensaio de Rahner oferece como ponto de partida um argumento para manter a “objetividade cristã diante do futuro humano”. Trata-se da atitude cristã certa em relação ao futuro, também no que diz respeito à possibilidade de um futuro pós-humano – já que os seres humanos sempre foram, para utilizar uma terminologia própria de Rahner, “operáveis”:
“O ser humano sempre bebeu vinho com ‘um propósito específico’, por exemplo, combater a melancolia; cientemente, tomou café como estimulante; buscou, em um nível ainda extremamente rudimentar, uma melhoria da procriação humana; tentou mudar o seu habitus físico com várias precauções (começando pelo cuidado dos cabelos e da barba); tentou elaborar sistemas educacionais válidos ou mudar opiniões ou ideias que já não encontravam mais confirmação na nova realidade; buscou sistemas institucionalizados e não improvisados de doutrinação etc. O ser humano projeta a si mesmo: ainda às cegas, procurando os fins da sua obra e vendo como ainda remotas as possibilidades para realizá-la” (p. 309).
Essas observações colocam Rahner na mesma linha de pensadores pós- humanos que, a partir dessas considerações, argumentaram que “sempre fomos ciborgues”. Nesse sentido, não está acontecendo nada de fundamentalmente novo e, certamente, nada com que valha a pena se preocupar.
Se algo de novo emerge aqui, de acordo com Rahner, é o fato de que estamos descobrindo que somos “operáveis” e capazes de ser mais sistemáticos e intencionais no modo como operamos sobre nós mesmos. Mas isso faz uma certa diferença: uma diferença que Rahner descreve em termos de “uma era radicalmente nova”, sugerindo que essa nova forma de automanipulação pode ser distinguida dos “prelúdios” anteriores pelo fato de ser pluridimensional, por se concentrar no ser humano como sujeito empírico (não espiritual ou transcendental), por ser metódica, precisa e de longo prazo, por dizer respeito ao ser humano como um todo (não apenas a este ou àquele aspecto) ou, melhor, por dizer respeito à humanidade como um todo (em vez das pessoas individuais).
Rahner escreve que essa automanipulação “quer evocar um ser humano novo, diferente, mas não como utopia de um super-homem em uma escatologia profanizada, mas sim como um plano e programa objetivos, como um cálculo científico e um consequente produto técnico” (p. 310).
Rahner não considera que estamos diante de um movimento coordenado, embora eu não acredite que a emergência do trans-humanismo entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 1990 o pegaria de surpresa. Ele descreve a produção desse ser humano novo e diferente como fruto da convergência de diversos interesses em múltiplos setores, que poderiam ser eventualmente coordenados em nível político.
“Essa fábrica [do ser humano novo] ainda não acabou, é verdade. Mas é quase como se, sobre uma superfície muito vasta, se construíssem ao mesmo tempo os vários edifícios [dessa fábrica], os quais se inseririam em um único complexo, precisamente dentro do mundo hominizado: uma imensa fábrica única, na qual o ser humano operável trabalha e vive para inventar a si mesmo” (p. 312).
Mesmo que haja algo nesta nova era que se distingue pela capacidade da humanidade de se automanipular nesse sentido, a “objetividade cristã” continua sendo a posição teológica mais equilibrada e adequada, tanto no que diz respeito a uma oposição reacionária quanto a um suporte acrítico. E isso continua sendo verdade mesmo que as potencialidades que estão se tornando concretas “apresentam aspectos indignos, imorais ou, melhor, em certas circunstâncias sociais, pecaminosos”, e isso continua sendo verdade enquanto os cristãos devem “combater com extrema firmeza [esses tipos negativos de automanipulação], porque constituem as edições modernas da barbárie, do escravismo, do abuso totalitário da personalidade, da construção de uma sociedade massificada” (p. 315). Mesmo assim, se o ser humano “deve querer ser ‘operável’”, isso significa que “o cristão não tem motivo algum para enfrentar esse futuro como se se tratasse do inferno ou do paraíso sobre a terra. Lamentação ou escárnio contradiriam a objetividade cristã” (p. 316).
Rahner também conecta a natureza fundamentalmente “operável” dos seres humanos e sua capacidade de automanipulação com o fato de “dispor de si, essência e tarefa de uma liberdade cristã” (p. 316).
Surpreendentemente, o teólogo jesuíta olha para os expedientes espirituais e transcendentais de automanipulação como antecedentes históricos da nova era radical da automanipulação em sentido empírico. A partir dessa perspectiva, portanto, a automanipulação do eu empírico é uma extensão da automanipulação do eu espiritual ou transcendental, que Rahner considera determinante para o ser humano (p. 317).
Essa orientação deslocaria a “objetividade cristã” invocada por Rahner de um olhar totalmente neutro, super partes, a um olhar cautelosamente positivo.
No pensamento rahneriano, é reconhecível uma distinção entre as “coisas próximas”, o futuro intramundano, e as “coisas últimas”, o “futuro absoluto”, que é a união de toda a criação com Deus: a diferença entre esses futuros não se baseia na sua chegada a um lugar diferente na ordem temporal da sequência dos eventos – ela é ontológica e teológica, não sequencial ou histórica.
Se Rahner considera que não há limites não arbitrários com respeito àquilo que pode ser feito em matéria de automanipulação humana sobre o eu empírico, como extensão do projeto essencialmente humano mais amplo de autotranscendência, esses limites, por sua vez, existem no horizonte futuro absoluto, que, em última análise, é o mistério de Deus.
Como o próprio Rahner admite, “a relação da antecipação do futuro absoluto – que será realizado na escatologia – na fé e na esperança teológica, com a antecipação do futuro intramundano da primeira elaboração e realização da automanipulação do ser humano é complexa e muito difícil de definir” (p. 327). Rahner resolve essa dificuldade reiterando a necessidade de considerar a atividade humana da automanipulação como um upgrade de uma atividade essencialmente humana, em um futuro intramundano que é assumido no futuro absoluto determinado por Deus que, diz Rahner, critica e desmascara essa atividade como não absoluta e a confirma como apropriada (pp. 327s.).
Manter-se em equilíbrio entre os dois polos da questão de contornos tão nuançados é algo muito delicado. Por um lado, moldar o futuro é uma “tarefa da liberdade cristã” para a qual o teólogo alemão desejaria um maior envolvimento por parte dos cristãos:
“Deveríamos fazer ouvir o nosso lamento, porque os cristãos [...] demonstram tão pouca coragem, tão pouca imaginação criativa na elaboração de uma dinâmica ideológica de futuro que oriente a automanipulação do ser humano. Deveríamos fazer ouvir o nosso lamento, porque, em geral, os cristãos se contentam com o papel de sábios carrancudos, de conservadores inimigos de um rápido progresso” (p. 335).
Por outro lado, em forte contraste com as ambições trans-humanistas que vão na direção da extensão ao infinito da vida, pelo menos teoricamente, Rahner identifica com uma certa precisão o ponto em que a automanipulação empírica vai ao encontro dos seus limites, se quiser continuar sendo a tarefa essencialmente humana da autotranscendência: é a morte, escreve ele, a passagem obrigatória para o futuro absoluto (p. 331).
Com isso, Rahner não pretende defender os limites físicos atuais ou o sofrimento como um instrumento de redenção em si mesmo e por si mesmo. Em vez disso, ele reitera que a morte é o sinal de uma finitude inevitável do sujeito humano, independentemente do fato de a automanipulação se realizar ou não.
Na visão rahneriana, parece um fato que, independentemente de quão sofisticada a humanidade tecnológica possa se tornar, a nossa manipulação do eu e do ambiente sempre ocorre dentro de um universo que nunca estará totalmente sob o controle humano: “Cada programação, cada sistema já projetado e calculado levanta problemas novos, imprevistos e imprevisíveis, porque deve operar sobre elementos pré-existentes e ainda não adequadamente penetrados” (p. 332s.).
Os seres humanos são capazes de reconhecer isso, diz Rahner. Independentemente de quais formas de automanipulação ocorrerão no futuro humano e pós-humano, a questão fundamental, portanto, não é como atrasar ou evitar ou derrotar essa morte, mas “se o impenetrável que circunda o ser humano é o vazio do absurdo absoluto ou, em vez disso, a infinitude do mistério de amor, o futuro absoluto que surge por meio da morte, de modo que somente aceitando essa situação o ser humano pode realmente descobrir e ‘inventar’ a si mesmo” (p. 333).
A morte, portanto, não é uma derrota, porque uma “vitória” efetivamente não é possível. Antes, é sair do mundo intramundano e entrar no futuro absoluto.
A morte não é apenas o ponto zero, a passagem obrigatória para o indivíduo que quer se mover rumo ao futuro absoluto, mas também o ponto zero para a humanidade como um todo. […] Não é necessário que caiam estrelas do céu. Pode ser o fim de uma morte coletiva ou o fim de uma sociedade (devido, por exemplo, à explosão de uma bomba atômica); pode ser um fim físico por uma catástrofe cósmica; pode ser (quem pode saber com certeza? Mas o cristão tem o direito de refletir também sobre o absurdo) que a humanidade sofra uma regressão biológica ao nível de um rebanho de australopitecos tecnicamente inteligentes e autodomesticados, ou ao estado de insetos que não conhecem a dor da transcendência, da história e do diálogo com Deus, que, por isso, se autoextinguem coletivamente, embora continuando a existir em um nível meramente biológico. Tal conceito [...] não deve, em princípio, levar a teologia cristã da história ao pânico. De fato, ela sabe que a história humana sempre chega, aos olhos de Deus, à salvação ou à condenação, ou deixa de ser história de pessoas espirituais (pp. 333ss.).
Para Rahner, o problema não é a forma concreta do humano ser-em-um-corpo; não está proibida a automanipulação daquilo que ele chama de eu empírico: na opinião dele, ela faz parte daquilo que os seres humanos sempre fizeram e devem continuar fazendo, como expressão de transcendência.
Decorre disso uma refutação direta de qualquer teologia que dependa de um conceito de “natureza” essencial estática, divinamente dada, que não deve ser remanejada de forma alguma. Mas é possível, reflete Rahner, que algo dê errado na automanipulação. E isso se: 1) a humanidade considerar, erroneamente, que qualquer erro pode simplesmente ser corrigido, apagado ou convertido por meio de manipulações sucessivas, ao invés de entender que a ação humana ocorre dentro de uma história que prossegue em sentido único, e que a automanipulação traz consequências irreversíveis; 2) a humanidade fracassa no projeto de automanipulação entendida como “o lugar e instrumento concretos da realização ativa do amor ao próximo”, que possibilita “a abertura ao futuro absoluto assim como Deus o quer, embora a humanidade nunca poderá, por si mesma, realizá-lo” (p. 331).
Se, como defende Rahner, na base de uma correta ideia de automanipulação, está o desejo de continuar possibilitando a abertura ao futuro absoluto de Deus para a humanidade e a pós-humanidade, então eu acredito que dois aspectos estão envolvidos: em primeiro lugar e sobretudo, que a morte entendida como “passagem obrigatória para o futuro absoluto” é um aspecto não manipulável do eu empírico; e, em segundo lugar, que aquelas formas de automanipulação que buscam a invulnerabilidade representam um erro teológico e ético.
1. K. Rahner. L’uomo come oggetto di esperimentazione. Considerazioni teologiche sull’automanipolazione dell’uomo. In: idem. Nuovi saggi III. Roma: Edizioni Paoline, 1969, pp. 305-336 (aqui 314). As próximas referências das páginas deste artigo serão indicadas entre parênteses diretamente no corpo do texto.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Rahner e os ciborgues: o futuro do passado? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU