13 Abril 2011
No discurso pronunciado no Quirinale [palácio-sede do presidente italiano] no dia 24 de junho de 2005, na sua primeira visita oficial, Bento XVI formulava um reconhecimento solene da "sã laicidade do Estado, em virtude da qual as realidades temporais se regem segundo as suas próprias normas". Mas o Papa logo especificava que a laicidade do Estado é legítima "sem, porém, excluir aquelas referências éticas que encontram o seu fundamento último na religião".
A análise é do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, publicada na revista Rocca, nº. 7, 01-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E reforçava esse paradigma acrescentando que "a autonomia da esfera temporal não exclui uma íntima harmonia com as exigências superiores e complexas que derivam de uma visão integral do homem e do seu eterno destino" (texto publicado no jornal L`Osservatore Romano, do dia 25 de junho de 2005).
Provavelmente, não foram muitos, então, que notaram que a releitura ratzingeriana da laicidade – como também a interpretação maximalista sobre a liberdade religiosa no discurso do dia 11 de janeiro passado ao Corpo Diplomático – se projetava, para além da comunidade católica, também sobre o Estado, convidado a reconhecer no seu ordenamento os paradigmas próprios do ordenamento da confissão majoritária na Itália.
Isto é, a visão ética da laicidade era invocada junto ao clássico princípio da colaboração entre Estado e Igreja para o bem comum, para legitimar as exigências da Igreja, embora nos modos de um poder de persuasão moral, por medidas legislativas forjadas segundo os seus princípios morais e os seus interesses sobre os campos críticos do matrimônio e da família, da legislação da vida e do financiamento de escolas privadas, apesar da diretiva diferente formulada pela Constituição italiana.
As repercussões concretas dessa plataforma da política eclesiástica não cessam de atemorizar muitos seguidores da fé no Cristo dos Evangelhos no nosso aventurado país [Itália]. Em uma carta ao novo arcebispo que caiu de paraquedas em Turim [Dom Cesare Nosiglia], um líder cristão bem conhecido dessa comunidade cristã, Enrico Peyretti, lamentava que a Igreja "parece um partido, uma força social dentre as outras, com os seus interesses, até interesses econômicos não limpos, talvez piores do que as ofensas sexuais, com as suas alianças calculadas, não raramente inapresentáveis".
E constatava com sofrimento que a hierarquia episcopal dava a impressão de "viver no sonho de uma sociedade coincidente com a Igreja, um casamento trono-altar". A tal ponto que não parecia ser arriscado, com todas as cautelas historiográficas do caso, o paralelo entre "o atual católico-berlusconismo da hierarquia católica italiana e o católico-fascismo dos violentos 20 anos que foi o fracasso dos pastores e o abandono dos fiéis ao poder malvado e falso. Pode acontecer algo pior à Igreja?", perguntava-se Peyretti. "Isso é pior do que a perseguição".
Não é de hoje que se acumulam sinais de uma reestruturação mais ou menos refinada do paradigma "constantiniano" nas reações da Igreja com os Estados e particularmente com o Estado italiano. Com o avanço de uma sociedade secularizada, que parece insidiar a hegemonia do catolicismo nos países de cristandade antiga e, de fato, coloca em crise a reprodução social da cristandade, o risco crescente é a nostalgia do Estado católico.
O resultado desse desvio é, entre outros, o ofuscamento das diretivas do Concílio Vaticano II, que havia afirmado que a Igreja, "de nenhuma maneira, se confunde com a comunidade política e não se liga a nenhum sistema político por ser sinal e salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana... A comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas uma da outra em seu próprio campo... A Igreja não põe a sua esperança nos privilégios que lhe são ofertados pela autoridade civil; ao contrário, renunciaria ao exercício de certos direitos legitimamente adquiridos onde constatasse que o seu uso poderia fazer com que se duvidasse da sinceridade do seu testemunho".
Católico-berlusconismo
A insurgência de uma tentação neoconstantiniana é, sem dúvida, facilitada pelo desvio liberal do governo Berlusconi, que aplicou a política da privatização também às relações com a Santa Sé e com a CEI [Conferência dos Bispos da Itália], reduzindo-lhes a um aberrante mercado de privilégios confessionais em troca de consenso.
Também no interior da coalizão governativa, nota-se com alarme que se difundiu uma práxis pela qual são sistematicamente saltados os canais diplomáticos do Estado para privilegiar comunicações diretas entre membros do governo e prelados romanos e para tratar nesse nível privatístico medidas legislativas de interesse eclesiástico.
Uma práxis desse gênero foi ao encontro do neoconstantinismo de setores eclesiásticos, marcando a crise da implantação conciliar da Gaudium et Spes, sobre a qual se fundava a expectativa de que a Igreja seguisse outros caminhos, diferentes dos das posições de poder, para abrir caminho no mundo das almas.
De fato, a Igreja real cedeu à facilidade de uma Igreja "de Estado", exorbitando do seu próprio campo com intervenções invasivas nos campos em que, em uma sociedade plural, o Estado pode e deve legislar, isto é, sobre os casais de fato, sobre o tratamento do fim da vida, sobre a "pílula abortiva" etc.: campos em que o Estado tem a competência e foi levado a intervir com atentas mediações entre a ordem dos valores e a complexa realidade social em rápida transformação.
Trata-se de situações que, de fato, estão presentes na nossa sociedade e sobre as quais o poder civil está plenamente legitimado a legislar para enquadrá-las em um mínimo de normativa civil e evitar males maiores.
Os desvios citados tornam atual a advertência do abade Rosmini: "Quando a Igreja se torna árbitra dos destinos humanos, então só é impotente. Esse é o tempo do seu decaimento".
Estratégias intervencionistas
Os ataques de alguns bispos de regime deram uma corpulenta convalidação disso, na conjuntura das noites orgiásticas do primeiro-ministro. Entre os atalhos absolutórios imaginados, nenhum discípulo laicista de Maquiavel saberia alcançar as alturas cognitivas alcançadas por Giampaolo Crepaldi, o bispo que está dividindo a comunidade cristã de Trieste.
Em um livro, Il cattolico in politica. Manuale per la ripresa (Cantagalli, 2011), Crepaldi afirma: "Entre um partido que contemplasse no seu programa a defesa da família fundada sobre o matrimônio e cujo secretário fosse separado da mulher, e um partido que contemplasse no programa o reconhecimento dos casais de fato e cujo secretário fosse regularmente casado, a preferência iria para o primeiro partido".
E acrescentava: "É mais grave a presença de princípios não aceitáveis no programa do que na prática de qualquer militante, já que o programa é estratégico e tem um claro valor de mudança política da realidade mais do que as incoerências pessoais".
O seu coirmão Luigi Negri, bispo de San Marino e Montefeltro, não hesitava em se inclinar em defesa de Berlusconi, alegando (em um artigo para a revista Tempi e depois uma entrevista ao jornal La Stampa) o apoio assegurado por esse governo aos "princípios inegociáveis" como a defesa da vida desde o seu início ao seu término natural, aos valores da família, valorizando essas vantagens como suficientes para justificar a falta de "indignação" com relação às condutas pessoais do primeiro-ministro (na realidade, com relação às supostas violações suas às leis do Estado sobre a concussão e a prostituição infantil, contestadas pela Procuradoria de Milão).
O espetáculo de bispos que se sacrificavam para aprofundar alguns princípios fundamentais da ordem cristã tradicional para tirar Berlusconi de apuros não podia nos deixar indiferentes. Ainda no Conselho Permanente da CEI, aberto no dia 24 de janeiro em Ancona pela conferência do cardeal Bagnasco, haviam se manifestado as inquietações de alguns bispos segundo os quais a Igreja, com a sua atitude serviçal com relação ao regime, teria assumido "a responsabilidade de entreter esse governo".
"Uma coisa é ter paciência, outra totalmente diferente é sustentar", havia observado quem advertia sobre os graves danos que uma substancial colusão com o regime provocaria na missão pastoral, chamada a dirigir-se a todos, para além de opções políticas sectárias.
Em Crepaldi, alguns grupos cristãos de Verona responderam (em Segni dei Tempi, ano II, nº. 10), indicando o perigo do imoralismo berlusconiano, dos seus apoiadores e da vasta pletora dos tolerantes com o seu poder desestruturante do ponto de vista civil e político.
Eles contestavam "a pretensão de separar vida privada e vida pública" como um dos fatores (ao lado da eventual responsabilidade por atos penalmente relevantes) que "contaminam na raiz a possibilidade da construção de uma vida social em que possamos nos reconhecer".
E, falando da estratégia intervencionista dos bispos, destacava a decadência da autonomia política do laicato católico, obrigada – contrariamente às diretivas explícitas do Vaticano II (deixado de lado por Crepaldi) – a refluir dentro dos quadros clericais da obediência os discursos dos bispos, considerada como um "traço distintivo da sua ação política".
A verdadeira alternativa a Deus
Sobre as teses neoconstantinianas de Negri, intervinha, depois, saindo de um prolongado silêncio, o bispo emérito de Ivrea, Luigi Bettazzi. Em uma "Carta aberta", ele defendia o estatuto originalmente evangélico da "indignação" e lembrava que, entre os princípios "inegociáveis", está presente o fundamental da solidariedade, em força do qual devemos nos comprometer não só em defesa das vidas mais frágeis, mas também de todas as vidas "ameaçadas", "como são aquelas daqueles que fogem da miséria insuportável ou da perseguição política, que são, ao contrário, fortemente condicionadas pelo nosso governo".
Além disso, também sob o perfil das "consonâncias cristãs", "não se fez nada para favorecer a vida nascente com leis que encorajem o matrimônio e a procriação como fez a `laica` França". Por fim, contradizendo a tese de que o político deve ser julgado só pela política, Bettazzi lembrava que "quem está no lato deve dar o bom exemplo, porque ele influencia, ainda mais nesta era midiática, na opinião pública. E é isso que deveria preocupar a nós, bispos, isto é, a difusão, principalmente entre os jovens, da opinião de que o que conta é `ser esperto`, é conseguir de todos os modos conquistar e defender o próprio interesse, o bem particular, até a custo de compromissos, como vimos nos pais e nos irmãos que sugeriam às jovens de casa a se venderem a alto preço".
Assim, difunde-se a idolatria do fazer dinheiro, do fazer aquilo que se quer, concluía Bettazzi. Instaura-se na sociedade "a verdadeira alternativa a Deus" ("ou Deus ou mamon"), ignoram-se as recomendações da CEI sobre o bem comum como compromisso específico dos cristãos.
A poderosa armada moral de Ruini
Porém, não estavam em questão apenas as propensões políticas deste ou daquele bispo, ou grau mais ou menos profético das trepidações hierárquicas diante da imoralidade política. Na realidade, o que estava implicada era toda uma política eclesiástica, muito exposta à objeção de buscar vantagens materiais mediante um imprudente compromisso com o regime no comando.
E essa situação remetia à opção decidida desde o início da "era Ruini", no cenário do pontificado espetacular de Wojtyla, quando se havia adotado para o futuro da Igreja Católica na Itália o paradigma de um catolicismo demonstrativo, presente na disputa política e no estrondo midiático, mas também desejoso de ampliar o depósito dos oito por mil concordatário [norma pela qual o Estado italiano reparte 8‰ de todo o imposto de renda entre as diversas confissões religiosas], dos privilégios confessionais, das leis conformes ao seu credo, em uma sociedade pluralista.
Perfilam-se, desde então, os pressupostos de fenômenos de involução, caracterizados pelo retorno a uma pretensão de autossuficiência da Igreja diante da sociedade moderna, pela tentativa de constituir na Igreja, favorecida pelos novos privilégios concordatários, a base organizativa de uma poderosa armada moral, quase buscando o sonho de uma nova cristandade clerical para tampar as rachaduras da cristandade sociológica, fechando as fileiras para fazer frente ao mundo.
No vazio deixado pelo Partido Católico depois da desfeita da Democracia Cristã, havia ficado claro que a Igreja buscava assumir um novo poder de suplência política no país, como agência de valores e de lobbies de pressão, pronto para entrar em campo diretamente como minoria ativa, para obter, por via parlamentar, com o favor de governos complacentes, aquilo pelo qual evidentemente se desesperava para alcançar pelas longas vias do testemunho e das convicções.
Uma vez constatada a perda de influência dos seus modelos morais sobre a vida privada dos indivíduos, a Igreja operava uma completa mudança de estratégia: sem abandonar totalmente os caminhos costumeiros da sua pastoral das consciências, começava a direcionar o investimento principal sobre o público, procurando aumentar o poder da comunicação midiática, da legislação favorável do Estado, dos instrumentos concordatários (especialmente no campo da escola e do matrimônio) para defender e promover na ordem política estatutos de vida privada que possam reproduzir o mais fielmente possível as suas visões antropológicas e sociais.
Uma perspectiva que permitiria à Igreja institucional, na melhor das hipóteses, permanecer como uma força social consistente e central na sociedade italiana e europeia, valorizando aquele fundo de herança cristã que é considerado como um dado estrutural, bem radicado e insubstituível da cultura difundida do país. Por isso a marca neoconstantiniana e mundanizante de uma Igreja que prefere negociar espaços para os seus modelos morais com os poderes políticos do momento ao invés de se concentrar nos seus próprios caminhos religiosos para a formação dos espíritos livres.
Com perigos para o desenvolvimento das dinâmicas democráticas (além de um puritanismo moralístico!), mas sobretudo perigos "para a alma da própria Igreja, para a sua mística", advertia Achille Ardigò pouco antes de morrer. "Vejo o perigo – destacava o discípulo de Giuseppe Dossetti – na vontade quase explícita da hierarquia de entrar diretamente, em primeira pessoa, no campo político mais operativo, o da organização, das escolhas táticas, das avaliações de conveniência e de oportunidade, do fim que justifica os meios (…). A igreja não pode se tornar partido político sem correr o risco de dissolver seu próprio fundamento místico" (em L`attacco al Concilio e l`interventismo dei vescovi: intervista con Achille Ardigò, publicado no jornal La Repubblica, 7 de julho de 2005.
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Nostalgia de Constantino? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU