20 Dezembro 2013
A vida sobre a Terra é um vale de lágrimas, mas acima de tudo é exílio de Jesus. Não estamos em exílio com relação ao que ignoramos em sentido absoluto; estamos em exílio com relação ao que se perdeu, mas que, ao mesmo tempo, esperamos ardentemente reconquistar. Assim é Jesus para nós: o encontro pleno com Ele é guardado no seio do futuro.
A análise é do filósofo e biblista italiano Piero Stefani, especialista em judaísmo e em diálogo judaico-cristão, e ex-professor das universidades de Urbino e de Ferrara. O artigo foi publicado no blog Il Pensiero della Settimana, 14-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Salve Rainha é uma das poucas orações que ainda são rezadas muitas vezes em latim, especialmente quando ela é cantada. Sabe-se que ela é medieval; ao menos em sua maior parte, que remonta ao século XI. A sua paternidade é concorrida, enquanto as atribuições são muitas. Mas talvez o melhor seja deixá-la no anonimato e pensá-la como uma oração recitada infinitas vezes até hoje, por gerações e gerações de fiéis.
Salve, Regina, Mater misericordiae,
vita, dulcedo, et spes nostra, salve.
Ad te clamamus, exsules filii Evae,
ad te suspiramus, gementes et flentes
in hac lacrimarum valle.
Eia ergo, advocata nostra, illos tuos
misericordes oculos ad nos converte.
Et Jesum, benedictum fructum ventris tui,
nobis, post hoc exilium, ostende.
O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria.
Se comparássemos a oração com a mentalidade atual, ela seria submetida a um forte peneiramento. Na primeira linha, sentiríamos como próximo o termo "mãe" e distante o de "rainha". O segundo verso passaria incólume, mas no terceiro se aprovaria o "clamamus" ("clamamos"), mas se rejeitaria a qualificação de "filhos degredados de Eva", assim como o fato de se apresentar "gemendo e chorando neste vale de lágrimas" (expressão que se tornou até proverbial para indicar uma atitude espiritual fechada à alegria).
Igualmente distante é identificar em Maria a função de advogada, se isso significasse pensar o seu Filho como juiz. Nesse caso, o Juízo Universal da Capela Sistina, em que Maria, por assim dizer, se faz pequena para segurar o braço julgador de Jesus Cristo, seria a ilustração mais adequada dessa oração.
A vida sobre a Terra é um vale de lágrimas, mas acima de tudo é exílio de Jesus. Não estamos em exílio com relação ao que ignoramos em sentido absoluto; estamos em exílio com relação ao que se perdeu, mas que, ao mesmo tempo, esperamos ardentemente reconquistar. Assim é Jesus para nós: o encontro pleno com Ele é guardado no seio do futuro. Nesse sentido, Maria é "spes".
O Papa Francisco concluiu a exortação apostólica Evangelii gaudium com uma longa oração mariana. Citamos apenas duas estrofes colocadas, grosso modo, no centro.
Alcança-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dá-nos a santa audácia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Tu, Virgem da escuta e da contemplação,
mãe do amor, esposa das bodas eternas
intercede pela Igreja, da qual és o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
em sua paixão por instaurar o Reino.
Alguns títulos ecoam os antigos, outros são contemporâneos. O que compreende imediatamente é que na oração do Papa Francisco há espaço não para o exílio, mas para o desenvolvimento e a paixão pelo crescimento do Reino na história.
Dissera anteriormente a exortação: " Acreditemos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo e está se desenvolvendo aqui e ali, de várias maneiras (…). A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos desse mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a surgir, porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não ressuscitou em vão" (n. 278).
As duas orações indicam horizontes abissalmente diferentes. Ambos estão hospedados na Igreja de hoje. Com relação à sua recitação, a Salve Rainha não está superada, mas está com relação à sua mensagem? A pátina do tempo se depositou sobre ela, mas a sua mensagem pode ser desvinculada daquelas expressões.
É obrigação concluir que as duas orações, ao menos em sentido implícito, representam dois modos radicalmente diferentes de entender e de viver a fé cristã.
A prova de que dentro da Igreja há lugar para ambas as opções está nos modos pelos quais os aderentes de uma e de outra versão atuam uns com relação aos outros. O amor ao próximo é uma obrigação que vale tanto no exílio quanto no germinar do Reino. No primeiro caso, porém, sabe-se que nunca se está à altura do que é pedido; no segundo, a incoerência é mais estridente.
Em ambas as opções, no entanto, é possível confiar na misericórdia de Deus.
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Duas orações a Maria. Artigo de Piero Stefani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU