09 Junho 2015
"Logo depois de eleito, Francisco colocou-se na grande tradição da Igreja e do Vaticano II". Esta é uma das passagens do artigo de abertura da última edição da Civiltà Cattolica, intitulado "A figura do bispo para o Papa Francisco", assinado pelo argentino jesuíta e teólogo Diego Fares. Alessandro Gisotti pediu ao padre Diego Fares, há quarenta anos amigo de Jorge Mario Bergoglio, para debruçar-se um pouco mais sobre o tema do seu artigo.
A entrevista é de Alessandro Gisotti, publicada no sítio da Rádio Vaticano, 01-06-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a entrevista.
Logo depois de eleito o papa Francisco fez dois movimentos. Falo da sua corporeidade, sem metáforas. O primeiro, aquele de inquinar-se. Ao invés de revestir com muitos paramentos, inclinou a cabeça para receber a bênção dos fiéis da praça São Pedro e do mundo todo que o assistia. Isto é Concílio Vaticano II: Cristo, despojado, busca os pobres; a Igreja, "embora necessite de bens humanos para cumprir sua missão, não foi instituída para buscar a glória terrestre, mas para proclamar, também pelo seu próprio exemplo, a humildade e abnegação". O outro gesto é quando ele sobe no papamóvel e percorre a praça toda, ou quando escolhe lugares de fronteira como meta de suas visitas. Nos seus movimentos experimentamos a imagem de um bispo no meio do seu povo. E isto é "Lumem Gentium 12". Bispo e povo percorrem o caminho juntos. "O conjunto todos os fiéis, ungidos que são pela unção do Espírito Santo (cf. 1 Jo 2,20.27) não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo quando, “desde os Bispos até os últimos dos fiéis leigos” apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes". Mas, acima de tudo, é importante compreender que para o Concílio e para Jesus, pastoral não se opõe a doutrinal. Pastoral não é a aplicação de uma "doutrina" gerida pelos Doutores da Lei, que têm mãos limpas porque nunca tocam as pessoas, mas agem apenas nas ideias claras e distintas de Descartes, enquanto os pastores, as sujam. A Revelação dada pelo Senhor, é ordenada à salvação de seu povo, não ao conhecimento abstrato da Trindade, mas ao seu conhecimento amoroso e ativo. A doutrina é pastoral, reflete-se na ação de comunicar a graça por meio dos sacramentos e das obras de misericórdia. É a fé operante na caridade.
Muitas vezes Francisco repetiu aos bispos para serem "pastores, e não príncipes" e causou um certo celeuma a definição de "bispos pilotos", no recente discurso à CEI. Alguns leem isso como uma "repreensão" do Papa a seus irmãos. Qual é a sua opinião, conhecendo Bergoglio desde antes que ele fosse nomeado bispo?
Isso de serem pastores, de terem o cheiro das ovelhas, de não serem príncipes, nem pilotos (gestores), vem de 40 anos atrás, quando éramos noviços e estudantes, de quando ele era o nosso reitor, e mais tarde provincial. Lembro-me de um colega que, passeando pelos jardins do Colégio Máximo, onde tínhamos porcos, vacas e ovelhas, viu Bergoglio, nosso reitor, ajudando uma ovelha dar à luz. Surpreso, meu colega, ofereceu ajuda. A ovelha tinha rejeitado um dos três cordeiros, que tinha dado à luz. Bergoglio pensou um instante e, de repente, deu aquele cordeirinho para o colega, dizendo: "Cuida dele". "E como se faz?", pergunto ele. "Vai para a enfermaria, esquenta um pouco de leite e dá-lhe numa mamadeira". Por cinco meses o estudante teve o cordeirinho no seu quarto, que propriamente tinha o cheiro de ovelhas... O cordeiro seguia-o pela casa toda, na igreja e nas salas de aula. Bergoglio lhe disse: "Eu te testei. Tu aprendeste isso: se cuidas das ovelhas, elas te seguirão. Faz sempre assim”. Dizer aos bispos para serem pastores, não príncipes ou pilotos, é uma repreensão, mas daquelas que dão vida. Eu ouvi dizer: "Ele tem tanta misericórdia com todos, mas nos bispos ele pisa". Contudo, as obras de misericórdia espirituais dizem para ensinar àqueles que não sabem, dar bons conselhos a quem precisa e corrigir quem está no erro. São "repreensões, mas misericordiosas". Uma coisa é perdoar os pecadores (ovelhas e pastores) dos pecados, outra é ser misericordioso com a ‘missão’ de Pastor. A missão deve ser corrigida: Pedro foi corrigido "sem piedade" por Jesus: "Vai-te, Satanás, esses pensamentos não são de Deus". E estas censuras fizeram dele um pastor misericordioso com suas ovelhas. As obras de misericórdia espirituais são, na verdade, graus diversos de repreensões amorosas. Ensinar significa dizer, "se faz assim e não, de outro jeito". Aconselhar quer dizer: eu te aconselho a fazer isso e não aquilo. Corrigir quer dizer: "Atenção, estás errando". Ainda bem que o Papa nos diz para não sermos pilotos. Como se poderia pilotar uma Igreja que é um barco cheio de refugiados, um hospital de campo... uma sociedade hipertecnológica?... Em vez disso, ser pastor significa poder contar com o amor e a ajuda das ovelhas para encontrar a água. É o senso do povo fiel ajudando o pastor a ouvir o Espírito...
Uma das categorias bastante presentes em Francisco, quando fala dos bispos, é o "velar, cuidar ". O pastor deve "ser sentinela do seu povo". O que isso significa exatamente para o Papa?
Imagem forte e bonita de um homem que ‘cuida’ é a de São José. É ele que ‘cuida’, até mesmo em sonho, do Menino e da sua mãe. Do zelo profundo de José nasce uma silenciosa visão do todo, capaz de cuidar do seu pequeno rebanho com meios pobres. Germina também o olhar alerta e inteligente que conseguiu evitar todos os perigos que ameaçavam o Menino. O São José adormecido, a quem o Papa Francisco confia seus "bilhetes" para que "sonhe", é a imagem do bispo, do pastor que ‘vela’ sobre seu povo. Há um carisma específico, expresso no próprio nome de 'bispo' - episkopos, em grego – sobre o qual o então cardeal Bergoglio refletia no Sínodo dedicado ao tema dos bispos de 2001: O Bispo, Servidor do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança no mundo. Seu carisma, que é também missão, consiste em "velar". Vale a pena trazer o texto na íntegra: "O bispo é quem zela; cuida da esperança, velando sobre seu povo (cf. 1 Pd 5,2). Consiste numa atitude espiritual de pôr o acento no cuidado do rebanho, levando em consideração a visão do todo"; é o bispo que cuida de tudo e que mantém a coesão do rebanho. Outra atitude espiritual põe o acento no vigiar, com olhar atento aos perigos. Ambas as atitudes têm a ver com a essência da missão episcopal, e adquirem toda sua força a partir da atitude mais importante, que é a de cuidar. "Uma das imagens fortes desta atitude encontra-se no Êxodo, onde nos é dito que o Senhor ‘velou’ sobre o seu povo, na noite de Páscoa, chamada por isso "noite de vigília " (Ex 12:42). Gostaria de enfatizar a importância peculiar de ‘velar’, em comparação ao ‘controlar de forma mais genérica’ ou em relação ao ‘controlar mais pontual’. ‘Controlar’ está mais próximo dos cuidados da doutrina e da moral, enquanto ‘velar’ alude a um cuidar para que haja sal e luz nos corações. ‘Vigiar’ implica no estado de alerta ante o perigo iminente, ‘velar’, ao invés, comunica a ideia de sustentar com paciência os processos pelos quais o Senhor exerce a salvação de seu povo. Para ‘vigiar’ é suficiente estar acordado, atento, rápido. Para ‘velar’ é preciso algo mais, precisa de humildade, paciência e constância na caridade comprovada. Os verbos ‘vigiar’ e ‘controlar’ remetem a controles necessários. ‘Velar’, ao invés, fala de esperança, a esperança do Pai misericordioso que ‘vela’ sobre os processos que acontecem no coração dos seus filhos. O ‘velar’ manifesta e consolida a ‘parrésia ’ do bispo, que mostra sua Esperança, "sem esvaziar a Cruz de Cristo".
O senhor, na "Civiltà Cattolica", escreveu que o modelo de bispo que interessa a Bergoglio é o do "homem de comunhão". Uma reflexão sua sobre isso ...
Este foi o núcleo dos discursos dirigidos aos bispos italianos, no ano passado e este ano. Em 2014, o Papa Francisco realizou um gesto significativo: deu de presente o texto de Paulo VI, de 50 anos atrás, de 14 de abril de 1964, em que pedia à Conferência Episcopal Italiana "um forte e renovado espírito de unidade" que resultasse numa "animação unitária tanto no espírito, como nas obras". Esta união é a chave para o mundo crer, para que possam ser "pastores de uma Igreja [...] antecipação e promessa do Reino", em saída para o mundo com "a eloquência dos gestos" de "verdade e misericórdia". E como o Papa disse aos bispos italianos em 18 de maio, ser homens de comunhão exige uma especial "sensibilidade eclesial". A união é obra do Espírito que age, graças a bispos pastores, e não a "bispos pilotos." Os bispos pastores reforçam "o papel indispensável dos leigos, dispostos a assumirem as responsabilidades que lhes competem". A sensibilidade eclesial “revela-se concretamente na colegialidade e na comunhão entre os Bispos e seus sacerdotes; entre os próprios bispos; entre as dioceses ricas, material e vocacionalmente, e aquelas em dificuldade, entre os subúrbios e o centro da cidade, entre as Conferências e os Bispos com o Sucessor de Pedro”.
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Padre Fares: para Bergoglio, bispo é homem de comunhão, que zela pelo seu povo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU