07 Fevereiro 2024
"Um mundo que não consegue assumir a responsabilidade por um fragmento de ilha pode enfrentar de forma incisiva a crise da Ucrânia ou caos no Oriente Médio? Responder ao grito – agora apenas um gemido – do Haiti não é apenas um dever ético. O presente e o futuro do multilateralismo estão em jogo. Em Porto Príncipe a comunidade internacional tem a oportunidade de demonstrar que ainda é justamente uma “comunidade” e não uma selva", escreve Lucia Capuzzi, jornalista italiana, em artigo publicado por Avvenire, 31-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É a ilha que não existe. No debate público e mediático, o Haiti não existe. Como muitas outras partes do planeta, poder-se-ia acrescentar. A “primeira República negra” da história, fundada por ex-escravos cruelmente rebeldes, no entanto, não é apenas mais um cone de sombra no mapa mundial. É um arquétipo para compreender os mecanismos de invisibilidade e invisibilização da política internacional. E as razões por trás deles.
O Haiti é uma ferida que arde na pele do Ocidente pois o crava diante das suas próprias responsabilidades. Não apenas históricas: a exorbitante indenização de 150 milhões de francos em ouro, dez vezes o PIB do país, exigida pela França em 1825 para reconhecer a independência da ex colônia e romper o seu isolamento internacional.
Quase duzentos anos depois, após uma das catástrofes naturais mais mortais dos últimos séculos - o terremoto de 12 de janeiro de 2010 com 316 mil morto em questão de dias -, a comunidade mundial prometeu “reconstruir melhor” o Haiti. “We build back better”, foram as palavras usadas por Bill Clinton, comissário especial da agência para a reconstrução, gerida pela ONU, principais estados doadores e autoridades locais. 14 anos depois, andando por Porto Príncipe – pelo menos o pouco possível –, é impossível não se perguntar o que aconteceu com os 6,4 bilhões destinados para o renascimento de um país que tem apenas um terço do tamanho da superfície de Hispaniola.
“Engolidos pela corrupção endêmica de instituições nacionais precárias”, somos tentados a responder, sem dúvida espelhando uma parte da verdade. Mas, ampliando o olhar – e o pensamento -, no entanto, somos obrigados a nos perguntar por que razão nenhuma das instâncias supranacionais responsáveis tenha controlado. E quem teve que fechar os olhos. Certamente às empresas das empresas doadoras que obtiveram 97% dos contratos. Dinheiro com o qual foram realizados projetos no mínimo bizarros. Hotéis luxuosos para relançar um turismo impossível sem as infraestruturas de base e um mínimo de segurança. Memoriais inacabados.
Fábricas incapazes de criar empregos.
Jardins perenemente desertos devido à ameaça de gangues que, na progressiva e sistemática implosão do Estado, tomaram conta da capital e do resto do país.
A escalada começou em 2018, um ano após a retirada do contingente das Nações Unidas, mantido entre 2004 e 2017.
Treze anos em que, claro, a violência diminuiu. Por outro lado, vários abusos foram cometidos pelas forças de manutenção da paz, bem como a responsabilidade pela epidemia de cólera que se seguiu ao terramoto. A estabilização, depois, acabou sendo apenas aparente. Nos últimos seis anos, as gangues se multiplicaram em número e poder de fogo, graças à inércia ou, pior, ao apoio dos governos de Michel Martelly e, acima de tudo, Jovenal Moïse. O assassinato deste último numa conspiração palaciana desencadeou um conflito de todos contra todos. O Estado implodiu literalmente, transformando o Haiti no "caso de estudo” daquelas que a cientista política Mary Kaldor define como “novas guerras”, nas quais se entrelaçam competição entre grupos políticos pela conquista do poder, crime organizado e violação em grande escala dos direitos humanos.
Um fenômeno tragicamente comum no Sul do mundo. Cujos impactos, no entanto, envolvem a todos: dos negócios das “novas guerras” haurem recursos os atores, estatais ou não, capazes de desestabilizar a ordem global. Nesse cenário desesperador, explica-se a escolha do governo haitiano de recorrer à ONU após as controvérsias do passado. Com um prévio mea culpa e compromisso de aprender com os erros do passado, o Secretário-Geral Antônio Guterres acolheu e relançou o pedido à comunidade internacional.
Mais de dezesseis meses de silêncio constrangedor se passaram. A tímida resposta do Quênia revelou-se, na semana passada, uma bolha de sabão. Melhor ficar quieto e esquecer para não ter que admitir o fracasso.
E não por dificuldades objetivas, mas sim por miopia, ganância e descuido. Juntamente com o Haiti, o Ocidente invisibiliza a sua face escura. Exatamente como acontece no Afeganistão. Mas um mundo que não consegue assumir a responsabilidade por um fragmento de ilha pode enfrentar de forma incisiva a crise da Ucrânia ou caos no Oriente Médio? Responder ao grito – agora apenas um gemido – do Haiti não é apenas um dever ético. O presente e o futuro do multilateralismo estão em jogo. Em Porto Príncipe a comunidade internacional tem a oportunidade de demonstrar que ainda é justamente uma “comunidade” e não uma selva.
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Haiti, a ilha que não existe. Artigo de Lucia Capuzzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU