22 Junho 2022
"O conceito de humorismo, entendido dessa forma ampla, torna-se, portanto, para Jesus, segundo Berger, uma via simbólica para inflamar de força e radicalidade palavras e ações, apelos e juízos, vida e morte. É uma epifania do humano de Cristo, uma qualidade posteriormente ampliada pelos Evangelhos apócrifos", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 19-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Humorismo evangélico. Esse aspecto da personalidade de Cristo é particularmente evidente nos evangelhos apócrifos e o torna muito próximo de nós.
Quando Amos Oz, um dos escritores mais livres e criativos de Israel, publicou no ano de sua morte, em 2018, um romance dedicado a Judas, o traidor de Cristo, divulgou esta confissão autobiográfica: "Li os Evangelhos e me apaixonei por Jesus, pela sua visão, pela sua ternura, pelo seu soberano senso de humor", e continuou exaltando o fascínio de seu surpreendente ensinamento. Tudo verdade, mesmo para quem não é crente: palavras semelhantes de amor, por exemplo, André Gide tinha reservado a Jesus. O que, à primeira vista, parece difícil de compartilhar é a admiração pelo "soberano senso de humor" de Jesus, tanto que um autor medieval, em um latim icástico, não hesitou em declarar: Flevisse lego, risisse numquam. É claro que Cristo chorou a morte de seu amigo Lázaro, mas o verbo grego gheláô, "rir", ressoa nos Evangelhos em seus lábios apenas nas bem-aventuranças em dupla forma provocativa: "Bem-aventurados vós que agora chorais, porque haveis de rir... Ai de vós que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis” (Lc 6, 21.25). Aliás, é ele quem é "zombado" (katagheláô) por ocasião do episódio da filha de Jairo (Mateus 9,18-26).
Klaus Berger, Queriniana, pp. 232, € 28 (Foto: Divulgação)
É surpreendente, então, que - no limiar de sua morte que aconteceu em 2020, aos 80 anos - um dos maiores neotestamentaristas alemães, Klaus Berger, autor de um verdadeiro best-seller, Jesus (quatro edições italianas na La Queriniana), quis dedicar um ensaio inteiro ao "humorismo de Jesus". É um texto tudo menos alegórico, baseado em um duplo registro que entrelaça a análise exegética, teológica e literária com uma hermenêutica muito viva e criativa, confiada no final a um glossário para evitar equívocos, sempre à espreita sobre um assunto tão móvel.
Eis, então, sua definição do humorismo de Jesus: "A inversão de tudo o que é de outra forma percebido como sério, ameaçador e capaz de incutir medo. É, portanto, a destruição do poder que se pavoneia e a reafirmação da liberdade”. Intui-se que na égide desta categoria são inseridos componentes diferentes como o paradoxo, a ironia, a crítica, a liberdade expressiva, o risco, a hipérbole. Para esse último propósito, o leque se amplia de maneira impressionante, mostrando o uso hábil do absurdo por Cristo para romper os estereótipos.
Comecemos pelo título do ensaio com o famoso contraste entre o imponente camelo e o minúsculo furo da agulha. Mas poder-se-ia continuar mais com o desconcertante convite a amputar olho, mão, pé, com o cego que se torna o guia de cegos, com o escorpião ou a serpente dada como alimento a um filho, com a lâmpada acesa e escondida debaixo de um barril, com o morto que deveria enterrar os mortos, com punhados de pérolas jogadas para comer aos porcos, com o filtro que segura os mosquitos e deixa passar um camelo, com o filho desocupado preferido ao manager primogênito na casa paterna e assim por diante. Entre parênteses, quem não consegue identificar todos os exemplos propostos até agora é sinal de que não leu os Evangelhos na íntegra.
Se quiséssemos aprofundar o sentido dessa abordagem de Jesus em relação à história, à verdade, à própria morte, aos animais e ao poder, o percurso a que nos conduz Berger transforma-se numa inesperada, mas não extravagante, releitura dos Evangelhos. De fato, o sumo do anúncio de Cristo, reconstruído através das rigorosas normas da análise exegético-teológica, encontra-se intacto nesse ensaio, mas com uma incisividade e um aspecto inédito, às vezes com uma causticidade (é inclusive oferecida uma comparação com o pensamento cínico clássico) e uma grandeza insuspeitada que o véu do humorismo não obscurece, mas exalta.
Transgressor de tabus, Cristo consegue extrair ensinamentos virtuosos até do indecoroso, como o incômodo noturno infligido a um vizinho (Lc 11, 5-8), ou o abandono de um grupo de garotas na rua no meio da noite (Mt 25,1-13), ou se deixar classificar como "glutão e bêbado" no meio de um bando de glutões (Mc 2,18-20). Berger comenta: "Aqueles que suportam as provocações de Jesus ou até as consideram edificantes, precisam de senso de humor, caso contrário ficarão confusos diante dele". Até mesmo algumas cenas milagrosas revelam um perfil semelhante, como quando ele lança este grito para a tempestade que assola o lago: "Pare com isso, já chega!" Ou como quando imagina as incríveis acrobacias de uma amoreira ou de um monte reviradas em suas bases para ilustrar o tema da fé pura e radical (Mateus 17,20; Lucas 17,6). Sem mencionar os dois mil porcos que se afogaram no lago de Tiberíades (Marcos 5,13). Falando em animais, na esteira de uma tradição universal, eles podem se tornar mestres do humorismo, desde os já mencionados camelos e porcos até as ovelhas, os cachorros, os peixes, os pássaros e as serpentes ("sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas").
O conceito de humorismo, entendido dessa forma ampla, torna-se, portanto, para Jesus, segundo Berger, uma via simbólica para inflamar de força e radicalidade palavras e ações, apelos e juízos, vida e morte. É uma epifania do humano de Cristo, uma qualidade posteriormente ampliada pelos Evangelhos apócrifos.
Ionesco ressaltava que “onde não existe humor, não há humanidade; onde não há essa liberdade que se toma em relação a si mesmos e à realidade, existe o campo de concentração”. E as ditaduras o ensinam com sua alergia a toda ironia.
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Jesus é tão humano que nos faz rir. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU