08 Agosto 2023
Em entrevista à revista Vida Nueva, Jorge Mario Bergoglio reivindica a descontinuidade de seu pontificado. E, sobre as ideologias, o discurso parece claro: "A direita é mais perigosa".
A reportagem é de Nico Spuntoni, publicada por Il Giornale, 06-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos dias da trigésima oitava edição da Jornada Mundial da Juventude, saiu uma nova entrevista com Francisco, na qual foram abordados temas importantes para enquadrar a visão de Igreja e de sociedade atribuível a esse pontificado. Uma longa lista de perguntas e respostas com uma equipe de jornalistas da revista espanhola recebeu na sala onde se reúne habitualmente o Conselho dos Cardeais que o Papa designou para auxiliá-lo no exercício do comando. A ocasião foi o 65º aniversário da fundação do periódico espanhol.
Na entrevista, Francisco voltou sobre os dias que antecederam sua eleição. Por meio do juramento que impõe a quem entra na Capela Sistina de manter o segredo sobre "tudo o que de alguma forma diz respeito à eleição do Romano Pontífice e sobre o que acontece no lugar da eleição", não é comum ler declarações públicas de cardeais eleitores sobre o que aconteceu no Conclave. É ainda menos comum um Papa falar sobre isso. Por isso, as palavras de Francisco sobre 2013 assumem um valor histórico particular.
O entrevistado revelou alguns episódios premonitórios de sua eleição: por exemplo, quando o cardeal Jaime Lucas Ortega y Alamino, hoje falecido, lhe pediu o texto de seu discurso às congregações gerais e, agradecendo, disse-lhe que assim poderia guardar uma lembrança do Papa. Outro episódio emblemático ocorreu no elevador em Santa Marta com o Cardeal Francisco Javier Errázuriz Ossa que perguntou ao então Cardeal Bergoglio se já havia preparado o discurso a ser proferido a partir da loggia central.
Francisco também confirmou uma revelação feita anteriormente pelo cardeal hondurenho Oscar Rodríguez Maradiaga que se encarregou de esclarecer com o interessado se era verdade ou não que lhe faltava um pulmão, detalhe que alguns cardeais contrários a essa eleição haviam começado a fazer circular entre os eleitores: "Um cardeal amigo meu se aproximou para perguntar sobre minha saúde. Desmenti alguns boatos sobre mim, sem lhes dar importância, tanto que fui tirar uma soneca tranquilo", disse Francisco à Vida Nueva.
Ainda falando de sua eleição, Francisco ironicamente se definiu "uma vítima do Espírito Santo". Sabemos que Joseph Ratzinger tinha uma visão mais pragmática sobre o papel do Espírito Santo no Conclave: em 1997, de fato, ele explicou em uma entrevista que "o papel do Espírito deveria ser entendido em um sentido muito mais elástico, e não como se ditasse em qual candidato votar. Provavelmente a única certeza que oferece é que não se possa estragar tudo".
Francisco evocou o Espírito Santo também para responder aos temores relacionados ao próximo Sínodo sobre a sinodalidade. "No Sínodo o protagonista é o Espírito Santo. Quem não acredita Nele e não reza durante o Sínodo não pode ir a lugar nenhum", disse aos jornalistas. O Papa contou que ligou recentemente a um convento e ouviu os temores de uma freira que lhe perguntou se a doutrina mudará com o Sínodo de outubro.
Além disso, Bergoglio contou como no Sínodo de 2001 sobre o tema "O Bispo: Servidor do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança do mundo" teve algumas dificuldades no cargo de relator geral adjunto. Essas são as palavras do Papa: "Durante a tarde me traziam os materiais dos grupos e eu ficava para preparar as votações. Depois veio o cardeal encarregado da coordenação, examinou os papéis e começou a dizer 'isso não se vota... isso também'. Eu respondi: 'Eminência, isso saiu dos grupos'. Mas as coisas foram 'purificadas'. Fizemos progressos e, hoje, tudo é votado e ouvido".
Portanto, Francisco defende a tese de que nos pontificados anteriores a dimensão sinodal da Igreja desejada por São Paulo VI era diluída, enquanto desde 2013 se procedeu nesse sentido ao que ele chama de uma “purificação”. Reivindicando a abertura ao voto dos leigos na instituição que Montini queria Sínodo dos Bispos, Bergoglio também afirmou que “nos últimos dez anos algumas coisas foram aperfeiçoadas". As palavras à Vida Nueva representam mais uma tentativa de reivindicar uma linha de descontinuidade com São João Paulo II e Bento XVI, a pouca distância da carta ao novo prefeito do dicastério para a doutrina da fé, o cardeal eleito Victor Manuel Fernández, no qual falava de "métodos imorais" postos em prática no passado pelo antigo Santo Ofício.
Além disso, a comparação entre seus Sínodos e os Sínodos wojtylianos de 2001 não é a única passagem da entrevista em que Francisco tenta se credenciar como um Papa de ruptura que "purifica" hábitos errados. Sobre os momentos que se seguiram à eleição de 2013, por exemplo, ele contou: "Quando desci, lá estava a limusine e eu falei 'vou de ônibus com todo mundo'. Foi então que percebi que uma mudança de coisas me esperava". Em seguida, Francisco comentou o fato de ter decidido comer no refeitório com todos os outros em Santa Marta, começando aquela que ele chamou de "a vida comum que continuo a levar hoje".
"As coisas não estão maduras para um Concílio Vaticano III. E nem é necessário neste momento, já que o Vaticano II ainda não foi implementado", disse Francisco na entrevista. Palavras que lembram a tese da "traição do Concílio" defendida pelo teólogo Hans Küng. Com argumentos opostos, o próprio Joseph Ratzinger em seu último discurso ao clero romano como Pontífice reinante, falou de "dificuldade em concretizar" aquilo que chamou de "o verdadeiro Concílio" ou seja "o Concílio dos Padres que se realizava dentro da fé" e que se contrapunha ao "Concílio das mídias" visto como "uma luta política, uma luta de poder entre diferentes correntes na Igreja".
Francisco falou, em sua entrevista à Vida Nueva, de correntes na Igreja às quais atribuir a resistência à implementação do Vaticano II, irritando-se com o que chamou de "tradicionalismo" e afirmando que "aquela casca esconde muita podridão". Segundo o Papa, muitos jovens padres que ele chama de "rígidos" mostraram ter "sérios problemas morais, vícios e vidas duplas". "Precisamos de seminaristas normais, com seus problemas, que joguem futebol, que não vão nos bairros dogmatizar", acrescentou Bergoglio convidando os bispos a suspeitar de quem “faz uma cara de santo e depois desvia o olhar".
Ele também fez referência à não implementação do Concílio quando disse aos entrevistadores que Paulo VI criou o Sínodo dos Bispos logo depois do encerramento do Vaticano II porque percebeu que a Igreja no Ocidente havia perdido sua dimensão sinodal. No que diz respeito à reivindicação de que todos os temas discutidos nos grupos preparatórios sejam submetidos a votação, deve-se lembrar que - conforme relatado em sua autobiografia pelo último padre conciliar italiano, o recém-falecido Monsenhor Luigi Bettazzi -"Paulo VI não queria que se tratassem determinados temas. Assim, por exemplo, não queria que se falasse do sacerdócio conferido aos homens casados, nem da chamada contracepção. Da mesma forma não gostava que se falasse demais da Igreja dos pobres, temendo que a discussão tomasse nuances políticas favoráveis às esquerdas”. Por outro lado, sabe-se que o segundo Papa do Concílio promulgou a Humanae vitae apesar da maioria dos primeiros padres sinodais da história consultados sobre o tema da limitação da natalidade serem a favor do uso lícito da contracepção.
Na entrevista à Vida Nueva, além disso, Francisco também falou dos jovens e confidenciou ter "medo dos grupos juvenis intelectuais" argumentando que, em sua opinião, "neste momento os grupos ligados às ideologias de direita são talvez os mais perigosos" porque aqueles de esquerda, por outro lado, estariam um pouco em declínio. No que diz respeito à Igreja, Bergoglio disse que se aos jovens "você fala só de castidade, você assusta todos eles" acrescentando que "uma pastoral ideológica de esquerda ou de direita ou de centro não serve" por que “é doente e causa mal". O único exemplo de pastoral ideológica que ele citou foi aqueles que se detém demais sobre a moral.
O conteúdo da entrevista concedida à Vida Nueva é significativo: há um Papa reinante que reivindica a ação programática do seu pontificado e até seu próprio estilo de vida, induzindo a uma comparação natural entre o passado e o presente.
Francisco parece convencido de que sua visão pessoal dos jovens sacerdotes, dos critérios de seleção de bispos e cardeais, da interpretação a ser dada a uma viagem apostólica (por exemplo, quando afirma: "Eu não irei a nenhum grande país na Europa (...) e mesmo que tenha ido para Estrasburgo, não fui para a França. Mesmo que eu vá para Marselha, não vou para a França") seja aquela correta e pretende aplicá-la no governo da Igreja.
Um Papa que se coloca a discutir livremente sobre o que poderíamos chamar de sua política representa uma grande oportunidade para os jornalistas que têm a chance de entrevistá-lo. E, no entanto, apesar de Francisco ter concedido um grande número de entrevistas, até agora são apenas duas as jornalistas que tiveram o mérito de pedir um esclarecimento sobre as inevitáveis contradições que surgem quando se governa com mão firme por mais de uma década: Valentina Alazraki, da Televisa que lhe perguntou sobre os casos Zanchetta e McCarrick, Nicole Winfield da Associated Press que lhe perguntou sobre o caso do jesuíta Marko Rupnik. Ambas mulheres. Assim como mulher é a freira que fez chegar diretamente aos ouvidos do Papa um medo generalizado em uma parte consistente, mas silenciosa do episcopado: "Mas com este Sínodo, a nossa doutrina mudará?"
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“Sou uma vítima do Espírito Santo”. “A direita é mais perigosa”. O que disse o Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU