27 Fevereiro 2024
Os incêndios florestais que atingem Roraima desde o fim de semana passado avançam sobre terras indígenas do estado. Uma delas é a comunidade do Bananal, na Terra Indígena São Marcos. O tuxaua da comunidade, Tercio Sarlin da Silva, do povo Taurepang, disse que o vento fez com que a queimada se espalhasse de forma assustadora. Metade de uma casa da aldeia foi destruída.
A reportagem é de Felipe Medeiros, publicada por Amazônia Real, 23-02-2024.
“Ninguém se feriu, mas famílias perderam suas plantações, como a de banana, de mandioca e outros tipos”, disse ele, à Amazônia Real nesta quinta-feira (22). No local vivem 405 pessoas das etnias Taurepang, Macuxi e Wapixana.
Imagens enviadas à reportagem mostram moradores tentando evitar que o fogo chegue nas barracas de madeiras. Aos gritos, eles tentam se salvar e tirar pelo menos os documentos pessoais. O tuxaua não soube dizer a origem do fogo que afetou a comunidade.
Desde o início de 2024, os focos de queimadas em Roraima estão batendo recordes históricos. Entre 1º e 23 de fevereiro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectou 1.692 focos, um número superior aos 1.347 de fevereiro de 2007, o maior até então desde que o órgão federal começou a detectar focos de queimadas na Amazônia. No comparativo o aumento é de 449%. Desde o dia 1º de janeiro até nesta sexta, foram detectados 2.295 focos de queimadas no estado, segundo dados do Inpe, batendo o recorde de 2016 neste mesmo período.
Roraima está sob efeitos do fenômeno climático El Niño, com chuvas abaixo do normal, potencializando ainda mais as queimadas no estado. Diferente de outros estados da Amazônia, o período da estiagem em Roraima começa em outubro e segue até abril.
Em 2016, o estado passou por um período semelhante de chuvas abaixo do normal, sob a intensidade do ‘El Niño Godzilla’. Mas naquele ano, fevereiro apresentou 170 focos de queimadas entre 1º e 23 de fevereiro. No início de 2016, o mês com mais focos foi janeiro, quando o Inpe registrou 1.958 focos.
Indagado se em anos anteriores já presenciou queimadas com esta intensidade, o líder Taurepang foi objetivo ao dizer que não. “Foi desesperador, antes a gente não presenciava isso. O fogo vinha, porém não chegava nas proximidades das casas”.
Até esta sexta-feira (23), os satélites do Inpe registram os maiores focos nas cidades de Mucajaí, Caracaraí, Amajari e Rorainópolis. As Terras indígenas mais afetadas são Yanomami, Raposa Serra do Sol, São Marcos e Araçá.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) monitora as queimadas por meio de um aplicativo e 56 brigadistas atuam nas áreas indígenas. Jabson da Silva, coordenador da Brigada do CIR, culpa os produtores rurais pelos incêndios que atingem as comunidades. Ele destacou que os indígenas sabem, culturalmente, trabalhar com o fogo.
“A maioria das terras indígenas é demarcada em ilhas. A maior parte do fogo vem do lado de fora das comunidades. A gente está rodeado de grandes lavouras, o pessoal está desmatando para plantar soja. O cara está limpando, toca fogo e perde o controle e vai para dentro das comunidades passando de uma para outra”, disse Jabson da Silva, do povo Macuxi.
O brigadista indígena conta quais áreas são rodeadas de propriedades rurais. “Em Boa Vista, tem as terras indígenas Truaru da Cabeceira e Serra da Moça. No município de Alto Alegre tem as terras indígenas Barata, Livramento. Todas elas estão rodeadas de grandes lavouras. E todo ano aquilo ali queima”, disse. “Com o tempo seco, pega nos buritizais e vai queimando as matas”, contou o coordenador dos brigadistas.
Julimar Sena Ferreira, coordenador da Defesa Civil em Uiramutã, município com a maior população indígena per capita do país, de acordo com o último Censo do IBGE, contou à reportagem que a situação na região se agrava pela falta de chuva, já que combater o fogo em áreas de serra é mais difícil.
“A situação está só piorando, porque está no tempo da queima das roças e muitas comunidades estão fazendo roça em mata virgem. Como a estiagem está forte, eles não estão fazendo aceiro, que é a varrida isolando as roças. E o fogo está pegando tudo”, explicou o brigadista indígena.
Com a falta de chuva, as queimadas são mais difíceis de serem combatidas. O desafio é não deixar o fogo atingir a mata próxima aos rios e igarapés. “Hoje, a Defesa Civil Municipal, Exército, PrevFogo do Ibama e comunidade, juntos, fazem aceiros para salvar onde não queimou ainda”, disse Julimar.
A líder indígena Telma Taurepang, da comunidade Mangueira (TI Araçá), em Amajari, norte do Estado, disse à Amazônia Real que moradores perderam as plantações devido a falta de chuva, agravando as queimadas. Segundo ela, isso prejudica a alimentação que tem como ingrediente principal a mandioca, usada para fazer a farinha e bebidas típicas.
“Devido às ações climáticas, hoje temos uma baixa muito grande. Para se ter uma ideia a farinha pode custar até 20 reais o litro. Antes, nós comprávamos farinha de dois reais [o litro]”, contou Telma, que já foi tuxaua da comunidade, e, atualmente, é coordenadora geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB).
A falta de água é um problema relatado em outras comunidades. Na Pedra Branca, em Uiramutã, os moradores estão fazendo racionamento, afirmou o tuxaua Jaime Rafael, da etnia Macuxi.
“Nós estamos sofrendo muito, esse tempo com a estiagem forte a água está fraca”, disse. A região é abastecida por água encanada que vem de um igarapé e poços. Ambos estão secando rapidamente, informou o líder da região que tem 665 pessoas. Os rios com volumes maiores de água ficam distantes.
Além do interior de Roraima, a capital Boa Vista também tem registros de queimadas em propriedades particulares, terrenos baldios, regiões de lavrados e parques. O parque Germano Augusto Sampaio, na periferia da capital, sofreu incêndio. O Corpo de Bombeiros precisou conter as chamas. Em meio às cinzas, mais de uma dezena de cobras foram encontradas mortas. O local fica ao lado de um hospital público. O Governo informou que o fogo na região foi de origem criminosa.
Ramón Alves, meteorologista da Fundação Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), acompanha há 18 anos as mudanças climáticas em Roraima. Conforme o servidor público responsável pelo Boletim Hidrometeorológico diário, os incêndios se dividem em dois tipos: os urbanos que ocorrem de forma criminosa e irresponsável; e os florestais, em áreas de agricultores e indígenas. Este segundo é uma prática cultural para limpeza de terrenos e roças.
“Há o aumento das queimadas devido ao tempo seco, a falta de chuva e a força do vento, que está sempre mudando de direção, principalmente, nesses meses de janeiro, fevereiro e março. Por isso, há uma perda de controle das chamas e elas se propagam rapidamente”, explicou o pesquisador.
Nesta semana a capital Boa Vista teve dias e noites encobertos por fumaça. Conforme o monitoramento do Índice de Qualidade do Ar, na manhã de quinta-feira, dia 22, a classificação era de “muito prejudicial à saúde”.
A moradora de Manaus, Ana Vasconcelos, de 25 anos, esteve em Boa Vista e estranhou a qualidade do ar. A jovem cumpriu uma agenda de compromissos profissionais da Organização Não Governamental Hermanitos, que atende migrantes e refugiados em Roraima. Ela conta que, devido às queimadas de novembro na capital amazonense, teve problemas de saúde respiratórios.
“Logo que cheguei à Boa Vista, eu senti de cara o cheiro da fumaça, os olhos lacrimejando, a garganta ficou seca. A população que está aqui no meio da Amazônia, precisa entender que o trabalho também é nosso de tentar inibir, cada vez mais, crimes como esse. Temos que cuidar das áreas rurais e urbanas”, alertou a supervisora de projetos da Ong Hermanitos.
As queimadas tanto na capital quanto no interior estão proibidas. O Governo publicou uma portaria suspendendo o calendário de queima controlada. As autoridades devem investigar e punir quem desobedecer às medidas de prevenção aos incêndios florestais e urbanos.
A líder indígena Telma Taurepang relata que a fumaça tem afetado, principalmente, as crianças e idosos da comunidade localizada às margens da BR 174, sentido Venezuela. “O ar está insuportável. A temperatura está elevada. Ninguém aguenta mais tanta fumaça. Está um caos. Temos brigadas, mas não estão dando conta de controlar o fogo”.
Segundo a indígena, as condições de vida nas comunidades se agravam ainda mais pela falta de água nos rios, igarapés e poços. “Precisamos de ação emergencial para que façam poços artesianos nas comunidades indígenas”, pediu.
O meteorologista Ramón Alves diz que o El Niño e o aquecimento do Oceano Atlântico Norte são os responsáveis pelas altas temperaturas e chuvas abaixo da média. “Não é um super El Niño, como aquele de 2015 e 2016, mas está forte, e junto com esse aquecimento do Oceano Atlântico Norte a situação ficou bem mais grave. Essa conjuntura de oceanos aquecidos é que diminuiu bastante o nosso regime de chuvas”.
À reportagem, o Corpo de Bombeiros informou que atua ao ser solicitado em casos de incêndios florestais e urbanos.
“Para se evitar novos focos de incêndio, a medida preventiva principal é realizar a limpeza desses terrenos, fazer aceiros em caso de áreas rurais, não fazer queimadas para manejo da terra e fazer a devida denúncia aos órgãos responsáveis”, disse o capitão Nielson Sampaio Barbosa, diretor adjunto de assuntos civis e relações públicas.
Em nota, o Ibama afirmou que tem atuado para combater os incêndios desde agosto de 2023 por meio da Operação Roraima Verde 2024, com a atuação de 251 combatentes, incluindo brigadistas federais e contingente de apoio.
O Ibama complementa que “o aumento de focos de calor é consequência dos meses de agosto e setembro de 2023, que tiveram os menores valores registrados de precipitação dos últimos 24 anos”.
Nesta quinta, o governo de Roraima divulgou um vídeo e um texto en sua rede social dizendo que o estado “tem enfrentado um severo período de estiagem” e que “já são muitos dias sem chuvas, o que acarreta a desidratação da vegetação, favorecendo as tão temidas queimadas, que destroem a fauna, a flora e prejudicam a qualidade do ar, afetando o sistema respiratório da população”.
O governo afirma que “o Corpo de Bombeiros de Roraima está atuando intensamente, especialmente nos pontos mais críticos e com maior número de focos de incêndio”.
Também nesta quinta, o vice-presidente da Assembleia Legislativa de Roraima, Marcelo Cabral (Cidadania), pediu que o governo estadual decrete estado de calamidade pública e situação de emergência. O governo de Roraima ainda não se pronunciou sobre o pedido.
Após publicação desta matéria, o governo de Roraima enviou nota reiterando que o Corpo de Bombeiros atua em ações preventivas de combate a incêndios florestais desde outubro do ano passado, quando deu início à Operação Verão Seguro. Diz ainda que desde novembro do ano passado empregou boa parte do efetivo para as queimadas e incêndios florestais, e têm atuado em todos os municípios do Estado de Roraima, com ênfase nas regiões mais críticas.
Conforme a nota, desde o início da operação, em 16 de outubro de 2023, já foram combatidos 769 incêndios em todo o Estado, mas que os valores aumentam a cada dia, considerando a demanda atual devido à estiagem.
“O município de Amajari partiu de 0 focos a 110 focos de incêndio, e o Corpo de Bombeiros imediatamente realocou mais quatro equipes para reforçar os combates na região com mais 24 bombeiros, além das equipes do Prevfogo e de brigadistas da Defesa Civil Municipal.
“O Estado de Roraima possui vasta área agrícola e cobertura vegetal nativa, onde o uso do fogo pela população é comum. No entanto, neste ano, mesmo com as condições climáticas de seca, a população ainda insiste em fazer uso do fogo sem o devido controle, e muitas vezes de forma ilegal”, diz o governo.
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Incêndios em Roraima avançam para terras indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU