24 Mai 2023
"De acordo com Eliane Brum e Papa Francisco, não há caminho possível para avançarmos na ecologia integral se não aprendermos com os povos-floresta, com os mais pequeninos, sem compreendermos que somos uma única natureza, que não há separação real entre o ser humano e o resto do planeta", escreve Alexandre A. Martins, professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Este artigo é um exercício de aprendizado, em vista de reforçar o que se aprendeu a partir da leitura de textos de duas pessoas certamente bem diferentes, situadas em dois universos distintos de crenças e visão de mundo, com níveis díspares de poder dentro de seus círculos próprios e institucionais; mas, com uma preocupação comum, a partir do reconhecimento que vivemos uma crise ecológica que ameaça a sobrevivência das espécies ainda não extintas, da espécie humana em particular, e da vida em geral no planeta Terra.
A jornalista Eliane Brum – nascida no Rio Grande do Sul, viajou o mundo para fazer as suas reportagens, chegando até a Antártida, e escolheu a cidade de Altamira, no Pará, para ser sua morada – e o Papa Francisco – que era o Bispo Jorge Mario Bergoglio, preparando-se para a aposentadoria em sua querida Argentina, quando é tomado por um sopro dentro da Igreja Católica para ser o seu inesperado líder – compreenderam que a crise ecológica em que vivemos é uma ameaça à vida em nosso planeta. Para eles, não há saída se não cuidarmos da terra, dos povos da floresta, dos pobres e de todas as espécies vivas.
Ambos abraçam a visão que muitos chamam de ecologia integral, onde não há separação entre os humanos e a natureza, mas apenas uma única natureza, da qual todas as espécies – animais, incluindo o animal humano, vegetais e minerais – fazem parte. Minha intuição, por meio da leitura de seus escritos, é que eles chegaram a essa conclusão por meio da escuta de caráter espiritual e humano, particularmente da escuta daqueles que são considerados, por indivíduos dominados pela mentalidade mecanicista de progresso infinito, como pessoas sem algo a oferecer para o desenvolvimento das sociedades humanas.
Em seu último livro, Eliane Brum se auto-entitula escutadeira. Papa Francisco não se atribui esse título, mas seu ministério tem mostrado essa mesma prática que, por sua vez, resplandece em seu ensino social e eclesial, com um destaque dado, e talvez nunca antes ressaltado por um sucessor de Pedro, para a importância da escuta. Ambos vêm de realidades diferentes e com visões de mundo claramente distintas. Além do objetivo comum de uma nova relação com o meio-ambiente, talvez a única coisa semelhante entre eles é serem duas pessoas brancas cujas existências são, nas palavras de Eliane, um existir violentamente – uma expressão que aponta para o fato de que apenas ser branca/o já representa uma experiência histórica de opressão para quem não é branca/o como você. Dessa forma, é preciso recriar a si mesma/o para estar com os outros que não são seres de branquitude como você. Por caminhos muitos diferentes, Eliane e Francisco recriaram-se para abraçar a natureza como parte de si e o si mesmo integralmente nela.
Meu conhecimento do trabalho de Eliane Brum é limitado. Conheço seu trabalho como jornalista, especialmente pela leitura de alguns artigos publicados no jornal espanhol El País e através do projeto jornalístico liderado por ela, chamado Samaúna, que publica artigos a partir da região amazônica. Recentemente, um amigo me enviou a foto de um livro sobre a Amazônia, perguntando se o conhecia. Estava eu nos EUA e esse amigo, um médico estadunidense muito comprometido com causas ambientais, lia a tradução para o inglês desse livro. Não conhecia o livro, mas sabia quem era a autora, Eliane Brum. O título – Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo – chamou minha atenção. Pesquisei e encontrei a edição original em português, mas não consegui adquirir uma cópia na língua usada por Eliane para escrever esse livro impactante, do ponto de vista de uma escutadeira que decidiu viver na cidade mais violenta da Amazônia brasileira, Altamira, no interior do Pará. Tive que me contentar com a tradução em inglês, que não é ideal, pois, como brasileiro que eu sou, poderia ler no original. Porém, não queria esperar minha próxima ida ao Brasil para iniciar a leitura. Perdoem-me, leitores brasileiros, se me equívoco na interpretação, devido a uma tradução às avessas do que apresento aqui.
Encontro centro do mundo. Amazônia centro do mundo, Pará. (Foto: Divulgação).
