11 Julho 2023
“Provoca-me raiva e impotência ver como muitos de meus companheiros de geração (também algumas companheiras) não têm mais ambição a não ser continuar galgando posições nas instituições do sistema”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por Desinformémonos, 10-07-2023. A tradução é do Cepat.
No portal Pelota de Trapo, o psiquiatra e militante argentino Alfredo Grande escreve um artigo intitulado Las generaciones diezmadas, em que descreve o saqueio ideológico e político sofrido por várias gerações de rebeldes, para concluir: “A revolução foi saqueada e seu lastro improdutivo se chama gestão”.
Argumenta que há gerações saqueadas “da alegria, da saúde, da educação, da moradia, da alimentação” e outras que foram dizimadas por lutarem “contra tudo o que hoje busca e certamente consegue continuar no governo e gerenciar o poder”. Em uma síntese apertada, sangue derramado e população “sobrante” marginalizada são uma leitura possível, de baixo e à esquerda, do último meio século em nosso Cone Sul.
De sua brilhante escrita, interessa-me resgatar essa visão luminosa com a qual intitulo esta coluna: da derrota, do saqueio como Alfredo a batiza, só restou a gestão do modelo, sem outra ambição a não ser permanecer no governo para - simplesmente - seguir gerenciando-o de cima, com todas as vantagens materiais e simbólicas que isso acarreta para os gestores.
Fico comovido com esse aspecto denunciado por ele, provoca-me raiva e impotência ver como muitos de meus companheiros de geração (também algumas companheiras) não têm mais ambição a não ser continuar galgando posições nas instituições do sistema, do capitalismo, digamos, utilizando os discursos das gerações “massacradas” para cooptar as “dizimadas”.
Aqui, surge uma das piores características do atual modo de acumulação do capital por espoliação de povos e setores sociais: o empenho em neutralizar os que deveriam ser os coveiros do capitalismo, que sempre foram os que nada têm a perder, a não ser suas correntes. Os operários industriais, antes; os marginalizados, agora, os que ficaram sem futuro e não têm mais lugar, nem mesmo como explorados.
O papel dos gestores progressistas consiste justamente nisso: domesticar, neutralizar, cooptar tudo o que seja capaz de recuperar o espírito de luta daqueles que precisam enfrentar o capitalismo porque disso dependem suas vidas. E a dignidade.
Daí o empenho em remodelar as organizações que com tanta dificuldade foram colocadas de pé pelos e pelas de baixo, para transformá-las em suportes do modelo. É disso que se tratam as políticas sociais que mal distraem da fome, mas conseguem transformar dirigentes e referências em gestores locais da distribuição de cestas de alimentos, aproximando-os do poder, mas sem lhes dar mais do que tarefas supérfluas.
Já são três décadas - desde a aterrissagem do neoliberalismo desindustrializante - em que os dirigentes treinaram para repetir os mesmos discursos dos setores populares (sobre direitos humanos do passado, sobre combater a fome e, claro, promover o desenvolvimento), atuando como o célebre flautista de Hamelin [1], mas, agora, levando seus seguidores à contemplação do consumismo e a aceitação passiva do sistema.
Como é um lastro esse modo de fazer política, que se aproveita dos saberes apreendidos de baixo pelos antigos militantes revolucionários para lubrificar a dominação com novos modos e discursos. Introduzem enormes doses de confusão no campo popular. A princípio, esses modos alcançam seus objetivos, mas quando vai ficando claro do que se trata, o dano já está feito e acaba se impondo a lógica do mal menor, que sempre favorece quem domina.
Assim, o mapa político do neoliberalismo fica polarizado entre uma esquerda que não é esquerda e uma direita que, sim, é o que é. Contudo, fica pelo caminho nada menos do que a tensão rebelde de transcender o capitalismo, pelo qual as gerações que foram massacradas, desaparecidas e assassinadas deram suas vidas. Por isso, esse lastro representado pelos gestores de novo tipo, os progressistas, é absolutamente improdutivo. Exceto para os outros gerentes, os das grandes empresas, com os quais cedo ou tarde acabam se misturando.
[1] Diz-se que em 1284, na cidade alemã de Hamelin, um flautista atraiu com sua música centenas de crianças que o seguiram, mas depois desapareceram.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O lastro improdutivo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU