10 Mai 2023
"As reflexões de Ellul são profundamente marcadas por sua fé centrada na Revelação e no primado da fé unido à caridade que se abre à graça proveniente de Deus. A linguagem é fluente, com pouquíssimas notas de rodapé", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 08-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jacques Ellul (1912-1994) foi historiador do direito, sociólogo e teólogo. Ele ensinou direito em Bordeaux de 1944 a 1980. Estava especialmente interessado na sociologia na sociedade tecnocrática moderna e na ética cristã em nossa sociedade. Convertido em determinado momento de sua vida, foi membro da Igreja Reformada da França.
O livro reproduz a transcrição, oportunamente redigida, de um encontro de estudo realizado em sua casa em 1978. Poderia parecer estranho que tal autor tenha dedicado extensas reflexões ao que Lutero definia uma "carta de palha", porque falava pouco de Cristo como fator central da vida cristã. No entanto, Ellul faz dela um objeto de estudo porque vê nela a presença da Revelação, o fulcro de sua fé, o critério de seu pensamento e o ponto de partida de toda reflexão.
O autor realiza sua própria tradução da Epístola e, às vezes, o texto do comentário não coincide exatamente com aquele apresentado nas traduções das perícopes nas quais divide o desenvolvimento de sua reflexão.
O viés do discurso de Ellul nunca é técnico no sentido filológico-exegético, mas visa enuclear os valores teológicos e éticos básicos que Tiago pretende transmitir.
O estudioso não considera a Epístola de Tiago como um conjunto enfadonho de um seguimento nem sempre coordenado de sugestões éticas de comportamento, mas a explicitação das consequências que emergem para a vida cristã do encontro com o Deus libertador que se revela fonte de uma lei de liberdade.
Deus é livre e feliz e nos quer livres e felizes. O Deus libertador traz a salvação universal e revela na Bíblia uma Palavra revolucionária que, acolhida na fé, visa abalar os critérios mundanos de vida caracterizados pela opressão, mecanismos e tecnicismos que aviltam o homem e a sociedade.
A revelação entrega ao homem que crê uma lei que os liberta do conformismo social, com suas dinâmicas econômico-políticas que oprimem o homem.
Segundo Tiago, é preciso distanciar-se da mentalidade mundana, não saindo ou condenando o mundo, mas vivendo imerso nele sem, no entanto, misturar-se e assimilar-se como se nos fundíssemos com ele. A criação é baseada na distinção e o cristão deve viver no mundo como seu ambiente, com o qual, porém, não deve se identificar abraçando seus critérios e comportamentos vividos de forma comunal.
O estudioso reproduz a Epístola de Tiago dividindo-a em grandes perícopes que procura ler em continuidade e ligando os temas que, à primeira vista, parecem ser relatados numa linha expositiva nem sempre coerente e fluida. A carta é dirigida à Igreja em dispersão, que conota tanto a Igreja quanto Israel.
Deus confia ao homem uma lei régia de liberdade. A liberdade é uma mudança de vida, que abraça um convite à alegria, mesmo no meio das provações que a fé deve suportar. Deve ser vivida na perseverança, com uma sabedoria que deve ser invocada por Deus.
O dinheiro - riqueza e pobreza - é considerado um teste e uma tentação. O rico gloria-se na sua humilhação e o pobre de sua elevação.
O rico passa como a flor do prado e deve dar a sua riqueza, senão Deus a tira dele. A Palavra de Deus anuncia o fracasso do rico, que precisa da graça e do perdão para ser resgatado da mentira da riqueza. Cristo se fez pobre, se despojou totalmente de todo poder humano. Deus está com o pobre, o ameaçado e o doente.
Quando se encontra uma maneira de viver sem a graça de Deus, Deus anula o que você faz. A tentação obriga a se perguntar qual é o valor fundamental da própria vida. O poder/dinheiro ou o amor de Jesus Cristo? A tentação depende exclusivamente do homem e vem do processo humano da ganância.
Depois da introdução centrada no caráter existencial do homem posto à prova, segue-se o restante da carta, dedicada ao problema da ética e da vida cristã.
Primeiro, se insiste sobre toda graça excelente que desce do céu, o novo nascimento por meio da Palavra, a ser ouvida e posta em prática na palavra falada cotidianamente.
Em 1,16-21 aparecem os termos do Deus imutável, o novo nascimento, a palavra criadora, a escuta e recepção da Palavra. A ira é, para Ellul, um uso instrumental da palavra de Deus implantada no crente. A impureza consiste em não receber a Palavra que perdoa. Quando ficamos aquém da palavra, tudo é impureza.
O excesso de malícia é o excesso de intelectualidade, o pensamento teológico colocado acima da Palavra recebida na simplicidade.
A palavra deve ser posta em prática e doa liberdade. Deus libertador doa uma lei de liberdade. Não manda, mas prospecta uma vida de relação amorosa com ele e com os irmãos. A palavra de Deus tem o efeito de nos tornar livres. Somos homens livres quando a escutamos e a colocamos em prática.
Palavras e ações devem expressar essa liberdade, única indicação moral oferecida por Deus, segundo Ellul. Onde há amor, encontra-se o amor de Deus e, consequentemente, o juízo está ausente.
A misericórdia triunfa sobre o juízo. Deus não manda, mas prospecta um caminho de liberdade tal, por exemplo, que não deve colocar à morte ninguém. Toda a lei moral é virada de cabeça para baixo. Não é constrição, mas promessa. Os mandamentos não são um imperativo, mas um futuro.
Jacques Ellul: Una legge di libertà. Commento alla lettera di Giacomo (Itinerari biblici)
Editrice Queriniana, Brescia 2023 (or. Montrouge-França 2020), pp. 176, € 20,00, ISBN 9788839929242.)
Tg 1,26-27 relata os temas de "refrear a língua", de "visitar órfãos e viúvas" como verdadeira religião e de se preservar das impurezas do mundo. Esses são temas que preanunciam o plano para o restante da carta.
Depois da introdução geral com o desenvolvimento da prova da fé, a posta em prática da palavra e da liberdade, o corpo da Epístola, segundo Ellul, divide-se em três partes. O cap. 2 enfoca a atitude para com os outros e o amor ao próximo. Tg 3,1-11 aborda o uso da palavra e o fato de controlar a língua. O fim do cap. 3, o cap. 4 e início de cap. 5 falam das impurezas do mundo. O fim do cap. 5 trata da paciência e da oração.
Se a religião é ascendente, a revelação é descendente. Tendo aceitado a revelação, não se está isento da atitude religiosa que é boa para todos os homens.
Ellul distribui sua análise, muitas vezes com intuições e interpretações originais, nos seguintes capítulos: Uma liberdade que é uma mudança de vida; Quem é o meu próximo?; O uso da palavra; As impurezas do mundo; Riqueza, paciência, perdão.
O estudioso consegue relacionar os vários temas entre si, que à primeira vista não parecem estritamente ligados entre si. O fato da graça de Deus que salva por meio de uma fé ativa e não apenas intelectual, permanece fundamental. A revelação e a graça têm preeminência na vida do cristão e a Palavra de Deus ilumina e orienta os vários campos da vida humana em vista da liberdade e da felicidade de cada homem. À revelação da graça o homem é chamado a responder com uma fé não asséptica, mas corroborada por obras muito concretas.
O que Ellul enfatiza é o fato de Tiago não pretender ditar regras morais/moralistas, mas iluminar caminhos e perspectivas abertas ao homem que se abre à Revelação com uma fé operosa e libertadora. A Palavra deve julgar tudo, guiar tudo e fecundar cada ação do homem.
A Palavra de Deus que revela a Verdade se encarna na palavra humana, que deve relacionar-se com a verdade para não cair na mentira.
A gravidade da mentira, segundo Ellul, refere-se à revelação de Deus. Satanás quer levar o homem a mentir sobre Jesus Cristo. O Espírito Santo revela a verdade de Deus, é quase o discurso de Deus, o discurso da Revelação. Ele nos ensina quem é o Filho do homem. “E a gravidade do pecado contra o Espírito Santo consiste na renegação de Jesus Cristo como Filho de Deus e Filho do Homem. Isso não pode ser perdoado, porque Jesus Cristo é o único caminho para o perdão escolhido por Deus. Se a revelação de Deus em Jesus Cristo não for reconhecida, não há perdão” (p. 88).
A palavra humana tem uma dimensão moral. Pode ser usada para louvar a Deus e testemunhá-lo diante dos homens, mas também de forma diabólica para enganar as pessoas. A língua do homem é difícil de domar, mas, a partir do momento em que o homem fala a Palavra de Deus, é revestido por sua perfeição e é uma prova visível da obra do Espírito no homem. A palavra humana não deve obscurecer aquela da Revelação, nem mesmo a palavra teológica.
A inteligência de que fala Tiago não é de tipo filosófico ou de uma qualquer ciência, mas a da Revelação de Deus: a aplicação da inteligência ao conhecimento da Bíblia.
A sabedoria de Deus, considerada amplamente, de acordo com Ellul, é a maneira de Deus governar o mundo. Devemos viver no mundo com uma sabedoria assim. “É, pois, em torno de dois elementos que a vida cristã deve organizar-se: a inteligência da palavra para saber o que há para viver, e a sabedoria para saber viver como é preciso viver e que decisões tomar” (p. 94).
O zelo amargo e o espírito de contenda estão relacionados com a inteligência e a sabedoria. Isso, de acordo com Ellul, costuma acontecer na vida eclesial. O zelo amargo é próprio de quem quer impor suas ideias aos outros. Em vez disso, é preciso uma sabedoria do alto, a sabedoria "fraca" da qual Paulo fala sobre Jesus Cristo (1 Cor 1,19-30).
Jesus se fez sabedoria por nós e podemos descobrir nossa sabedoria somente nele. “Uma sabedoria de homem, mas que vem de cima. Quando entendemos que a sabedoria de Deus é Jesus Cristo, isso se torna evidente, Deus não toma o governo do mundo com o poder, mas somente com a conquista do amor. Na sua sabedoria, Deus ama o mundo a ponto de dar a sua vida por ele” (p. 97).
A sabedoria terrena é carnal, diabólica. É domínio, violência, injustiça, desordem, más ações. O crente rompe com o mundo, mas se relaciona com ele de maneira diferente. A sabedoria do alto é, de fato, pacífica, moderada, conciliadora, cheia de misericórdia. O amor restaura a relação e esse ponto é fundamental para a compreensão da moral cristã. “Implica santidade, caridade e amor, implica romper com certas condutas, e estabelecer outras condutas, outras relações [...] ruptura e criação de uma nova comunicação” (p. 99-100). A verdadeira sabedoria é desprovida de duplicidade e hipocrisia.
Segundo Ellul, a pureza corresponde ao próprio ato de criação de Deus, que é um ato de colocar em ordem. E a impureza refere-se ao caos, ao disforme, à mistura. No entanto, o mundo e o Espírito de Deus não são incompatíveis. Não se deve buscar a eliminação do mundo em vista de uma espiritualidade absoluta, nem uma eliminação do Espírito considerando como única coisa importante a presença exclusiva no mundo. É preciso não ser estranho ao mundo, “porque Deus continua a estar em relação com a sua criação, mas sem confusão. A impureza consiste precisamente em omitir essa distância, em levar o próprio amor ao mundo em vez de o levar ao Criador do mundo. Não se pode servir a Deus e a Mamom ao mesmo tempo” (p. 114).
Essa passagem da Epístola de Tiago não é primariamente moral ou ascética, de acordo com o estudioso. Trata-se da nossa relação com Deus, da necessidade de “submeter-se a Deus, de se fixar na vontade positiva de Deus, na sua vontade de amor, de graça, de salvação [...]. Se nos colocarmos sob o amor de Deus, o demônio foge. E todos os poderes de divisão, ruptura, desagregação, ódio, tensão desaparecem da nossa relação conosco e com os outros” (p. 115).
É necessário aproximar-se de Deus, sentir a própria miséria, não julgar os outros, não pretender ser donos do próprio tempo e do próprio futuro, mas dizer: "Se Deus quiser...".
À luz do tema da não autoposse, também podem ser lidos os últimos versículos da Epístola de Tiago, sobre riqueza, paciência, perdão e oração.
A Deus que se revela e doa uma lei de liberdade, o homem tem a possibilidade de responder livremente com uma vida de amor, perdão, graça, paciência, oração, não busca de poder e critérios mundanos de vida. Uma vida de liberdade repleta de conteúdos fraternos e atenção e cuidado com os mais fracos e sofredores. O pecado é perdoado quando nos abrirmos à graça de Deus. A fé triunfa, mas sempre acompanhada da caridade.
As reflexões de Ellul são profundamente marcadas por sua fé centrada na Revelação e no primado da fé unido à caridade que se abre à graça proveniente de Deus. A linguagem é fluente, com pouquíssimas notas de rodapé.
Algumas argumentações podem surpreender e não encontrar uma concordância imediata, mas permanecem provocações para uma vida cristã plenamente inserida no viver humano, mas alternativa nos valores profundos que a animam e nas relações renovadas que pretende criar.
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Ellul e a Epístola de Tiago. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU