18 Dezembro 2023
“Devemos compreender que a lógica do genocídio não provém da maldade deste ou daquele governante, ou de um Estado em particular, mas da própria existência do capitalismo, que fez com que quase metade da humanidade tenha se tornado 'população excedente', que passa fome, emigra, morre devido às repressões estatais e paraestatais e também se rebela”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 15-12-2023. A tradução é do Cepat.
A realidade concreta do sistema-mundo se transforma a uma velocidade impressionante, em momentos em que nada parece sólido e as mudanças são o aspecto dominante. As alianças que se mantiveram intactas, durante quase um século, tendem a desaparecer para dar lugar a novos tipos de vínculos.
A entrada da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos no BRICS, bem como a recente visita de Vladimir Putin a estes dois países, indica o tamanho das mudanças em curso em bem pouco tempo. Toda a arquitetura internacional surgida da Segunda Guerra Mundial está sendo desmantelada pelas novas relações de força que vão emergindo e que, agora, aceleram exponencialmente.
Em 2022, Decio Machado e eu publicamos o livro Estados para el despojo, com a intenção de compreender a transformação dos estados de bem-estar em estados neoliberais extrativistas, promotores da acumulação por espoliação/quarta guerra mundial contra os povos.
Apenas um ano após a sua publicação, devo dizer que é muito provável que tenhamos ficado aquém, porque a acumulação vai se tornando uma guerra aberta que mira povos inteiros para que sejam deslocados ou simplesmente aniquilados.
A análise de William Robinson sobre o “estado policial global” e a “acumulação militarizada” não invalida os “estados para a espoliação”, mas proporciona uma guinada necessária. Ele argumenta que a maior parte da humanidade simplesmente não pode sobreviver, o que não significa uma crise para o capital, mas, ao contrário, uma oportunidade de militarizar o planeta para conter os povos famintos.
Em entrevista publicada pelo jornal El Salto, com base na apresentação de seu livro Mano dura: el Estado policial global, argumenta: estamos diante de uma revolta popular global impulsionada pela “humanidade excedente” (para o capital), um setor em crescimento e que já abrange 3 bilhões de pessoas. Para contê-las, são geradas guerras, sistemas sofisticados de repressão e controle, muros fronteiriços, guerras contra as drogas, os migrantes e os povos, a tal ponto que “qualquer conflito social se torna uma oportunidade para acumular capital”.
O estado policial é muito rentável porque o capital despeja aí os seus excedentes e se articula com a “acumulação militarizada” e/ou “acumulação por repressão” para conter esses milhões que o sistema não precisa mais. Tragédia na base, alegria no topo.
Robinson explica que o capital substitui os trabalhadores formais por migrantes temporários e indocumentados que não são mais os explorados, mas, sim, a humanidade sobrante. Este é um ponto crucial que explica tanto a guerra de Israel na Palestina, como a política europeia e estadunidense em relação aos migrantes.
Um relatório recente do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) estima que, anualmente, são registradas “3 milhões de entradas ilegais nos Estados Unidos”, representando um terço de todos os imigrantes para aquele país, sendo que 80% são provenientes da América do Sul, incluindo o México.
Portanto, durante os três anos do governo Biden, 9 milhões de pessoas entraram clandestinamente nos Estados Unidos, em um total de quase 30 milhões de migrantes. Este ano, meio milhão de pessoas cruzaram o Tampão de Darién (na fronteira entre o Panamá e a Colômbia). Antes, era considerada uma região intransitável devido à sua combinação de selva e pântanos, daí o nome “tampão”.
Diante do colapso econômico, social, climático e político vivido por milhares de comunidades em todo o mundo, a resposta de cima consiste em militarizar as fronteiras para “criar fortalezas em torno das áreas onde vivem as camadas privilegiadas”, como argumenta Robinson.
O capital está fora de controle, um papel que até a globalização era desempenhado pelos estados-nação. Já não existe um governo capaz de segurar o capital, como fica claramente demonstrado pelo fracasso de Trump e Biden na reindustrialização dos Estados Unidos. A classe trabalhadora e muitas profissões naquele país tendem a ser substituídas pelos migrantes, o que está provocando racismo e uma profunda desestabilização política.
Devemos compreender que a lógica do genocídio não provém da maldade deste ou daquele governante, ou de um Estado em particular, mas da própria existência do capitalismo, que fez com que quase metade da humanidade tenha se tornado “população excedente”, que passa fome, emigra, morre devido às repressões estatais e paraestatais e também se rebela.
No curto prazo, tudo indica que o capitalismo tem capacidade para se sustentar pela violência e as guerras. Ninguém pode detê-lo porque a Rússia e a China fazem parte da mesma lógica capitalista/de guerra contra os povos. Nos próximos anos, teremos a capacidade de refletir coletivamente, como fizeram as bases zapatistas, sobre os caminhos a tomar para continuar resistindo, enquanto criamos o novo?
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Estados para o genocídio. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU