27 Abril 2016
"Em 'Hearers of the Word' (O ouvinte da palavra), Rahner reafirma não só a realidade da transcendência como também a realidade de Deus, quem não obstante sempre ultrapassa ser plenamente compreendido pela humanidade", escreve William Madges, professor de teologia histórica na St. Joseph’s University, Filadélfia, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 25-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Foto: O padre jesuíta Karl Rahner (Arquivo de fotos do National Catholic Reporter) |
A primeira edição do livro “Hörer des Wortes” (O ouvinte da palavra), do padre jesuíta Karl Rahner (1904-1984), apareceu em 1941. Era a compilação de 15 conferências que ele proferiu nas Semanas Universitárias de Salzburg em 1937 concernentes aos “Fundamentos de uma Filosofia da Religião”. O texto de 1941 foi revisado, com a aprovação de Rahner, por Johannes Baptist Metz; a revisão foi publicada em alemão no ano de 1963 e em inglês, com o título “Hearers of the Word” [Karl Rahner,Herder & Herder: 1969), em 1969. Como Metz observou em seu prefácio à edição revisada, a publicação original do livro nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial foi um motivo importante para que a sua contribuição à filosofia da religião não recebesse a atenção que merecia, o que só ocorreu décadas mais tarde.
Descobri Rahner e este seu livro um ano antes de terminar a minha pós-graduação, o que ocorreu quatro anos depois de sua publicação em língua inglesa.
“Hearers of the Word” (O ouvinte da palavra) é uma obra de antropologia fundamental teológica. Nela, Rahner apresenta a pessoa humana como o ouvinte possível da revelação possível e gratuita de Deus na história. Da mesma forma como aconteceu com a sua importante obra filosófica anterior, “Geist in Welt” (O espírito do mundo), a abordagem de Rahner ao tema abordado teve a influência da metafísica tomista e da ontologia fenomenológica heideggeriana. “Spirit in the World” (O espírito do mundo) e “Hearers of the Word” (O ouvinte da palavra) juntas fornecem as bases filosóficas do pensamento teológico de Rahner.
Uma das ideias fundamentais que Rahner desenvolve em "Hearers of the Word" (O ouvinte da palavra) é potentia oboedientalis, ideia segundo a qual os seres humanos orientam-se pela sua própria natureza em direção à autocomunicação de Deus. Rahner fez essa asserção, e tentou demonstrar a sua irrefutabilidade, num contexto social e intelectual que questionava a realidade divina e o significado da existência.
Embora sérias interrogações sobre a crença em um Deus teísta fossem levantadas desde a Idade da Razão, foi só na metade do século XX que a dúvida e o ceticismo haviam descido do ambiente formado pelas elites acadêmicas e começaram a permear segmentos mais amplos da população em geral. O custo humano horrível da Segunda Guerra Mundial contribuiu para uma sensação crescente da ausência de Deus. A questão sobre o significado da vida tornou-se mais urgente.
Em “Le Mythe de Sisyphe” (O mito de Sísifo, 1942), publicado um ano depois de “Hörer des Wortes”, Albert Camus descrevia a absurdidade de nós fazermos continuamente a pergunta sobre o significado da vida quando, conforme falou, não existe significado algum. A absurdidade deste paradoxo encarna-se na imagem do Sísifo, quem empurra repetidas vezes uma rocha montanha acima somente para vê-la descer até a chão, exigindo-lhe que recomece o processo continuamente.
De modo contrário a Camus, Rahner sustentou que este questionamento inextinguível não era absurdo, mas, em vez disso, era um traço constitutivo da natureza humana, que nos atrai em direção àquele mistério sagrado chamado Deus.
Mas, para muitos na década de 1960, Deus – pelo menos o Deus como concebido tradicionalmente – precisava ser rejeitado para que a liberdade e a vida humanas pudessem florir. Três anos antes da publicação da tradução inglesa de “Hörer des Wortes”, uma capa de abril da revista Time perguntou, em grandes letras vermelhas postas sobre um fundo preto: “Is God Dead?” (Deus está morto?).
Thomas J.J. Altizer, figura importante no movimento teológico da morte de Deus, afirmava num ensaio de 1964, reimpresso em forma de livro em 1966: “Deus morreu em nosso tempo, em nossa história, em nossa existência. O homem que escolhe viver em nosso destino não pode nem conhecer a realidade da presença de Deus tampouco compreender o mundo como sua criação; ou, pelo menos, não pode mais responder – seja interiormente, seja cognitivamente – às imagens cristãs clássicas do Criador e da criação”.
Baseando-se em Nietzsche e em Martin Heidegger, Altizer explicou: “Um dizer-não a Deus (a transcendência do Sein) torna possível um dizer-sim à existência humana (Dasein, existência total no aqui e agora)”.
Hearer of the Word : |
“Deus não é um dado que pode ser compreendido diretamente em seu verdadeiro si pelo homem e sua experiência”, escreve Rahner. Deus “revela-se a cada vez que o homem inquire tudo o que existe, mas que permanece cognoscível somente como a causa remota daquilo que é”.
Enquanto pensadores ateus afirmavam a absurdidade e a insignificância da existência, Rahner apelava para a experiência humana, na qual alegou descobrir a “abertura do ser e do homem” e a transcendência em direção a Deus. Diferentemente dos que concluíam que Deus deve morrer para que a liberdade humana se atualize (plenamente), Rahner mostrava que a nossa abertura fundamental ao Ser – a Deus – não cerceava a nossa liberdade, e sim a fundamentava e autorizava.
Lançando mão da noção heideggeriana de que a pergunta pelo sentido do ser de alguém é precedida por uma “pré-compreensão/antecipação” (“Vorgriff”) do horizonte de significado do mundo, Rahner escreve: “Da necessidade (…) a pergunta sobre o ser faz parte da existência humana, porque ela é concomitante a toda proposição que o homem pensa ou profere. Ele não seria humano se assim não pensasse e falasse. Toda declaração é uma declaração sobre alguma coisa existente específica e é feita contra o pano de fundo de um conhecimento anterior porém implícito do ser em geral”.
Na medida em que Rahner desenvolve o seu pensamento, ele chega à conclusão de que a pessoa humana é “receptividade absoluta para ser puro e simples”. Rahner chamou espiritualidade esta constituição básica da pessoa humana. Ele continua:
“O ser humano é espírito, isto é, ele vive sua vida num permanente alargar-se na direção do absoluto, em abertura a Deus. Essa abertura a Deus não é uma contingência que pode surgir aqui ou ali à vontade no homem, mas é a condição da possibilidade daquilo que o homem é e precisa ser, mesmo na vida mais desamparada e mundana. A única coisa que o faz um homem é que ele está para sempre na estrada para Deus, esteja ele claramente ciente deste fato ou não, queira ele desejar sê-lo assim ou não, pois ele é sempre a abertura infinita do finito a Deus”.
Ao conhecer Rahner já em idade adulta, o apelo de sua obra foi múltiplo. Primeiro, havia o seu método. Em vez de argumentar para as verdades das crenças cristãs sobre a realidade de Deus e da natureza humana com base nas Escrituras ou no magistério da Igreja, Rahner buscava estabelecer a verdade aqui dirigindo a atenção à experiência humana.
Este seu método pediu-me que voltasse para dentro de mim mesmo e refletisse sobre o processo de aquisição de conhecimento, exigiu que eu ponderasse sobre por que nós humanos somos criaturas que fazem perguntas e que, não importando quantas respostas obtenhamos, sempre teremos mais outras a formular: são perguntas em busca de uma resposta que pode saciar essa sede aparentemente insaciável.
Para mim, o método de Rahner abriu a possibilidade de captar a inteligibilidade das convicções cristãs com base nas experiências com as quais pude estabelecer uma relação com os ensinamentos da Igreja, e não simplesmente aceitar tais ensinamentos unicamente com base na autoridade de um outro.
Um segundo motivo está relacionado com este primeiro. Rahner deu um belo exemplo de como se pode ser um cristão católico crente possuindo, ao mesmo tempo, um intelecto questionador.
A aceitabilidade do fazer perguntas críticas – mesmo vivenciando dúvidas ocasionais – foi uma mensagem mais do que bem-vinda para mim em minha vida de jovem adulto. Este seu exemplo, porém, carregou-me e me apoiou para além dos meus anos iniciais de vida adulta: na medida em que buscava realizar os estudos de pós-graduação e, depois, ingressar em uma carreira teológica profissional, cobrindo mais de três décadas, eu muitas vezes me vi voltando a Rahner para inspiração.
Na medida em que a pessoa humana se constituição de transcendência e liberdade e na medida em que Deus é sagrado (e completamente) um mistério, Rahner encorajava os teólogos a exercitarem as suas liberdades para explorar este mistério de forma criativa. Ele me inspirou e muitos outros a não ter medo de interpretar e aplicar a tradição cristã em novas maneiras nos diferentes contextos do nosso mundo.
Conforme deixou claro em “Free Speech in the Church” (Liberdade de expressão na Igreja, 1959), Rahner estendeu este direito à manifestação das opiniões próprias para todo o povo de Deus, mesmo se elas nem sempre contassem com a aprovação eclesiástica oficial.
Ainda que a obra teológica de Rahner tenha desempenhado um papel importante em minha decisão sobre uma carreira futura, ele não foi a única influência. O Concílio Vaticano II, em que ele fora um perito teológico, foi o outro fator. A orientação pastoral do Concílio; a mensagem de São João XXIII do “remédio da misericórdia” em lugar de uma linguagem condenatória; a postura aberta e dialógica do Concílio com respeito ao mundo moderno; e o seu desejo de construir pontes de entendimento com outros cristãos e outras religiões – isso tudo apoiou a minha decisão, depois de frequentar uma escola primária católica e uma escola secundária e uma faculdade jesuíta, de continuar a minha formação em uma instituição não católica.
Quando iniciei os meus estudos de pós-graduação na Faculdade de Teologia da Universidade de Chicago em 1975, o espírito rahneriano e conciliar de diálogo e abertura era palpável. O corpo docente incluía teólogos e pesquisadores da religião vindos de diferentes igrejas cristãs bem como de outras tradições religiosas.
Os católicos entre os docentes incluíam David Tracy, Anne Carr e Bernard McGinn, e os alunos católicos constituíam a maioria do corpo estudantil naquele que começou como um seminário batista. Esta Faculdade de Teologia apresentava um ambiente incentivador no qual o questionamento criativo que Rahner encorajava podia florir.
“Hearers of the Word” (O ouvinte da palavra) não é um livro fácil. Ele está repleto de conceitos e terminologia tirada do tomismo transcendental, da ontologia e da fenomenologia moderna. Embora “Foundations of Christian Faith: An Introduction to the Idea of Christianity” (Fundamentos da fé crista: uma introdução à ideia de cristianismo, Seabury, 1978) tenha fornecido, na sequência, uma introdução mais acessível às bases filosóficas da teologia de Rahner, foi o meu encontro com estas ideias em “Hearers of the Word” que deu o formato definitivo à trajetória de minha vida profissional e que me apresentou um significado existencial profundo.
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Rahner e o livro “Hearers of the Word” (O ouvinte da palavra) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU