23 Janeiro 2020
A única alternativa para o homem não se tornar escravo da inteligência artificial será se transformar em um ciborgue conectado. Essa é, ao menos, a teoria de Elon Musk, o imaginativo criador do carro elétrico Tesla, do foguete Space X e outra miríade de projetos futuristas, que incluem a pitoresca ambição de colonizar Marte. “Se não somos capazes de vencer um robô, o melhor é nos transformarmos em uma máquina”, disse em tom de advertência.
A reportagem é de Carlos A. Mutto, publicada por La Nación, 16-01-2020. A tradução é do Cepat.
Para evitar que o homem acabe submetido às criaturas geradas pela inteligência artificial, sua startup científica Neuralink propõe - em resumo - conectar o cérebro humano ao computador através de um cordão neural (laço neural). O microprocessador miniaturizado que apresentou à imprensa em julho passado, chamado N1, é um minúsculo chip de 1 cm2, composto por 96 fios mais finos que um fio de cabelo, com 32 eletrodos cada um. Uma vez implantado “da maneira menos invasiva possível”, permite ativar certas zonas neuronais.
Como outros projetos semelhantes, esse dispositivo foi inicialmente concebido para responder a desafios terapêuticos precisos, como a necessidade de tratar certos distúrbios neurológicos - entre eles o Alzheimer -, para devolver à visão aos cegos, resolver problemas de motricidade ou transmitir pensamentos através de um telefone inteligente. “Pela primeira vez na história, agora temos o potencial de resolver esses tipos de problemas”, disse Matthew MacDougall, neurocirurgião-chefe da Neuralink.
O sistema, de acordo com seus promotores, foi experimentado com êxito em ratos e símios. Apesar dos progressos conquistados por uma centena de cientistas que trabalham no Neuralink, ainda está longe o momento de poder iniciar os implantes que transformarão o homem em um ciborgue. Esse novo termo, formado a partir das palavras em inglês cyber e organism, foi adaptado como “cíborg” pela Real Academia Espanhola para se referir a “seres compostos por elementos orgânicos e cibernéticos”.
O acoplamento de alta tecnologia com uma humanidade aumentada, capaz de se tornar realidade a curto prazo, abre possibilidades infinitas. Enquanto neste primeiro estágio a Neuralink privilegia seus propósitos terapêuticos, outro objetivo essencial de uma simbiose entre inteligência humana e inteligência artificial pode ser neutralizar a “supremacia” dos robôs e evitar a “perda de utilidade do homem”.
Essa hipótese responde à preocupação de alguns cientistas, convencidos de que o impacto destrutivo do homem no planeta está empurrando o mundo do Antropoceno para o Novaceno. Em seu livro The Coming Age of Hyperintelligence (A futura era da hiperinteligência), escrito em seu chalé, em Chesil Beach, para comemorar seus 100 anos, o cientista britânico James Lovelock argumenta que “os ciborgues serão os protagonistas determinantes da seleção natural que abre essa nova era geológica, porque podem se reproduzir e evoluir, pensarão milhares de vezes mais rápido que a mente e serão mais inteligentes que os humanos”.
O famoso caso do norte-americano Neil Harbisson, que se apresenta como o primeiro ciborgue reconhecido por um governo, é emblemático nesse sentido. Durante seus primeiros 16 anos, viveu com acromatopsia, uma forma de daltonismo que o impedia de distinguir cores, e só lhe permitia ver a realidade em branco, preto e cinza. Essa restrição foi dramática para um homem que decidiu se dedicar às artes plásticas. Sua vida mudou com a implantação de um eyeborg (olho cibernético), um sensor que detecta a cor (por sua longitude de onda) e a transforma em uma nota musical. Graças a esse dispositivo, pode “ouvir” as cores. Atualmente, é capaz de “ouvir” até 360 tonalidades diferentes. Com a ajuda de um chip que funciona como uma aplicação suplementar, adicionada ao eyeborg, ultrapassou as fronteiras do espectro visível para acessar o das radiações eletromagnéticas, como o infravermelho e o ultravioleta. Nesse sentido, Neil Harbisson não tem nada a invejar no Super-Homem.
Após depender durante anos de fones de ouvido, decidiu que o eyeborg seria parte de seu corpo e o fundiu com o seu crânio, permitindo ouvir as cores por ressonância óssea no cérebro. Para carregar o eyeborg, usa a energia do seu corpo.
Por décadas, cientistas e escritores de ficção científica - como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke - especularam sobre um futuro no qual os humanos se fundiriam com máquinas. Na opinião de Lovelock, esse momento está batendo à nossa porta. Para não alarmar a opinião pública, alguns especialistas preferem definir esse fenômeno como “realidade aumentada”. Outros trabalhos de pesquisa e grupos de estudo acreditam que, do ponto de vista científico, é mais correto falar em transumanismo. Postulam que a humanidade deve usar a tecnologia para controlar conscientemente sua evolução, a fim de melhorar as habilidades do homem a ponto de dizer que somos “pós-humanos”. Os teóricos dessa corrente afirmam que a vida não deve constituir o fim da linha evolutiva do sapiens. “Somos 'humanos em transição’ com potencial para sermos mais inteligentes, ganhar maior controle sobre nosso entorno e viver mais tempo e até superar a morte completamente”, argumenta Natasha Vita-More, presidente do think tank Humanity+.
Dois dos principais apóstolos dessa teoria são o cofundador do Google, Larry Page, e o diretor de engenharia de sua empresa, Ray Kurzweil. Esses dois gênios das novas tecnologias preveem que nas próximas décadas haverá rupturas essenciais em três áreas críticas: uma revolução genética, que permitirá “reprogramar nossos genes” e criará medicamentos capazes de atacar as doenças em nível molecular, uma revolução nanotecnológica, que abrirá o caminho para a “reconstrução do mundo físico, átomo por átomo, de nossos corpos e cérebros”, e uma revolução cibernética, que levará a inteligência artificial a um nível sensivelmente superior ao cérebro humano.
A chave para essa visão é a convicção de que a capacidade para isso virá em breve e, quando isso acontecer, a mudança será rápida e traumática.
Prolongando o que o professor de ciência da computação, Vernor Vinge, que também era escritor de ficção científica, escrevia nos anos 1990, Kurzweil calcula que a intersecção dessas três revoluções - previsíveis em meados do século – provocará “uma mudança tecnológica tão rápida e tão profunda que alterará de forma irreversível as características da existência humana no planeta”.
Os próprios transumanistas observam que o discurso de Kurzweil sobre mutações aleatórias da evolução em direção a um futuro imediato de perfil pós-humano tem um aspecto quase religioso, ainda que de dimensão secular: “Essas revoluções tecnológicas nos permitirão transcender nossos frágeis corpos com todas as suas limitações. A criação de um mundo assim é, em essência, a Singularidade” (assim, com letra maiúscula). Outros a definem como uma nova ideologia.
Sem ser mais indulgente com o pós-humanismo, o cientista político Francis Fukuyama suspeita que o transumanismo encobre uma ideia muito mais perturbadora porque - entre outros riscos - ameaça originar uma catarata de fanatismo e desvios sectários que afastarão o mundo da utopia do ciborgue. Além disso, e esse é o maior perigo, pode aprofundar as desigualdades do planeta e afastar a humanidade da sonhada hiperdiversidade. A partir de certo ponto, o mundo corre o risco de se deparar com o abismo de uma distopia como a que profetizavam George Orwell, Aldous Huxley e Ray Bradbury.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O pós-humanismo bate à porta: do Homo sapiens ao ciborgue - Instituto Humanitas Unisinos - IHU