A edição que tive em mãos era de leitura muito agradável, com relatos altamente vivos, mesmo não sendo na língua original, e foi possível visualizar muitos dos fatos e realidades descritas por Eliane, talvez por minha familiaridade com a região Amazônica, onde já vivi e ainda vive parte da minha família. Certas vezes, durante a leitura, me perguntava se o leitor nativo da língua inglesa conseguiria apreender a sutileza dos detalhes apresentados por Eliane, permeados pela cultura e pelos desafios da realidade local amazonense. Apesar de ser uma obra longa e não um romance de suspense, a leitura fluiu sem dificuldades, em um misto de encantamento, angústia e revolta, que me fez avançar para chegar ao fim e compreender toda a história. A questão é que não existe uma única versão dessa história, mas muitas narrativas que formam esse livro que, na verdade, não tem um “fim”.
Essa História ainda está sendo contada e poderá ser o fim da Amazônia, ou mesmo o fim de tudo. Ela pode ser vista de muitas formas e Eliane escolheu contar essa história a partir da visão dos povos da Amazônia com quem teve contato: pessoas simples – indígenas, ribeirinhos ou beiradeiros, camponeses e empobrecidos vivendo em Altamira – que partilharam suas experiências e encontraram na jornalista ouvidos para escutar, o visível do corpo que levava a uma mente e um coração abertos para aprender e, só então, poder amplificar essa visão para o mundo, a fim de que muitos outros também aprendam que a Amazônia é o centro de mundo.
Não vou entrar em mais detalhes sobre o livro, pois meu objetivo aqui é apenas mostrar a importância de se escutar os mais pequeninos, especialmente os povos-floresta (conceito de Eliane), se quisermos avançar para uma nova forma de organização social humana que cuida da terra, para que toda a natureza floresça como uma única natureza em harmonia. Mas o que significar escutar? Eliane reponde:
Cabe explicar o que considero escuta, na minha opinião a principal ferramenta de um jornalista. Antes de alcançar uma outra pessoa, busco me esvaziar de mim – minha visão de mundo, minhas crenças, meus preconceitos. Claro que o esvaziamento não é completo, porque é impossível abandonar completamente o corpo cultural. Mas o movimento, o esforço, é fundamental. É o que me permite deixar a narrativa de alguém ocupar meu corpo como a narrativa de alguém e não como a narrativa de alguém distorcida por aquilo que minhas crenças e preconceitos não me deixam ouvir.
Eliane reconhece que o ato de transmitir o que escutou de alguém nunca será perfeito, porque isso sempre se dá por meio do corpo de quem escuta. Por mais vazio que se esteja para poder escutar e aprender com o outro, o corpo não é um vácuo, mas pode ser alterado pelo outro: “Eu também sou alterada por essa experiência”, diz ela.
Permitir esse escutar que nos altera abre caminho para compreender que a natureza é apenas uma. Não conseguiremos enfrentar a crise ecológica se não nos transformarmos para perceber que também somos parte da natureza; ou para sermos capazes de fazer um movimento “radical” semelhante ao de Eliane: descolonizar [nosso] corpo para compreender o corpo da floresta e [a nós mesmos] como um corpo na floresta.
Papa Francisco não fez o movimento radical de ir viver na floresta como Eliane, mas o fez como líder de uma das maiores instituições do mundo e como guia espiritual dos fiéis católicos, colocando a escuta da voz dos mais pequeninos como o ponto de partida do viver eclesiástico e da missão pastoral e social das comunidades católicas. Em uma instituição milenar e altamente hierarquizada como a Igreja Católica, esse é um movimento audacioso que tem encontrado muita resistência, especialmente dentro da própria hierarquia da Igreja.
Francisco sempre ressalta a importância do diálogo em seus documentos e pronunciamentos, enfatizando o que chama de cultura do encontro. O escutar o outro, com a mente e o coração abertos para aprender com ele, é fundamental nesse diálogo. Em outro texto, publicado em um livro organizado pela Sociedade Brasileira de Teologia Moral (“Escutar como um princípio social católico: uma ponte para o diálogo como iguais a partir do Sul” em Cruzar fronteira: uma urgência para a ética teológica, pela Editora Santuário, 2022), argumentei que o escutar, tal como é desenvolvido pelo magistério de Francisco, deveria ser considerado um princípio social da Igreja. Escuta e discernimento são pilares do ensino do Papa. Seu esforço por uma Igreja marcada pela sinodalidade é um exercício concreto da importância do escutar para uma Igreja que deve escutar todos os seus fiéis, desde os mais pequeninos.
Livro "Cruzar fronteiras: uma urgência para a ética teológica", que será lançado no 45º Congresso Brasileiro de Teologia Moral. (Foto: Divulgação)
No que diz respeito à Amazônia e à defesa do meio-ambiente, Francisco é claro em relação à importância do escutar os povos da floresta antes de qualquer ação. Na encíclica Laudato si’, Francisco apresenta uma visão ecológica integral, na qual não há como cuidar da Terra se não cuidarmos de seus habitantes mais vulneráveis, isto é, os pobres. Ele aponta para a centralidade de escutar os pobres e os grupos historicamente marginalizados, em um processo inclusivo de aprendizado a partir dessas vozes. Contudo, é na exortação apostólica Querida Amazônia, por sua vez um documento fruto da sinodalidade tão querida pelo Papa Francisco, que ele mostra, de forma objetiva, sua compreensão de que somos uma única natureza e que não podermos avançar na causa ecológica sem escutarmos os povos da Amazônia e aprendermos com eles. O número 26 desse documento é muito claro:
A Amazônia deveria ser também um local de diálogo social, especialmente entre os diferentes povos nativos, para encontrar formas de comunhão e luta conjunta. Os demais, somos chamados a participar como “convidados”, procurando com o máximo respeito encontrar vias de encontro que enriqueçam a Amazônia. Mas, se queremos dialogar, devemos começar pelos últimos. Estes não são apenas um interlocutor que é preciso convencer, nem mais um que está sentado a uma mesa de iguais. Mas são os principais interlocutores, dos quais primeiro devemos aprender, a quem temos de escutar por um dever de justiça e a quem devemos pedir autorização para poder apresentar as nossas propostas. A sua palavra, as suas esperanças, os seus receios deveriam ser a voz mais forte em qualquer mesa de diálogo sobre a Amazônia. E a grande questão é: Como imaginam eles o “bem viver” para si e seus descendentes?
É por meio do escutar que, para Francisco, nos tornamos amigos dos povos-floresta, como Eliane Brum gosta de se referir aos indígenas, quilombolas e beiradeiros/ribeirinhos que vivem na Amazônia. Aqui, as perspectivas dos dois se encontram, em uma ecologia integral na qual não há outro caminho de transformação se não nos encontrarmos com os povos-floresta para escutá-los.
Em vários aspectos, há diferenças significativas na perspectiva dos dois. Apesar de não ser católica e não ter compromisso com nenhuma religião (penso eu, a partir do relato em seu livro), Eliane Brum tem uma visão positiva da atuação da Igreja Católica no Pará, mas também é crítica, sobretudo em relação à estrutura patriarcal da Igreja. Em seu livro, ela chega a criticar a ausência de qualquer manifestação de inclusão das mulheres na hierarquia católica no mesmo texto de Francisco que destaquei anteriormente. O Papa certamente também teria suas críticas em relação a alguns aspectos do pensamento de Eliane como, por exemplo, sua desilusão com a esperança. Mas como duas pessoas que acreditam no poder transformador do escutar, abertos a aprender do outro, não tenho dúvida que um diálogo entre os dois seria muitíssimo rico e repleto de bons frutos. Considerando apenas o meu exercício reflexivo, a partir da leitura de ambos os textos, podemos perceber essa riqueza.
Em conclusão, de acordo com Eliane Brum e Papa Francisco, não há caminho possível para avançarmos na ecologia integral se não aprendermos com os povos-floresta, com os mais pequeninos, sem compreendermos que somos uma única natureza, que não há separação real entre o ser humano e o resto do planeta. Ademais, para essa transformação acontecer, precisamos escutá-los com nossas mentes e corações abertos, a fim de aprendermos e sermos guiados por sua sabedoria. Assim como Eliane e Francisco defendem o escutar como método de ação e caminho de transformação, creio que devemos escutá-los, pois ambos estão nos ensinando algo importante.
Termino com poesia, algo em que Eliane acredita mais do que no martírio. Para ela, a resistência gera poetas: “poesia é o que dá voz ao inefável.” A resistência na Amazônia tem gerados muitos poetas. Já Francisco afirma que os poetas, “contemplativos e proféticos, ajudam a nos libertar do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna”. E cita Vínicos de Morais:
Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...). Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz.
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Banzeiro Òkòtó e Querida Amazonia: Dois escutadores, Eliane Brum e Papa Francisco, que precisam ser escutados. Artigo de Alexandre A. Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU