Professor por muitos anos nos seminários de Milão e depois pároco em Lecco e em São João de Latrão em Milão, Angelo Casati (nascido em 1931) une um profundo conhecimento dos textos bíblicos com uma refinada sensibilidade literária e poética, que o tornou um conferencista de renome e autor de textos muito apreciados.
O comentário é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 05-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em seu livro “Sulla terra le sue orme. Commento al Vangelo di Luca” [Sobre a terra, as suas pegadas. Comentário ao Evangelho de Lucas], ele reúne as reflexões escritas em vários momentos de seu ministério pastoral, dando maior peso a alguns trechos do que a outros. De toda a forma, ele relata o texto completo do Evangelho de Lucas dividido por trechos e blocos literários que constituem uma unidade de sentido mais amplo.
Novo livro de Angelo Casati (Foto: Divulgação)
Casati acompanha de perto o longo caminho de Jesus da Galileia a Jerusalém, lugar do dom total de si mesmo na cruz. Esta é o sinal poderoso e resumidor de toda uma vida gasta com atenção plena de cuidado às pessoas que o rodeavam, testemunhando um Deus curvado sobre o ser humano para acolhê-lo, aliviá-lo, libertá-lo do mal opressor.
Desde o batismo, Jesus demonstra ser uma pessoa, o Filho de Deus, que mergulha com plena humildade no meio de seu povo, oprimido por misérias morais e físicas.
Ele inicia seu caminho público depois de ter sido concebido pelo Espírito Santo, acolhido pela fé e pelo corpo hospitaleiro de Maria que, no encontro com Isabel, desaprisiona um pentecostes em um abraço.
Ainda no templo, em meio aos doutores, Jesus havia buscado o Reino de Deus, o sonho de Deus. Ele passa despercebido pelos gestores do templo, mas não pelos anciãos que vivem na fé profunda no Deus de Israel.
Sua vida é a de um profeta incômodo e rejeitado na própria terra, por ser testemunha de um Deus inclusivo. Um profeta, porém, que venceu a tentação de uma imagem falsa do Filho de Deus. No seu caminhar no meio do povo, Jesus se apresenta como um homem que passa, se inclina e escandaliza.
Os sinais prodigiosos que ele realizou fazem respirar, doam vida, levantam novamente os caídos, endireitam os aleijados, dão esperança aos desanimados, ressocializam os marginalizados em nível religioso e social. Ele elogia a fé de quem ajuda os doentes, favorecendo seu encontro com Jesus que os liberta do pecado e do mal.
O seu sábado é vivido na audácia da liberdade, porque foi para isso que foi instituído: memória viva para o ser humano do fato de ser imagem de Deus e de ter sido libertado como povo da escravidão do Egito.
No discurso da planície, Jesus dirige uma palavra exigente e beatificante, interrogando os ouvintes sobre a gratuidade (e não “gratidão”, cf. tradução da CEI 2008, observa Casati) que está no seu coração.
A fé deve ser proclamada, mas também vivida em obras concretas. Ele dá um exemplo, passando por vilarejos, cidades e casas enaltecendo a fé dos distantes, acariciando rostos, escandalizando com a mansidão, desmantelando as regras religiosas e sociais com a ternura, incluindo escandalosamente até as mulheres em seu séquito.
Nas suas parábolas, ele sublinha o “desperdício” que faz da semente da palavra, desfazendo as fronteiras daqueles que são considerados “de dentro” e, em vez disso, se veem rotulados como “de fora”. Para Jesus, a dignidade da pessoa vale muito mais do que os interesses mundanos. Nele, Deus se deixa tocar, e por isso o estilo já é um anúncio.
O reino está presente em sua pessoa e em sua atitude com as pessoas. O sonho de Deus se realiza com a partilha da vida concreta das pessoas, muito longe dos rituais estereotipados do templo e das regras embalsamantes das lideranças religiosas do seu povo.
A paixão o transfigura, e ele agradece a uma geração que sabe fazer perguntas sobre sua identidade. Quem se endurece se fecha à recepção de sua mensagem de vida, mas mesmo nas cidades da ganância a sua lógica continua sendo a do dom.
Jesus é frequentemente apresentado por Lucas enquanto está em oração ou enquanto está ensinando sobre ela. A oração anticlerical é o monólogo consigo mesmo, enquanto a verdadeira é bater à porta de Deus durante a noite.
Sem escuta, não há hospitalidade, lembra Jesus à atarefada Marta, “preocupada” com coisas que, no fim das contas, são secundárias, embora importantes.
A consciência é a lâmpada do ser humano e deve estar vigilante contra o sutil e insidioso mal da hipocrisia e o retorno do demônio derrotado uma primeira vez.
Lucas é muito concreto em suas “beatitudes”, um verdadeiro manifesto dos humildes. Além da oração, Jesus dá uma grande atenção ao tema da riqueza. De que serve ter celeiros cheios quando os rostos estão apagados?, pergunta-se Casati. É preciso viver como “videntes”, com as reservas das lâmpadas sempre à mão.
O olhar de Jesus se volta para a pequenez: ele tem a paixão de quem volta à enxada depois de três anos de improdutividade da figueira, endireita quem está curvado, exige um conhecimento íntimo de sua pessoa e não apenas uma presença genérica nas praças dos discursos ou nos banquetes “eucarísticos” infrutíferos.
Os banquetes são uma oportunidade para recordar a humildade, a gratuidade, a universalidade dos convidados. Para seguir Jesus é preciso se separar para seguir (parábolas da torre e da guerra com adversários mais numerosos).
São estupendas as parábolas da misericórdia lembradas por Lucas no capítulo 15. Elas trazem ao coração a boa notícia sobre a relação de Deus Pai com seus filhos, exemplificada pelo comportamento de Jesus com os publicanos e os pecadores acolhidos por ele de coração aberto. Compartilharemos o coração do Pai como Jesus fez?, pergunta-se Casati.
O discípulo deve se precaver da armadilha da riqueza e buscar amigos verdadeiros que não passam e que acolhem no céu. A indiferença do homem rico, puro “tubo digestivo” sem nome nem dignidade, faz dele um símbolo do homem que perde a própria identidade porque “não percebe” quem está à sua porta, necessitado de cuidados. O Papa Francisco, nunca citado no texto de Casati (que, por sua vez, recorda várias vezes o cardeal Martini), falaria da globalização da indiferença.
Dentro dos dias da comunidade, habita o poder da pequena semente, e os discípulos de Jesus são simples servos (não “inúteis”, cf. CEI 2008, observa Casati) que cumpriram o que lhes foram ordenado.
O coração do leproso samaritano o levou para longe, não para o templo, mas para adorar e agradecer ao Deus libertador anunciado por Jesus.
Olhando para a frente, para o dia do Filho do homem, Jesus adverte contra um terrível déficit de vigilância, enquanto os dias do discípulo são cheios de oração, pequenez e seguimento. Sem se cansar com uma resposta que nunca parece chegar do Deus dos oprimidos... O abraço de uma criança já é uma mensagem cheia de significado. O que somos atravessa faz ultrapassar a fronteira da morte, não os bens acumulados na terra.
Jesus recordará três vezes o seu destino de sofrimento e de morte que o espera em Jerusalém, mas a revolução da Páscoa, uma sabedoria nova, custa a se impor na consciência dos discípulos. Uma revolução que empalidecemos, observa o autor.
No trecho final da subida a Jerusalém, em Jericó, Jesus percorre as estradas da compaixão de Deus: um cego (chamado Bartimeu, segundo Mc 10,46) e Zaqueu encontram a visão e a salvação, e são símbolo do discípulo que segue Jesus rumo à Jerusalém que mata seus profetas. Eles não podem morrer fora de seus muros... A parábola das 10 minas ilustra a fé como um impulso de encorajamento.
Jesus sobe com mansidão e humildade pelas estradas que vão de Betfagé e Betânia até a entrada em Jerusalém. Casati cita uma reflexão do cardeal Etchegaray sobre o fato de estar contente em servir de jumento que carrega Jesus...
No templo, Jesus é aquele que cria desordem e se encontra no círculo dos opositores, que são, no entanto, colocados contra o muro em suas controvérsias teológicas. São pessoas que se impõem sobre a vinha que lhes foi confiada por Deus, assassinos cruéis em vez de guardiões fiéis.
As discussões no templo recordam que o ser humano é feito à imagem de Deus, a quem é preciso devolver tudo o que somos, superando até os gargalos humanos de considerar a vida eterna como pura continuação da vida terrena.
