16 Janeiro 2023
"Se o cristão é restauracionista, legalista, se quer tudo claro e seguro, então não encontra nada. A tradição e a memória do passado devem nos ajudar a ter a coragem de abrir novos espaços a Deus", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 13-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Creio que entre as prioridades surgidas após a morte de Bento XVI está a de abordar a já comprovada natureza problemática do título de "Papa Emérito", seguindo a tese apresentada, antes do conclave passado, pelo cardeal Gianfranco Ghirlanda que, no início de 2013, escreveu em La Civiltà Cattolica: “É evidente que o Papa que renunciou não é mais Papa, portanto não tem mais nenhum poder na Igreja e não pode se intrometer em nenhum assunto de governo. Poderíamos nos perguntar que título Bento XVI manterá. Pensamos que deveria lhe ser atribuído o título de 'Bispo Emérito de Roma', como qualquer outro Bispo diocesano que deixa sua função".
Nem todos pensavam da mesma maneira que o ilustre canonista, embora o cardeal Müller - por razões opostas – tenha discordado do uso do título de "Papa Emérito", mas para se opor à ideia do Papa que renunciou, não tendo compartilhado o gesto.
Aqui, em vez disso, quero apresentar algumas razões de apreço para aquele ato, no mundo contemporâneo. Não estou pensando em eficiência física e mental, mas na lucidez e energia. Não sendo canonista – mas jornalista -, procuro expressar um ponto de vista relativo à Igreja e aos sinais dos tempos, às exigências do passado e do presente, à mudança dos tempos.
Parto de uma analogia não eclesial. Por mais impróprio que possa parecer à primeira vista, pretende captar a sensibilidade contemporânea. Vamos tentar imaginar as exéquias de um Presidente da República que já não está mais no cargo.
Quem pensaria, hoje, na Itália, em decretar luto nacional, convidar chefes de estado de todo o mundo, expor o corpo no Quirinale? Provavelmente ninguém: simplesmente porque ninguém ainda pensaria nele como o Presidente. Por que, em tal caso, o título não engana? Todos sabem que o Presidente é um só, como o Papa.
Mas com o Papa, nos ambientes eclesiais, os pensamentos não funcionam da mesma forma: certamente não por responsabilidade do Papa Bento XVI, mas por uma distorção histórica e psicológica. Pelo menos é isso que eu acho. De fato, quem são os cardeais? Eles são os titulares de igrejas e das paróquias romanas. Por causa desses títulos ou diaconias, são chamados a eleger o Bispo de Roma que, como tal, é o sucessor de Pedro.
Jorge Mario Bergoglio, que acabava de se tornar Francisco, finalmente o recordou depois de muito tempo: “Vocês sabem – disse ele – que o dever do conclave é dar um bispo a Roma. Mas parece que meus irmãos Cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo”. O que isso significa? Na minha opinião, isso quer dizer que o Papa é tal enquanto for Bispo de Roma: portanto, se renuncia, torna-se 'Bispo Emérito de Roma', assim como resultou, nos últimos dias, também das palavras do cardeal Kasper.
No entanto, esta minha visão ainda não resolve a evidência da história: os homens mudaram e, com eles, as estruturas e as prioridades. A época dos pais da Igreja foi logo substituída pela época "cesaropapista" que estava ligada ao poder do imperador Constantino que presidia os Concílios, mesmo antes de se converter.
A essa fase seguiu-se aquela mais teocrática de Gregório VII, Inocêncio III e Bonifácio VIII: uma reação à anterior - de certa forma - compreensível para a época. A novidade teocrática foi introduzida por Gregório VII com o Dictatus Papae, segundo o qual o Romano Pontífice é o único universal, o único que pode usar insígnias imperiais, o único que pode depor imperadores.
O cesaropapismo e a teocracia são claramente produtos posteriores – por alguns ou muitos séculos – depois de Cristo e Pedro. O Bispo de Roma, no arranjo teocrático, não será mais um primus inter pares entre os Bispos. Para emancipar sua figura da submissão do imperador, ele foi elevado com investiduras divinas, como, aliás, anteriormente, acontecia justamente para o imperador.
Inocêncio III, na Sicut Universitatis Conditor, deixou claro que “como Deus, criador do universo, criou duas grandes luzes no firmamento do céu, a maior para presidir o dia e a menor para presidir à noite, assim estabeleceu no firmamento da Igreja universal, expressa pelo nome de céu, duas grandes dignidades: a maior para presidir - por assim dizer - os dias, isto é, as almas, e a menor para presidir as noites, isto é, os corpos. Elas são a autoridade pontifícia e o poder régio”.
O Papa também é rei. Era necessário algo mais? Sim! Não se pode negar que Bonifácio VIII foi igualmente explícito em sua Unam Sanctam Ecclesiam: "As próprias palavras do Evangelho nos ensinam que nesta Igreja e em seu poder há duas espadas, ou seja, a espiritual e a temporal".
Os Papas citados, de fato, tornaram assim irreversível a divisão da "cristandade”, com a pretensão de unicidade, a dificuldade, para não dizer a impossibilidade, de dialogar com outros cristãos e portanto – por sua vez - de chegar a termos com as razões da modernidade.
Ora, pode renunciar um Papa assim forjado ao longo dos séculos? Obviamente não! O caso de Celestino V não é na realidade tão isolado, pois abdicaram no período que antecedeu a virada teocrática, tanto Clemente (em 97 d.C.), Ponciano (em 235), Marcelino (em 304), Silvério (em 537), Bento IX (em 1045), João XVIII (em junho de 1009) e Gregório VI (em 1046): a teocracia compreendeu o absoluto e não admitiu "relativismos".
O Papa deve ser um homem absoluto, até mesmo infalível em matéria de verdade, segundo o Concílio Vaticano I. Daqui ao monarca absoluto o passo é curto, sobretudo se colocarmos os atributos papais na relação conflituosa com o poder político, assim como mostrou, por exemplo, a nascente história do Estado italiano. As reações endureceram a posição. Tudo poderia, portanto, ser imaginado, exceto um absoluto que renuncia.
Bento XVI, portanto, ao renunciar, teve uma coragem imensa e marcou um ponto de ruptura em si irremediável com a tradição teocrática, mas não, em si, com a tradição cristã e católica, porque as verdadeiras tradições são sempre dinâmicas! Com o seu gesto, o Papa voltou a ser, graças ao céu e ao espírito conciliar, o primus inter pares, ou seja, o bispo de Roma. Com um retorno ao passado, soube olhar para frente.
De fato, em Ratzinger - a meu ver - não havia teocracia nem cesaropapismo. Como recordou o professor Massimo Borghesi em 2005, em 1998 Joseph Ratzinger havia escrito:
"Pensemos somente no episódio relativo ao Sínodo de Milão do ano 355, quando Eusébio de Vercelli, uma das grandes figuras que resistiram a esta identificação, recusou de se submeter à vontade do imperador que queria que ele assinasse um documento de fé ariana. A Eusébio, que considera este documento não compatível com as leis da Igreja, o imperador Constâncio responde: “A lei da Igreja sou eu”. Portanto, a fé tornou-se uma função do Império. Eusébio é, com poucos outros, uma das grandes figuras que, como eu disse, resistem a essas insinuações e defendem a liberdade da Igreja, a liberdade da fé e também a sua universalidade."
Vamos tentar analisar a questão olhando para o contexto: o que subverte não estaria seguindo o modelo "absoluto”? A teocracia modificou o paradigma cristão e eclesial levando-o da linha de sucessão Cristo-Apóstolos-Povo de Deus-Cristo-Papa-Sacerdotes. Em tempos imperiais e de poderes absolutos, a segunda linha podia ter sua justificativa. Hoje não. O título de “bispo emérito de Roma” ajuda a retornar à primeira linha de sucessão, mais humana, mais confiável e credível.
Numa Europa descristianizada - mas que creio que sinta novamente, intimamente, a necessidade do encanto de um Deus próximo do humano - o que se faz necessário é uma linguagem evocativa, simples, fraterna, não altissonante, não retórica, não vinda de cima. De modo mais geral - a um mundo complexo, com muitos rostos, que gostaria de se unir, mas tem medo de se uniformizar - corresponde muito mais uma linguagem semelhante, com um estilo semelhante, às origens do cristianismo.
Francisco disse em Santa Marta em 23 de outubro de 2015: “os tempos fazem o que devem: mudam” e “os cristãos devem fazer o que Cristo quer: avaliar os tempos e mudar com eles, permanecendo firmes na verdade do Evangelho”. Dizer isso parece - por um lado - romper com a tradição. Mas não é assim, devido ao já referido dinamismo das tradições. Apresentando o pensamento do gênio católico de Giambattista Vico, Isaiah Berlin o resumiu assim:
Os primitivos não vivem nem podem viver suas vidas de acordo com princípios imutáveis e atemporais, porque então não haveria crescimento ou mudança histórica, mas apenas repetição eterna, como na vida dos animais. O homem é uma criatura que se autotransforma; a satisfação de cada série de necessidades modifica seu caráter e gera novas necessidades e novas formas de vida: ele é um crescimento perpétuo, guiado pela Providência que opera por meio de suas paixões, através de seus próprios vícios. Não existe um núcleo fixo e imutável comum a todos os homens em todos os tempos: na vida e na história humana não há nada que possa ser compreendido a não ser em razão de um processo.
Aqui estão, os processos! São passagens decisivas para compreender Francisco e seu paradigma da primazia do tempo sobre o espaço. Na famosa entrevista concedida ao padre Antonio Spadaro em 2013, à pergunta “por que não seria bom uma Igreja que volte à ordem teocrática?”, ele respondeu:
"Se o cristão é restauracionista, legalista, se quer tudo claro e seguro, então não encontra nada. A tradição e a memória do passado devem nos ajudar a ter a coragem de abrir novos espaços a Deus."
A profecia de Fratelli tutti - de unidade na diversidade - ao recordar o motivo do primus inter pares expressa o critério com o qual Francisco está moldando também o novo colégio de cardeais. Na minha opinião, a melhor descrição do entendimento de Francisco foi novamente dada pelo padre Antonio Spadaro em La Civiltà Cattolica:
"Poderíamos pensar melhor (a Igreja) como uma relação sinfônica de diferentes notas que juntas dão vida a uma composição. Mas não se trata de uma sinfonia onde as partes já estão escritas e designadas para a execução, mas um concerto de jazz, onde se toca seguindo a inspiração compartilhada do momento. Este é o ritmo do futuro: o jazz."
Continuo na metáfora musical: é o jazz, também a meu ver, que melhor interpreta os tempos que vivemos. A tradição cristã-católica, se vivida dinamicamente, está entre as poucas que podem ajudar o mundo a dar-se um governo fraterno, sem a louca pretensão da homologação.
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Quando um Papa renuncia. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU