01 Julho 2023
Piero Stefani é um renomado professor da Faculdade da Itália Setentrional, editor da revista Il Regno, na qual edita a coluna mensal “Le parole delle religioni”, e autor de inúmeras publicações. Em seu novo livro “Padre Nostro. Il breviario del Vangelo” [Pai-Nosso. O breviário do Evangelho], ele comenta a oração do Pai-Nosso, definida por Tertuliano como breviarium totius evangelii.
O comentário é de Roberto Mela, padre dehoniano italiano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 15-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Trata-se de uma edição totalmente nova da obra que foi publicada em primeira edição em 1991. Na premissa ao volume (p. 7-10), Stefani lembra que foram feitas melhorias estilísticas e que se recorreu agora à nova tradução bíblica da Conferência Episcopal Italiana de 2008. Todas as citações provêm dessa tradução, exceto algumas indicadas no local. A bibliografia (p. 109-112) também foi atualizada.
Foto: Divulgação | STEFANI, Piero. Padre Nostro. Il breviario del Vangelo. Milão: Terra Santa, 2023, 112 páginas.
Depois da Premissa, segue-se uma Nota histórico-litúrgica (p. 11-40) que ilustra a definição de Tertuliano citada acima. Nesta nossa apresentação, centramo-nos sobretudo nessa Nota.
O trabalho exegético-teológico realizado para o Pai-Nosso se aplica a todos os textos do Novo Testamento: dois textos diferentes, duas ambientações diferentes; a influência das comunidades na redação do texto; a busca de uma possível composição original por obra de Jesus; a comparação com os textos da tradição cristã e da tradição judaica que têm conteúdos semelhantes; o cotejo como as antigas fontes extracanônicas.
A versão lucana é mais curta, não relata os sete pedidos presentes em Marcos e ignora os dois pedidos presentes em Mateus: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu” e “livrai-nos do mal”.
Também são relevantes as diferenças contidas nas partes comuns, presentes tanto no pedido do pão (Mateus: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”; Lucas: “Dai-nos cada dia nosso pão cotidiano”) quanto no do perdão (Mateus: “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”; Lucas: “Perdoai-nos nossos pecados, porque também nós perdoamos a todo nosso devedor”).
Outra grande diferença é a formulação ampla de Mateus e de seu ritmo litúrgico, enquanto Lucas começa de forma concentrada apoiando-se em uma única palavra: “Pai”.
A ambientação também é diferente. Em Mateus, estamos no centro do Discurso da Montanha, enquanto Lucas situa o Pai-Nosso no caminho rumo a Jerusalém e o liga a outros momentos em que Jesus é mostrado em atitude de oração. Jesus ensina o Pai-Nosso a pedido dos discípulos que o veem rezar.
A tradição preferiu o texto de Mateus porque era mais completo, mas apreciou a ambientação lucana, inserida em um contexto de oração.
A tradição a apresenta como a oração que o próprio Jesus havia ensinado a seus discípulos, em continuidade com a dele. Hoje se tende a dar mais originalidade ao texto mais curto.
Alguns termos lucanos são menos semíticos e mais gregos (“pecados” e não “dívidas”), dada a comunidade destinatária do Evangelho. Mateus, por sua vez, propõe um ritmo litúrgico apreciado por um grupo que pretende se distinguir dos demais e propõe uma variante conclusiva de aclamação recebida na tradição protestante.
No Discurso da Montanha, a oração do Pai-Nosso se situa no contexto do ensinamento sobre o jejum e sobre a esmola, e caracteriza-se pela brevidade; na prática, muitas vezes ela é recitada comunitariamente e, por isso, pode se expor ao perigo do “mostrar-se” condenado por Jesus em seu ensinamento sobre o jejum, a oração e a esmola.
Na Didaquê, o Pai-Nosso assume uma função demarcadora em relação aos “outros” e situa-se entre as instruções batismais. O Pai-Nosso é característico das comunidades cristãs e já estava inserido na liturgia batismal no século III.
“A catequese aos mistérios” de Cirilo e João de Jerusalém (século IV) fornece o primeiro exemplo, já definido liturgicamente, de uma conexão entre o Pai-Nosso e a celebração eucarística.
O Pai-Nosso é visto como “iniciação nos mistérios”. O escondimento previsto em Mateus transformou-se em confidencialidade própria de um grupo que celebra um rito reservado aos iniciados e assume um caráter sacral. Sublinha-se o “ousar rezar” o Pai-Nosso.
Com o Concílio Vaticano II, o Pai-Nosso na eucaristia é proclamado por toda a assembleia. Gradualmente, o Pai-Nosso assumiu uma natureza litúrgico-sacral. A orientação litúrgica, por outro lado, já está presente no incipit do Pai-Nosso em Mateus (“que estais no céu”). O “nosso” é introduzido para se distinguir de outros grupos. A versão lucana está menos predisposta a ser assumida em um contexto comunitário, mas conserva uma componente “sociológico” (“Senhor, ensinai-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos”, Lc 11,1).
Os traços de orientação litúrgica presentes no Pai-Nosso levam a comparações com outras orações judaicas. O primeiro material litúrgico judaico remonta ao século III, e, portanto, não há dependências diretas presentes no Pai-Nosso. Para Stefani continua sendo indispensável comparar o Pai-Nosso com duas das maiores orações judaicas: o Qaddish e as Dezoito Bênçãos.
O Qadish está intimamente relacionado com o Pai-Nosso. Nas Dezoito Bênçãos aparecem os temas relacionados à paternidade do Senhor, à sua unicidade e ao seu nome, ao perdão e à doação dos bens necessários à vida, e, por fim, ao advento da redenção. Na quinta bênção, aparece a expressão “Pai nosso” (o que invalida as observações de Orígenes).
Também é interessante no judaísmo a “oração breve”. Do ponto de vista judaico, o Pai-Nosso se apresentaria como uma “oração breve”. O Pai-Nosso está relacionado com aquelas que os rabinos definem como “súplicas”. “O Pai-Nosso se insere no âmbito das orações espontâneas, livres e pessoais, mas representa, ao mesmo tempo, uma formulação sumária ou recapitulativa da oração comum de Israel. É, por isso, significativo que a ‘oração de Jesus’ possua traços que a aproximam de um amplo espectro de orações judaicas, desde as coletivas e solenes até as súplicas individuais” (p. 29).
Uma peculiaridade do Pai-Nosso é mencionar o louvor como um pedido (“passivo divino”).
“Em última análise, o componente de súplica continua sendo uma chave de compreensão fundamental da ‘oração do Senhor’” (p. 30). O passivo divino caracteriza o Pai-Nosso, o pedido da vinda do Reino e a possibilidade de viver os pedidos do Discurso da Montanha. O anúncio de Jesus esclarece o Pai-Nosso e vice-versa.
Originalmente, o Pai-Nosso era a oração típica do discípulo que havia abandonado tudo para seguir Jesus. A “oração do Senhor” se apresenta como “a expressão orante do radicalismo migratório dos discípulos no seguimento do Messias Jesus, no qual eles experimentam Deus como Pai todos os dias” (F. Mussner, citado na p. 32).
O Pai-Nosso tem relações com o Discurso da Montanha e com o discurso do envio em missão de Mt 10 e par. “A ‘oração do Senhor’ conserva em si um sinal profundo tanto da condição orante do grupo dos discípulos quanto da condição própria de Jesus mesmo” (p. 33), como se depreende da oração de Jesus no Getsêmani (“Abbá!”), que relata o pedido da execução da vontade do Pai e a exortação feita aos discípulos para ficarem acordados para não entrarem em tentação.
“O Pai-Nosso pode ser definido como um ‘breviário’ do Evangelho, mas – escreve Stefan –, observado em outra perspectiva, também pode ser definido como célula generativa dos vários rostos assumidos pela espiritualidade cristã. Com efeito, seria possível traçar toda a história espiritual do cristianismo com base nos comentários dedicados à ‘oração dominical’” (p. 34). Eles são como um espelho no qual se refletem todas as várias orientações da espiritualidade cristã.
Entre os Padres gregos, o estudioso recorda os comentários de Clemente de Alexandria, Orígenes, Cirilo (ou João) de Jerusalém, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia, Cirilo de Alexandria e Máximo, o Confessor; entre os latinos, Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo, Agostinho, João Cassiano, Pedro Crisólogo.
Na Idade Média latina, assinalam-se os comentários de Rábano Mauro, Ruperto de Deutz, Pedro Abelardo, Ugo e Ricardo de São Vítor, Francisco de Assis, Boaventura de Bagnoregio, Tomás de Aquino, Mestre Eckhart.
Os comentários de Nicolau Cusano, Giovanni Pico della Mirandola, Gabriel Biel, Girolamo Savonarola datam da era humanista.
Lutero comentou várias vezes o Pai-Nosso, e Calvino refletiu sobre ele no terceiro volume das “Institutas da religião cristã”.
Um amplo comentário de caráter espiritual sobre a “oração do Senhor” encontra-se no “Caminho da perfeição”, de Teresa d’Ávila.
A partir de Lutero, o Pai-Nosso entrou nos catecismos e assim também ocorreu com o Catecismo da Igreja Católica. Stefani cita os comentários modernos sobre o Pai-Nosso na Bibliografia (p. 109-112).
O Pai-Nosso teve uma enorme influência na vida cristã, tornando-se a expressão mais alta da inseparável união entre lex credendi, lex orandi e lex vivendi.
Mas foi o judaísmo que tornou a oração, também litúrgica, uma atividade fundada em si mesma, independentemente de qualquer outro rito ou culto, ou de determinados lugares ou pessoas particulares (como os sacerdotes).
O Pai-Nosso se insere na tradição judaica da oração na qual Jesus cresceu. O Pai-Nosso representa uma oração que aponta para a perene unidade dos dois Testamentos. Ele constitui uma ponte para o judaísmo, mas é sobretudo um caminho pelo qual as categorias judaicas continuam vivendo dentro da Igreja.
O Pai-Nosso tem uma ambientação narrativa limitada e por isso teve pouca influência tanto nas artes narrativas quanto nas figurativas, ao contrário da Anunciação a Maria. Também na música o Pai-Nosso não teve grande relevo, sendo recitado apenas pelo celebrante na antiga escolha litúrgica.
Stefani conclui sua nota histórico-litúrgica afirmando que “a relativa dificuldade de transcrever a ‘oração de Jesus’ em outros registos ressalta a indissolúvel união entre proximidade familiar e austera elevação própria de uma oração dirigida da terra a um Pai que está nos céus”.
O autor reserva às pp. 43-96 seu comentário ao Pai-Nosso, que ele define como um “comentário teológico”. Ele o subdivide em vários capítulos, assim intitulados: “Retorno à origem” (pp. 43-50), “Pai que estais nos céus” (pp. 51-62); “Santificado seja o vosso nome” (pp. 63-68); “Venha o vosso reino, seja feita a vossa vontade” (pp. 69-74); “Dai-nos o pão nosso de cada dia” (pp. 75-78); “Perdoai-nos as nossas dívidas” (pp. 79-82); “Não nos abandoneis à tentação” (pp. 83-92); “Livrai-nos do mal” (pp. 93-96).
O comentário é seguido por um Apêndice (pp. 97-98), a paráfrase de Dante do Pai-Nosso (pp. 99-106), o texto grego de Mt 6,9-13 e Lc 11,2-4 e o texto latino da Vulgata.
O livro conclui com a bibliografia (pp. 109-112), que cita, entre outros, os comentários modernos.
Debruçamo-nos sobre um pedido presente no Pai-Nosso que é particularmente difícil de interpretar corretamente.
Stefani lembra que os dois pedidos de não ser abandonado à tentação (assim como diz a nova tradução da CEI 2008) e de ser liberto do mal estão intimamente ligados. “Para quem se depara com as desventuras de que o nosso mundo está cheio – comenta o autor –, é concebível que o sentido dos dois pedidos colocados um ao lado do outro seja: não nos deixes cair na tentação de crer que vós, Pai, não sois capaz de nos livrar do mal; que a vossa não intervenção não infunda dúvidas no nosso coração” (p. 84). O penúltimo pedido abre a porta à confiança em dirigir ao Pai o último pedido, o da libertação do mal que continua se difundindo ao redor do fiel e dentro dele.
A prova a que somos submetidos, acima de tudo, é a do próprio cumprimento da vontade de Deus. Como mostra Jesus no Getsêmani, a aceitação da vontade do Pai está ligada ao pedido de que o fardo não seja pesado demais para carregar. A aceitação da vontade do Pai está ligada à vigilância para não cair na tentação.
A petição para não ser abandonado é a única expressada negativamente, mas depois é contrabalançada pelo pedido positivo para ser liberto do mal. “O pedido conclusivo dirigido ao Pai, portanto – comenta Stefani –, faz-nos compreender o sentido autêntico do pedido de não ser introduzido na prova: primeiro pede-se para não ser introduzido na tentação, depois pede-se para ser afastado do mal. Em ambos os casos, a metáfora é espacial” (p. 87).
Desde a antiguidade, o pensamento de que Deus possa induzir alguém à tentação provocou dificuldades. “Induzir” é para Stefani uma tradução infeliz e enganosa. “A tradução interpretativa ‘não nos abandoneis’ pode reivindicar a si mesma uma maior correspondência com a visão contemporânea de um Deus sempre misericordioso, mas não é a ‘verdadeira’” (p. 88).
O estudioso cita na p. 88, nota 85, o pensamento do biblista Crimella, crítico da tradução da CEI 2008. “O sentido do pedido – comenta Stefani –, salvaguardando ao mesmo tempo o ineliminável caráter paradoxal, poderia ser traduzido melhor com um ‘não nos deixeis entrar’, expressão que não tem em si mesma nenhum sentido de instigação” (ibid.). “Nessa súplica do Pai-Nosso – nota o autor – convém conservar a força escandalosa que já desconcertava os Padres. Então, procurou-se atenuar seu impacto, recorrendo sobretudo a uma abordagem bem sintetizada pelas palavras de Hilário de Poitiers: ‘Não nos abandoneis em uma tentação que não podemos suportar’. A dificuldade deriva do fato de ter esquecido que somente identificando o envolvimento direto de Deus na tentação é que se pode compreender verdadeiramente sua paternidade” (p. 88-89).
“No horto, Jesus viveu de modo direto o vínculo a tentação e paternidade de Deus. Antes dele, embora de modo diferente, o nexo havia sido experimentado por Israel no deserto” (p. 89).
Segundo Stefani, é preciso entender bem o sentido de “tentar”. No deserto, tanto Israel quanto Deus são, por sua vez, “tentados” e “tentadores”. Precisamente em sua qualidade de filho, Israel torna-se uma prova e uma tentação para quem o gerou. As murmurações são uma verdadeira prova para o Senhor. Ao gerar seu povo, ele o expõe às tentações da vida. Jesus também as experimentou. Acima de tudo, a prova no horto do Getsêmani e a do abandono na cruz são uma provação e uma tentação às quais o Pai só pode responder com o poder da ressurreição.
Schweitzer e outros interpretaram a prova em um sentido “escatológico”. A “cruz” e a “consumação da história” são provas conectadas e duras. É preciso rezar para que sejam abreviadas, para que o cálice passe, para que o Pai não nos deixe entrar na tentação. O primeiro pedido é de sermos poupados. “Na ‘ausência’, a ‘presença’ é forçada a assumir o aspecto do pedido”, conclui Stefani seu comentário sobre esse pedido. “Foi assim também para Jesus na cruz: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ (Mt 27,46; Mc 15,34; Sl 22,2). Somente rezando ao Pai para que não nos abandone ou interrogando-o sobre o porquê de sua ausência é que se pode captar o significado do pedido de não sermos introduzidos na tentação” (p. 91).
O livro contém um rico comentário teológico sobre o Pai-Nosso, fruto de uma longa frequentação bíblica e da tradição judaica. Escrito em linguagem não técnica, praticamente sem notas de rodapé, a obra é um útil subsídio para a oração mais “praticada” pelos discípulos de Jesus, mas que nunca deixa de surpreender pela sua profundidade de significados.
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Pai-Nosso, breviário do Evangelho. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU