17 Novembro 2023
A destituição de Dom Joseph Strickland é o último episódio de uma relação turbulenta com a conferência dos EUA. As tentativas de moldar uma Igreja aberta e transparente colidem com o mundo mais aguerrido conservador – A Igreja Católica é como um cruzamento de dois comboios vindo de direções opostas: chega um momento em que um dos dois tem de parar para evitar a colisão. Hoje em dia, o gargalo está em Tyler, no Texas, uma das quase duzentas dioceses católicas dos Estados Unidos, dirigida por D. Joseph Strickland, que foi bispo até ser destituído pelo próprio papa, após dois anos de visita apostólica.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Domani, 15-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
É um procedimento raro, não inédito, que teria passado despercebido se o bispo afastado não tivesse falado publicamente a respeito. Para comparar a situação: em junho passado o bispo de Knoxville apresentou a sua demissão, em total silêncio, após investigações por suposta má gestão, e o papa obviamente aceitou-a.
Mas o Texas não é o Tennessee, e a destituição de um bispo no estado liderado por um governador que se converteu ao catolicismo mostra as convulsões de uma guerra de desgaste em curso entre a Santa Sé e a frente conservadora da Igreja estadunidense. Para alguns analistas, as batalhas identitárias de alguns bispos, em nada confortados por Joe Biden, segundo presidente católico dos Estados Unidos, são trincheiras que os isolam: há uma semana, por exemplo, a vitória dos grupos pró-aborto nas recentes eleições em Ohio, apesar dos milhões de dólares gastos pelas associações católicas, seria o enésimo tropeço para uma Igreja que fez da histórica sentença Roe vs. Wade o bicho-papão de uma cruzada.
No caso de D. Strickland, o bispo, criticou repetidamente a linha de Roma sobre questões como as vacinas e a abertura à comunidade LGBT+. Pouco tempo atrás, ele definiu o Sínodo como uma “tentativa de alguns de mudar o foco do catolicismo da salvação eterna das almas em Cristo para a afirmação da independência de cada pessoa, independentemente das escolhas de vida”.
Com as suas declarações, o prelado dá voz a uma franja episcopal reacionária que defende a ortodoxia católica, projetando-a no plano político: a possibilidade de não ministrar a comunhão a políticos pró-aborto como o presidente Joe Biden ou as aberturas das instituições católicas à comunidade LGBT+ são dois dos temas mais ferventes. Recentemente, Jayd Hendricks, presidente da organização conservadora sem fins lucrativos Catholic Laity and Clergy for Renewal, acusou o papa de propor temas marginais na igreja: “Esta ideia de que os bispos estadunidenses têm uma fixação pela sexualidade é falsa. São os líderes do Sínodo sobre a sinodalidade e os delegados nomeados pelo papa que se concentram na homossexualidade, no casamento e nas ordens sacerdotais. Muitos bispos aqui estão cansados do Pe. James Martin e outros que lhes impõem a discussão LGBTQ”, escreve ele no site conservador First Things. Mas a situação não é bem assim.
Há alguns meses, o Washington Post relatou que a organização presidida por Hendricks apoiou a iniciativa de um grupo de católicos para rastrear os sacerdotes que eram usuários de aplicativos de namoro gay e depois transformar isso numa operação de saída forçada.
Tudo isso enquanto o governador Abbott quer investigar os pais que pedem a terapia de reposição hormonal para seus filhos, apoiando o procurador-geral Ken Paxton, amigo de Trump, que definiu algumas terapias de transição como “abusos de menores”.
Contudo, o debate sobre a sexualidade nem mesmo é novo. Em 1984, o Papa João Paulo II, após dois anos de investigações, humilhou até obrigar à renúncia D. Raymond Hunthausen, arcebispo de Seattle, culpado de ter atribuído papéis de liderança a mulheres, permitir que fiéis gays da Dignity assistissem à missa na Catedral de Saint James e ter gasto dinheiro pelo desarmamento nuclear da frota estadunidense Trident.
Com a eleição do Papa Francisco, primeiro pontífice latino-americano, o teor do embate mudou. O ponto de ruptura remonta a 2018, quando o Arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos EUA, acusou publicamente o Papa de negligência na gestão do caso do Cardeal Theodore McCarrick, abusador em série, chegando a ponto de pedir sua renúncia.
A franja anti-Bergoglio ganhou assim novo combustível numa Igreja onde as dioceses, processadas por numerosos casos de abuso, correm o risco de falência. Baltimore, a mais antiga diocese dos EUA, declarou falência em setembro, após a eliminação dos termos de prescrição no estado de Maryland. Esvaziados cofres e igrejas, a frente conservadora arvora-se como representante de uma minoria que supostos poderes fortes gostariam de aniquilar.
Essa é a retórica do martírio de D. Strickland, que numa recente entrevista comparou-se a um bispo inglês decapitado pelo rei Henrique VIII por causa da sua fé. Como explica Daniele Giglioli em Crítica della vittima (Nottetempo, 2014): “A verdade indiscutível existe apenas para as vítimas da não verdade. Se a verdade é duvidosa, a mentira é certa para quem a sofre."
Mas o caso McCarrick, que representava a frente liberal do clero estadunidense, – o seu apelo em 2004 para não ministrar a Eucaristia ao candidato democrata pró-aborto John Kerry um “campo de batalha político partidário” – também minou a credibilidade da Igreja sem muros do Papa argentino.
Depois do rigorismo de Bento XVI, Francisco está fazendo um esforço por moldar uma instituição transparente, refratária ao clericalismo, menos rígida na doutrina. Não é por acaso que entre os membros que ele nomeou para a participação no recente Sínodo, figuram expoentes dessa igreja made in USA: os cardeais Cupich (Chicago), Etienne (Seattle), Gregory (Washington) e McElroy (San Diego).
No entanto, as estatísticas dizem o contrário. Segundo um relatório elaborado em novembro passado pela Universidade Católica da América, mais da metade dos sacerdotes ordenados desde 2010 se definem como “conservadores” nos campos teológico e doutrinal. Apenas 44 por cento se sentem “moderados”, mas a mudança de ritmo é evidente: como destaca o relatório, nos anos 1965-1969, 68 por cento dos sacerdotes definia-se como “progressistas”, atualmente “reduzidos quase a zero”.
Hoje vários seminários estadunidenses são bolhas de resistência: também a isso reagiu o Papa Francisco com o motu proprio Traditionis Custodes, com que em 2021 regulamentou o uso da liturgia anterior à reforma de 1970, em voga em alguns ambientes conservadores como uma mal disfarçada rejeição da renovação do Concílio Vaticano II.
A batalha pela comunhão da Igreja nos EUA também se trava entre os santos. Para os católicos conservadores, Madre Angélica, a freira fundadora da EWTN, a maior emissora religiosa dos Estados Unidos, deveria ser candidata a santa. Mas sua personagem divide os estadunidenses, o New York Times a definiu como uma "freira astuta, mas também avó de uma época passada": uma abadessa da TV a cabo intransigente em relação as demandas feministas na igreja católica que, durante a sua vida, entrou em confronto em diversas ocasiões com os bispos mais liberais, como o D. David Foley, que não aceitava a sua nostalgia pelas formas litúrgicas pré-conciliares.
Durante a Jornada Mundial da Juventude de Denver em 1993, rotulou como blasfema uma Via Sacra com Cristo personificado por uma mulher. Apesar disso, em 2009 o Papa Bento XVI concedeu-lhe a Cruz de Ouro, o maior reconhecimento de um papa a uma personalidade leiga.
Pelo contrário, está avançando rapidamente o processo que visa a canonização de Dorothy Day, a ativista anarquista convertida ao catolicismo, que se dedicou aos pobres de Nova Iorque. Os conservadores não estão entusiasmados com isso: Day seria a primeira santa a ter feito um aborto, embora antes de se converter ao catolicismo.
No entanto, sobre ela tudo está sendo jogado pelo Papa Francisco, que em 2015 a citou perante o Congresso dos Estados Unidos como um dos pilares da identidade estadunidense. É a Igreja de duas faces que no Texas, o estado da Estrela Solitária, o Papa Francisco tentou unificar à força.
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Conflito entre o Papa e o clero dos EUA: a linha de resistência está no Texas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU