02 Outubro 2021
“Os conflitos do nosso tempo podem ser interpretados como um embate entre diferentes ideias de liberdade”. A pandemia nos deu a oportunidade de redescobrir a raiz social de nossa liberdade individual. Essa chance não foi aproveitada até agora. Mas a democracia é um "processo de aprendizado coletivo sem fim", que é acionado, continuamente, pelos conflitos por reconhecimento.
Axel Honneth é convidado do Festival de Filosofia de Modena e dará uma palestra sobre o tema que está no centro de suas últimas publicações: a liberdade social. Nome mais importante da terceira geração da Escola de Frankfurt, é autor de monografias que marcaram o debate filosófico contemporâneo. Um fio condutor perpassa seu pensamento: a ideia de que o progresso social se alimenta de conflitos que surgem como lutas por reconhecimento social. Com Hegel e contra Hegel, porém, ele afirma que esses conflitos nunca terminam. O que está em jogo é aprender a praticar significados cada vez mais profundos e relacionais da nossa liberdade.
A entrevista é de Giorgio Fazio, publicada por il manifesto, 19-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Prof. Honneth, em seus textos mais recentes, o senhor tentou reformular a concepção de Hegel segundo a qual a ideia de liberdade, entendida como autonomia do indivíduo, constitui o valor supremo da modernidade. Um valor ao qual todos os outros estariam subordinados. Como justifica esta tese?
Não parece difícil justificar esta tese. Sempre que nos perguntamos como deve ser constituído o nosso ordenamento social e por isso nos referimos a determinados valores - por exemplo aos da segurança, da boa vida ou da harmonia social - justificamos estes últimos, por sua vez, recorrendo ao valor da autonomia individual. Se, por exemplo, lutamos pela segurança como valor supremo, o fazemos porque só uma ordem social segura, protegida de ataques externos e de ameaças internas, pode garantir a cada membro da sociedade o usufruto de sua liberdade individual. Parece-me que este também seja o caso para todos os outros valores. Relacionamos sua validade última ao valor que possuem como instrumentos ou contribuições para garantir a nossa autonomia individual. Acredito que, neste ponto, concordo não só com Hegel, mas também com John Rawls: nas sociedades modernas, a liberdade de cada homem e de cada mulher, de cada indivíduo, representa o valor mais alto, aquele em torno do qual giram todos os demais, que muitas vezes são naturalmente muito significativos. Em outras palavras: não entenderíamos de forma alguma a relevância ética desses outros valores se não pudéssemos entender qual é o seu significado para a liberdade individual.
No entanto, o conceito de liberdade pode significar coisas diferentes. Uma concepção individualista e negativa de liberdade parece dominar nosso tempo. A ela o senhor contrapõe não apenas à liberdade positiva, mas também um conceito de liberdade social. Pode explicar o sentido dessas diferenças?
Em suma, pode-se dizer que na história espiritual europeia foram tradicionalmente diferenciadas duas concepções de liberdade individual - isso já com Kant e depois com Isaiah Berlin. A liberdade negativa prevê que o indivíduo, ao perseguir seus próprios objetivos particulares, não encontre outros obstáculos além daqueles que derivam do ordenamento jurídico geral; por liberdade positiva, por outro lado, entende-se que os indivíduos se deixam guiar, em seus propósitos e ações, por valores mais elevados em relação às suas tendências privadas e seus impulsos. No entanto, essa dicotomia não me parece exaustiva. Obscurece o fato de que existe também o caso significativo em que eu posso realizar meus propósitos – mais elevados ou mais baixos - somente se outra pessoa tiver propósitos complementares – para parafrasear uma canção, no beijo ou no amor! Aqui, a liberdade de uma pessoa está entrelaçada ao mesmo tempo com a liberdade da outra: nenhuma das duas pode realizar seus propósitos sem a outra.
Denomino de "social" essa forma mais exigente de liberdade - e acho que essa é a liberdade que Hegel e Marx tinham em mente quando usavam enfaticamente esse conceito. Também estou convencido de que a forma peculiar da liberdade democrática só pode ser compreendida com o auxílio desse conceito, portanto, somente se o entrelaçamento intersubjetivo das nossas liberdades individuais for esclarecido.
Muitos dos conflitos políticos de nosso tempo parecem que também podem ser lidos como um conflito entre essas diferentes gramáticas da liberdade. Vemos isso ainda hoje na crise pandêmica. Em sua opinião, essa crise pode ser uma oportunidade para redescobrir uma ideia diferente de liberdade?
No início da crise, eu estava efetivamente convencido de que a pandemia poderia ter ensinado a nós todos esta lição: a de nos orientar a partir de agora, de forma cada vez mais forte, para uma concepção social ou comunicativa da nossa liberdade individual. Nesse ínterim, porém, tive de admitir que esse otimismo inicial fracassou. Infelizmente, da crise do Coronavirus não foram tiradas as consequências que estavam ali sugeridas, ou seja, refletir sobre o quão fortemente nosso bem-estar pessoal e nossa liberdade individual dependem da cooperação ativa de todos os membros da sociedade. Nos Estados Unidos, mas também na Alemanha e na Itália, a maioria da população continua convencida de que a vacina é algo que diz respeito à proteção individual - puramente privada - da contaminação do vírus, enquanto apenas uma minoria acredita que a vacina seja útil em primeiro lugar para o bem comum, na medida em que decidimos juntos empenharmo-nos em um serviço de ajuda mútua.
E, efetivamente, na contraposição social entre uma liberdade puramente negativa e privativa, de um lado, e uma liberdade social, do outro, se refletem conflitos ainda mais profundos entre visões de mundo. Aqueles que defendem a primeira concepção da liberdade e a consideram justa também considerarão o capitalismo em sua forma atual, neoliberal, plenamente legítimo, porque serve ao puro interesse pessoal de quem tem sucesso econômico. Por outro lado, quem é a favor de uma concepção social da liberdade considerará também que é absolutamente necessária uma incorporação social do mercado capitalista, porque só assim a liberdade de um é condição da liberdade do outro.
A partir do tema da liberdade social, o senhor também tenta repensar a ideia de democracia. Está ligada à grande lição do filósofo estadunidense John Dewey, segundo a qual quanto mais altos os níveis de interação social, maior o nível de inteligência social à disposição de uma comunidade para resolver seus problemas. Podemos dizer que, no quadro desta concepção, a democracia é posta em movimento cada vez que grupos sociais se levantam contra sua exclusão da interação geral?
Sim, concordo plenamente. A luta por reconhecimento, para usar minha própria terminologia - que em todo caso também não era estranha a Dewey - é o elemento indissolúvel de qualquer democracia vital. Seria mesmo apropriado afirmar que o conflito social aberto e o acordo temporário entre cidadãs e cidadãos sejam as duas faces de qualquer processo democrático. A primeira fase desse interminável processo consiste na rebelião dos grupos sociais contra circunstâncias e condições que, a seu ver, constituem obstáculos ao exercício de seus direitos democráticos. Essas barreiras percebidas podem ter as causas mais díspares: podem ser atribuídas a sentimentos de humilhação de si que degradam a própria identidade social e, portanto, impedem a participação igual em confrontos políticos, ou a formas de organização do trabalho que, devido a cargas pesadas e formas de autoritarismo estrutural, tornam impossível uma participação ativa nas discussões políticas, ou mesmo na simples privação estatal dos direitos políticos. Por outro lado, pode-se dizer com razão que nunca podemos ter certeza de que as experiências futuras não revelarão outras formas de discriminação, ainda completamente desconhecidas.
É por isso que sua lista é, em princípio, aberta e interminável.
A fase sucessiva desse processo democrático é idealmente constituída pelo entendimento da maioria social de que as discriminações denunciadas pelos grupos desfavorecidos existem efetivamente, de modo que medidas devem ser tomadas para eliminá-las - este momento representa a fase da unidade política, que em todo caso, nunca pode durar muito, porque em breve os grupos sociais voltarão a encontrar outros motivos para se sentirem em desvantagem no que diz respeito às suas possibilidades de codeterminação democrática. Nesse sentido, o círculo do processo democrático nunca se fecha: representa um processo de aprendizagem aberto ao futuro, infinito.
A partir do nexo entre liberdade social e democracia, o senhor iniciou recentemente uma reflexão sobre o tema do trabalho. Pode explicar este ponto?
Estou profundamente convencido de que a teoria democrática contemporânea é caracterizada por uma tendência acentuada de esquecer que as chances de participação democrática dependem de relações de trabalho justas, bem estruturadas e satisfatórias. Essa dependência começa com o fator tempo: apenas quem dispõe de tempo suficiente, para além de sua ocupação econômica, para refletir de maneira geral sobre os desafios políticos de seu tempo, tem uma oportunidade realista de participar do discurso democrático. Depois, há o fator psicológico: devido às suas hierarquias marcantes e às suas formas de dependência, o mundo do trabalho de hoje não deixa aos empregados qualquer oportunidade de fazer experiências em que a sua voz conta alguma coisa, seja eficaz, produza efeitos. Por essa razão, uma vez que entram nos contextos de discussão política, falta-lhes qualquer senso da relevância de suas convicções.
Quem em seu próprio posto de trabalho experimenta, permanentemente, que sua palavra não conta nada, como poderia depois, no contexto da coexistência democrática, desenvolver repentinamente a sensação de que sua opinião ou as suas convicções têm algum significado relevante para a esfera pública? Em terceiro lugar, há o fator social: muitos empregados em nosso mundo do trabalho hoje não usufruem nem do merecido reconhecimento econômico nem do necessário reconhecimento simbólico - pensemos apenas nas profissões que têm, como se costuma dizer, uma "relevância para o sistema", como as dos cuidadores de idosos e enfermos, dos que trabalham nos serviços de transporte, dos que exercem atividades educativas. No início da pandemia, essas profissões foram sustentadas com muitos aplausos. E, no entanto, continuam a ser mal retribuídas, são mal organizadas, seu papel não é de forma alguma percebido e permanece confinadas à sombra da atenção pública.
No entanto, quem recebe tão pouco reconhecimento público por sua atividade laboral não terá o senso de autoestima necessário para poder participar do discurso democrático sem ansiedade e sem vergonha.
Eu poderia continuar assim, enumerando outros elementos da organização do trabalho social que têm uma influência direta sobre as oportunidades de participação na formação da vontade política. Mas o ponto que quero marcar deveria agora estar bem claro: quanto mais baixa for a posição que se ocupa na divisão social do trabalho, pior será a própria retribuição, mais exaustiva, desintegradora e solitária a própria ocupação, e tanto menores serão as chances de fazer valer de forma paritária as próprias convicções igualmente no processo do discurso democrático.
Recentemente, dedicou um livro à ideia de socialismo. Esta é uma palavra que, contra todas as previsões históricas, voltou em auge nos últimos anos nos Estados Unidos. O senhor vive entre Frankfurt e Nova York, como vê esse renascimento?
Nos Estados Unidos, é visto como socialista um moderado programa social-democrático como o proposto por Bernie Sanders, que eu admiro muito. Na Europa, é claro, as coisas são muito diferentes. Aqui, quando se fala de "socialismo", ainda se tem em mente a venerável tradição do movimento operário em luta do primeiro terço do século XX. Estou convencido de que um socialismo revisado, adequado aos nossos tempos, ainda deve ser formulado. Em meu pequeno livro sobre a ideia de socialismo, quis estabelecer os primeiros pressupostos, pois aconselhei a se afastar da velha teoria determinista da história e de virar de modo decisivo rumo a uma orientação que pode ser denominada de experimentalismo. John Dewey foi o primeiro a esboçá-la, quando se manifestou a favor de uma atitude para a pesquisa exploratória, aberta e livre de preconceitos, dos caminhos que podem levar à socialização da economia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
No conflito aberto pelo reconhecimento. Entrevista com Axel Honneth - Instituto Humanitas Unisinos - IHU