23 Abril 2024
"Hoje está muito na moda discutir sobre catástrofe, o fim iminente da humanidade e do mundo. A emergência é o álibi para justificar a exceção. O apocalipse não é destino. Nem escolha", escreve Rosario Aitala, juiz do Tribunal Penal Internacional, em artigo publicado por Avvenire, 21-04-2024.
A guerra é um assunto político. Envia-se para matar e morrer por egoísmo, pelo poder. Para controlar territórios, recursos, almas. Para resolver controvérsias ou vingar erros. Olho por olho.
Retribuir o mal com o mal. “Uma loucura”, repete o Papa Francisco querendo dizer que nunca é um mero intervalo de sangue e dor após o qual tudo se recompõe. A guerra, escreve Natalino Irti, decreta ocasos e promove novas ordens. Ou, mais frequentemente, desordens: “O que surge ou é anunciado está muitas vezes fora de qualquer plano de estadistas e governos". Encontramo-nos nessa encruzilhada da história, mais uma vez.
A ética da guerra é expressa no direito internacional, que se esforça para tornar justo o que é sempre iníquo. O direito fala com duas vozes. Com uma, dita as condições para que o recurso à força armada seja legítimo. Com a outra, fixa as normas a que os beligerantes devem se ater na condução das hostilidades.
Primeiro. A tradicional liberdade absoluta para os Estados usarem a força armada foi temperada pelo Pacto da Liga das Nações em 1919 e dez anos depois pelo Tratado de Renúncia à Guerra como instrumento de política nacional. Chegou a Segunda Guerra Mundial e em 1945 a Carta das Nações Unidas que assume o monopólio do uso da força armada no Conselho de Segurança. Os estados podem usar a violência apenas para se defender de um ataque em curso e como medida preventiva quando a agressão for iminente e não houver outra forma de evitá-la, desde que o uso da força seja proporcional. A retaliação armada, a vingança, é proibida. Vale o princípio da não reciprocidade dos ilícitos. Opostas imoralidades não se compensam.
A violação do direito internacional por um Estado não permite que aquele que sofreu um dano injusto reaja com outra ilicitude. É legítimo contrariar a violência em curso, ou seja, defender-se, não fazer justiça arbitrariamente a sangue frio. Nos dias de hoje a violência armada é inadmissivelmente justificada como um direito de defesa. É um perigoso engano de rótulos.
Os Estados adotam frequentemente uma moral dupla e tripla. Condenam as ações iníquas de inimigos e adversários, toleram aquelas de aliados e amigos. Uma deriva prejudicial que pode desencadear uma espiral incontrolável de violência primitiva e arbitrária.
Segundo. Os Estados há muito desenvolvem costumes e acordos para limitar a brutalidade das guerras desregradas. A gramática do direito dos conflitos armados gira em torno de três princípios.
“Humanidade”, que proíbe o uso de meios e métodos bélicos que causam mal e sofrimentos supérfluos.
“Distinção”, que proíbe ataques contra civis e bens não militares e aqueles indiscriminados, realizado por meios ou métodos que gerem danos incidentais imoderados a não combatentes.
“Proporcionalidade”, que proíbe ações que possam levar a perdas humanas e danos materiais não proporcionais à vantagem militar. O direito internacional "humanitário" dirige-se aos beligerantes para civilizar a guerra e evitar que desvie para a desumanidade da vingança indiscriminada e da punição coletiva de indefesos e não culpados.
“Não havia outra escolha”, repetem frequentemente as partes em conflito. Isso quase nunca é verdade. A maneira pela qual campanhas militares são conduzidas tem um valor ético e moral antes mesmo que jurídico. Mede a qualidade política e civil de uma nação. A indiferença pela vida e pela dignidade dos outros arrasta qualquer sociedade para os abismos dos instintos primordiais. Essas regras mínimas de civilidade, espezinhadas e ridicularizadas, já não bastam mais, devem ser reconsideradas, interpretadas com rigor. Ressoa nas consciências o grito de civis massacrados, torturados, sequestrados, usados como escudos, soterrados sob os escombros, sedentos, famintos, operados em um piso imundo sem anestesia. O direito internacional é demasiado indulgente com as razões da guerra que, escreveu Fréderic Mégret, é uma monstruosa exceção aos direitos humanos inalienáveis. O interesse militar muitas vezes justifica atos repugnantes.
Uma condescendência intolerável quando a violência armada é o resultado de uma agressão ou de uma reação anormal e imoderada. Quem usa a força armada deve responder perante à lei e à política pelas vidas inocentes que contabiliza como itens negativos insignificantes no balanço do seu egoísmo.
Hoje está muito na moda discutir sobre catástrofe, o fim iminente da humanidade e do mundo. A emergência é o álibi para justificar a exceção. O apocalipse não é destino. Nem escolha.
Nas condições atuais, o homicídio geopolítico é necessariamente homicídio-suicídio. A destruição do planeta e a extinção da humanidade só podem ser resultado de uma loucura autodestrutiva ou de uma imprudência negligente. Podem ser evitadas sob duas condições.
“Não desejar o fim do regime alheio”, como escreveu Lucio Caracciolo. Evolução do nono mandamento que exige que se deve aceitar o direito de ser do inimigo geopolítico e não se dedicar para determinar o seu desaparecimento. “Que ninguém ameace a existência alheia”, advertiu o Papa. “Não fazer aos outros o que você não quer que seja feito a você”. Máxima que expressa a virtude cardeal da doutrina confucionista zen, depois também princípio evangélico. No direito e na geopolítica traduz-se como reciprocidade, do latim reciprocus, “que vai e vem, flui e reflui”. Etimologia esclarecedora. Se você aceitar e respeitar as normas e instituições internacionais, mesmo quando atuam contra o seu interesse contingente e o dos seus aliados e amigos, pode esperar que, quando precisar delas, os outros farão o mesmo. Isso deve ser cobrado dos governantes. Exercícios de visão ampla. A raiva cega empurra para a armadilha da vingança que não alivia a sede de justiça nem acalma a dor, enquanto alimenta o ciclo do ódio, do sangue e do mal. Decretando o ocaso da civilização humana.
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O apocalipse não é o destino. A guerra e o direito internacional. Artigo de Rosario Aitala - Instituto Humanitas Unisinos - IHU