Uma pobre viúva que dá tudo de si mesma em esmola é posta na cátedra por Jesus, imagem última – antes do discurso escatológico – do dom total que ele faria em poucos dias.
O discurso lucano sobre as realidades últimas é marcado pela atmosfera de alegria pela libertação que o dia da irrupção plena do Reino de Deus dá ao caminho do ser humano. Não devemos nos deixar enganar por falsas promessas ou por personagens messiânicos manipuladores.
A Ceia na hora em que Jesus foi traído é uma mistura de luzes e de sombras que habitam em cada discípulo de Jesus. Casati segue em grandes traços os relatos da paixão e da Páscoa vividas por Jesus. A Deus deve ser dado o nome de “pai”, apesar de tudo, porque ele é o verdadeiro defensor do ser humano aprisionado pelos inimigos. Na noite de sua traição, Pedro conhece paradoxalmente o seu Senhor que, no vale escuro da desumanidade que o envolve, semeia a luz da sua declaração como Filho de Deus.
Jesus revela plenamente a si mesmo e a Deus, seu Pai, na tragicidade da morte em cruz, vivida na oração e no abandono confiante. A cruz como cátedra para nós, comenta Casati. São os momentos trágicos da morte, mas também a hora da ternura das mulheres e dos discípulos que se apresentam com coragem.
No entanto, não devemos procurar entre os mortos aquele que está vivo, ouvem as mulheres que pretendem homenagear o cadáver de um defunto da melhor maneira possível.
Nos relatos da ressurreição, agitam-se leveza e estremecimento.
Os dois discípulos de Emaús abrem os olhos e reconhecem o Senhor não no relato de uma crônica – a Igreja não deve fazer isso, lembra Casati –, mas na presença de um gesto habitual de partilha, iluminado pela Palavra do Antigo Testamento. “[Porque] se uma Igreja começa a fazer crônicas, a dizer o que todos vemos, torna-se insignificante. Em vez disso, ela tem como compromisso contar o sentido, ligado à morte e à ressurreição de seu Senhor, e o sentido é que aquele que tem a coragem de amar, faz-se vulnerável por isso mesmo como seu Senhor, mas passa da morte à vida. Enquanto aquele que não ama já está morto, permanece na morte, como escreve João em sua carta” (p. 245).
Não se deve esquecer, porém, que o reconhecimento de Jesus ressuscitado é desencadeado por um gesto inicial de generosa hospitalidade dos dois discípulos a um desconhecido.
No cenáculo, Jesus se mostra aos seus com o corpo transfigurado e não como um fantasma enganador. Seu último gesto terreno é comer peixe assado, antes de subir ao céu abençoando os seus, precisamente nos lugares que viram seu abandono ao Pai na dor. As mãos abençoantes de Jesus são mãos que elevam, fazem subir, enquanto acompanham os discípulos em sua tarefa de serem testemunhas do Ressuscitado. Com a ressurreição escrita nos rostos, escrita em vida!
Mas essa é outra história, contada pelos Atos dos Apóstolos.
O livro de Casati envolve em nível intelectual e afetivo, rico na concretude humana à qual a fé cristã é chamada. O recorte adotado não é exegético, mas espiritual-experiencial. Não há notas nem bibliografia. O autor sempre atualiza as palavras do Evangelho para a vivência atual do discípulo. Amar a terra e os rostos dos seres humanos, acariciá-los com a mansidão de Jesus: uma bela tarefa para os cristãos.
Críticas pontuais e severas também não são poupadas à Igreja aqui e ali, mas o tom do autor é sempre sereno, positivo e construtivo.
Gostaríamos de concluir estas notas relatando um dos textos poéticos do autor:
Como de uma fissura
na noite extrema
vaza sem ferir
uma luz,
enternecimento da angústia.
Presenças leves
como que de mistério,
sussurros de vida
no jardim do túmulo vazio,
entre as portas
abertas do cenáculo,
no cheiro de peixe assado
nas areias extasiadas
do litoral:
é o Senhor.
Por que choras, Maria?
Não o procures
entre coisas mortas.
Acende uma lâmpada na tua janela
e sê sinal na noite
porque passou por aqui,
hoje, o Vivente, o Ressuscitado (pp. 349-350).
CASATI, Angelo. Sulla terra le sue orme. Commento al Vangelo di Luca (Biblica). Bolonha: EDB, 2021, 368 páginas.