O papa forasteiro: para onde Francisco está conduzindo a Igreja? Artigo de Christopher Lamb

(Foto: Reprodução | Public Seminar)

22 Julho 2022

 

“Aconteça o que acontecer, o papado de Francisco estabeleceu um marco definitivo que não pode ser apagado. Mesmo que os opositores deste papado consigam encontrar um candidato no próximo conclave disposto a desfazer as reformas, o pontificado de Francisco continuará sendo a estrela-guia que move o Povo de Deus para a frente”.

 

Publicamos aqui a Conferência “Dom Hélder Câmara”, proferida por Christopher Lamb no Newman College, em Parkville, Victoria, na Austrália, no dia 11 de julho [assista abaixo em vídeo, em inglês].

 

 

 

Lamb é jornalista inglês e autor internacional. É correspondente vaticano do jornal The Tablet, e seu último livro é “The Outsider: Pope Francis and His Battle to Reform the Church” [O papa forasteiro: o Papa Francisco e sua batalha para reformar a Igreja], que se baseia em suas observações próximas do Papa Francisco e de seus esforços para renovar a Igreja Católica.

 

Livro 'Outsider: Pope Francis and His Battle to Reform the Church'

 

A conferência foi publicada por Catholic Outlook, 18-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

Obrigado pelas amáveis palavras de apresentação. É uma grande honra estar com vocês nesta noite para proferir a Conferência “Hélder Câmara” sobre a questão de para onde Francisco – o papa forasteiro – está conduzindo a nossa Igreja.

 

Nesta noite, gostaria de fazer um discurso em duas partes. A primeira metade analisará a oposição a Francisco e a batalha que ele tem enfrentado em seus esforços de reforma, e a segunda se concentrará na direção a que ele está levando a Igreja, através do prisma da histórica assembleia do Concílio Plenário em Sydney, na semana passada, que eu pude observar e relatar.

 

Parte I

 

Certamente, é apropriado examinar os esforços de reforma de Francisco em uma Conferência “Dom Hélder Câmara”. A vida e o ministério do arcebispo brasileiro têm vários paralelos com o pontificado de Francisco. A visão da Igreja de Dom Hélder apontava para aquilo que o primeiro papa da América Latina tem procurado fazer como bispo de Roma.

 

Assim como Dom Hélder, Francisco é uma voz profética no mundo de hoje, que fez uma opção preferencial pelos mais pobres da sociedade, não apenas no que ele diz, mas também no estilo de vida simples que adotou.

 

Assim como Dom Hélder, a defesa de Francisco pelos marginalizados vem de um profundo amor a Cristo, fundamentado em horas de oração silenciosa.

 

Assim como Dom Hélder, Francisco enraizou seu ministério em uma teologia do povo e busca implementar o Concílio Vaticano II.

 

Assim como Dom Hélder, Francisco tem sido acusado de ser político demais e tem enfrentado ataques de pessoas da Igreja que têm uma agenda restauracionista.

 

Enquanto o papado de João Paulo II emergiu do sofrimento da Igreja polonesa sob o nazismo e o comunismo, o pontificado de Francisco emerge do sofrimento e das experiências vividas da fé cristã na América Latina, onde a Igreja muitas vezes tem sido uma voz profética pela justiça. Embora a eleição do papa em 2013 tenha sido uma surpresa para muitos jornalistas – inclusive eu – um exame mais atento das mudanças no catolicismo global aponta o caminho. Depois do Concílio, foi a Igreja na América Latina e Central que abraçou os seus ensinamentos e aquele que o teólogo jesuíta Karl Rahner, perito do Concílio, via como um momento em que o catolicismo passava de uma Igreja eurocêntrica para uma Igreja mundial.

 

Para alguns, o pontificado de Francisco tem sido a cruzada pessoal de um indivíduo inspirador e logo será esquecido quando ele for embora. Isso é o que seus opositores esperam. No entanto, eu diria que este papado é muito mais do que apenas uma pessoa: é um “evento” que está ajudando decisivamente a remodelar a Igreja para o terceiro milênio.

 

 

Ora, pode ser tentador pensar que se um indivíduo como ninguém menos do que o líder do U2, Bono, elogia a sua contribuição e ministério, então você está a caminho de uma popularidade considerável, até mesmo do estrelato global. Recentemente, Bono estava em Roma para se encontrar com o Papa Francisco, para o lançamento da Fundação Pontifícia Scholas Occurrentes, uma iniciativa educacional. Quem não gostaria de receber o endosso de uma estrela global?

 

Mas o falecido teólogo Hans Küng foi mais preciso quando escreveu sobre este papa, logo após a sua eleição: “Sem dúvida, ele despertará uma oposição poderosa, sobretudo no centro de comando da Cúria Romana, uma oposição que é difícil de suportar. Aqueles que estão no poder no Vaticano provavelmente não abandonarão o poder acumulado desde a Idade Média”.

 

Aconteça o que acontecer dentro dos salões de influência no Vaticano ou nos congressos anti-Francisco generosamente financiados nos Estados Unidos, este papa tem o apoio do Povo de Deus em toda a Igreja e de forma geral. Pesquisas após pesquisas mostram isso.

 

Mas foi a justaposição entre um papa que de modo muito evidente tinha o povo atrás de si, por um lado, enquanto ao mesmo tempo enfrentava ataques internos sem precedentes de forças poderosas que me inspirou a escrever o meu livro. Na minha opinião, esta é a história do pontificado de Francisco, e ela merecia uma investigação mais aprofundada. Como um papa pode causar um impacto global incrível e ao mesmo tempo suscitar uma intensa oposição? E ele terá sucesso na batalha pela reforma da Igreja?

 

Minha tese sobre a oposição é a seguinte: em seu cerne, o pontificado de Francisco é uma tentativa de implementar uma reforma da Igreja baseada no Evangelho, aplicando os fundamentos da fé cristã. Ela está enraizada em uma profunda confiança na ação do Espírito Santo para atualizar e renovar a Igreja, incluindo as suas estruturas.

 

Ao mesmo tempo, este papa embarcou em seu ministério papal com uma determinação de aço e uma abordagem estratégica perspicaz, que muitas vezes enervou e desorientou aqueles que supunham que sempre iriam dar as cartas nos mais altos níveis eclesiásticos.

 

Certamente, ele é o forasteiro que modelou seu pontificado segundo São Francisco de Assis, aquele maravilhoso santo da pobreza, da paz e do ambiente.

 

Este papa, assim como São Francisco, busca a renovação da Igreja, em primeiro lugar, vivendo com autenticidade a mensagem do Evangelho. Trata-se da missão, em vez de buscar manter o prestígio institucional da Igreja ou a sua posição financeira.

 

Francisco também é o primeiro papa em mais de 100 anos a nunca ter trabalhado ou estudado em Roma. Isso o torna um forasteiro ao establishment clerical, do qual muitos passaram algum tempo em Roma como estudantes ou autoridades no Vaticano. Assim como o cardeal Bergoglio em Buenos Aires, Francisco manteve um perfil baixo e não tinha uma grande rede de contatos em Roma. Quando Bento XVI renunciou, de fato foi um jornalista, meu colega Gerry O’Connell, da revista America, que ligou para o futuro papa para lhe contar a novidade.

 

Francisco chegou em Roma para o conclave de 2013 com uma passagem de volta para a Argentina. Por que isso importa? Isso mostra que Francisco nunca esperava ser eleito, não deve seu cargo a ninguém e pode agir com total liberdade. Ele se recusa a ser roteirizado ou controlado pelo aparato central da Igreja.

 

O Papa Forasteiro ameaçou o status quo do poder na Igreja. Sua decisão de morar na Casa Santa Marta, onde ele ocupa um quarto e escritório de 40 metros quadrados, chocou as pessoas no Vaticano que esperavam que ele fosse morar no grandioso Palácio Apostólico. Elas ainda estão descontentes com isso até hoje. É claro que os arranjos de vida do papa contrastam fortemente com os vastos apartamentos ocupados por alguns dos prelados do mais alto escalão da Cúria Romana.

 

Assim como os doutores da lei e as autoridades religiosas do tempo de Jesus, aqueles que exercem influência clerical na Igreja ficam profundamente desconcertados com Francisco. Muitas vezes, isso se expressa de maneiras sutis. A reação em Roma ao apelo do papa por uma “Igreja pobre para os pobres” pode ser comparada a Sir Humphrey, o funcionário público da série de televisão britânica Yes Minister. É mais ou menos assim: “É claro, Santo Padre, eu o saúdo pelo seu desejo de ver uma ‘Igreja pobre, para os pobres’, mas não tenho certeza de que isso seja totalmente viável neste momento”.

 

Houve um momento, no início do pontificado, em que o papa estava falando para a Cáritas – o braço caritativo da Igreja –, e o discurso estava sendo transmitido na Sala de Imprensa do Vaticano para que os jornalistas pudessem acompanhar. Francisco estava enfatizando a urgência de ajudar os pobres e sugeriu que, se necessário, alguns dos edifícios de propriedade da Igreja em Roma poderiam ser vendidos para ajudar! Nesse ponto, a transmissão do discurso foi repentinamente cortada!

 

Mas Francisco não é um conservador ou um liberal. Ele é um radical que sempre coloca a ênfase na prática vivida da fé, ao mesmo tempo em que resiste a todas as tentativas de colocar rótulos ideológicos na Igreja. Sua abordagem pastoral e seus gestos ousados, como oferecer passeios privados aos sem-teto pela Capela Sistina ou a sua decisão de trazer de volta os refugiados em seu avião papal, não são decididos em reuniões estratégicas de alto nível. São as suas tentativas de responder instintivamente ao movimento do Espírito. Isso faz de Francisco uma força imprevisível.

 

Embora grande parte da oposição em Roma muitas vezes opere debaixo da superfície, o papa tem enfrentado uma resistência pública sem precedentes à sua autoridade, de uma forma que seria impensável durante o mandato de João Paulo II ou Bento XVI. Logo no início, o cardeal encarregado pelo escritório doutrinal do Vaticano fez a afirmação extraordinária de que, pelo fato de Francisco ser “mais pastoral”, cabia a esse cardeal a tarefa de “estruturar teologicamente” esse pontificado. O cardeal disse isso apesar do papel do papa como “supremo Pastor e mestre de todos os fiéis”, com a responsabilidade de promover e defender a doutrina. Em outras palavras: “Não podemos confiar que o papa latino-americano se encarregue pela teologia”.

 

Outro cardeal da Cúria, desta vez o encarregado pela liturgia, fez repetidas declarações que minavam Francisco e, durante um ano, resistiu a redigir um decreto de 370 palavras deixando claro que as mulheres agora podiam fazer parte oficialmente do rito do lava-pés durante a Missa da Ceia do Senhor na Quinta-Feira Santa.

 

Devo salientar que, nos últimos nove anos, Francisco deu passos definitivos para reformar a Cúria, e há muitos empregados bons e trabalhadores servindo ao papa.

 

Tampouco estou sugerindo que Francisco esteja acima das críticas. Ele comete erros e pede desculpas por ter feito coisas erradas. Francisco ofereceu alguns dos pedidos de desculpas pessoais mais dramáticos de qualquer papa, inclusive pelos erros que ele cometeu ao lidar com o escândalo dos abusos sexuais no Chile. Este é um papa que não baseia a sua autoridade na infalibilidade papal, mas em São Pedro, que cometeu muitos erros pessoalmente. E, de modo crucial, ele consegue manter seu senso de humor diante de todas as dificuldades.

 

O que eu estou argumentando, no entanto, é que a guerrilha lançada contra ele pelos seus opositores busca questionar o seu direito de exercer a autoridade papal. Esse nível de oposição não era visto há séculos.

 

As sementes para os ataques mais dramáticos contra Francisco foram plantadas durante as reuniões do Sínodo sobre a Família, quando o papa e outros bispos procuraram articular um ensinamento renovado sobre a vida familiar, focado na misericórdia e no acompanhamento. Em seu documento magisterial Amoris laetitia, Francisco codificou essa visão e abriu um caminho para que os divorciados recasados recebam a comunhão. Essa medida foi, depois, amargamente contestada por um grupo de cardeais, que desafiaram publicamente os ensinamentos de Francisco. No entanto, não se tratava apenas de uma diferença de opinião teológica, mas sim de uma tentativa de montar uma armadilha para que pudessem declarar o papa indigno da sua posição.

 

 

Além disso, aquelas que foram apresentadas como preocupações teológicas rapidamente se transformaram em resistência política.

 

Isso explodiu em 2018, quando o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-embaixador papal nos Estados Unidos, divulgou um dossiê de acusações infundadas, pedindo a renúncia de Francisco. Essa foi uma flagrante manobra político-eclesial destinada a prejudicar o papa. O que tornou isso ainda mais extraordinário foi o fato de um embaixador papal ter dado tal passo, uma vez que Viganò fez um juramento de lealdade ao papado e passou décadas servindo à Santa Sé. No Vaticano, isso seria impensável até recentemente.

 

Essa resistência política não surgiu do vácuo. Em abril de 2018, eu estava em um centro de conferências em Roma, ouvindo um importante cardeal dos Estados Unidos fazendo um longo discurso sobre os “limites da autoridade papal”, um ataque implícito a Francisco. Dado que esse cardeal era conhecido como um porta-bandeira da ortodoxia católica – que no passado teria exigido plena obediência aos papas João Paulo II e Bento XVI – o tema do discurso parecia bastante irônico. A atmosfera naquele dia era de contestação. Um dos presentes no público era o arcebispo Viganò. Quatro meses depois, ele divulgou seu dossiê contra Francisco.

 

É preciso lembrar que Viganò tem fortes ligações nos Estados Unidos, inclusive entre alguns ricos doadores católicos que se opõem a Francisco. Vários doadores estadunidenses, como o arcebispo Viganò, apoiaram o presidente Donald Trump ou estão envolvidos nas políticas do Partido Republicano. O catolicismo tornou-se sua religião de escolha. No passado, os doadores podiam esperar um bom acesso ao papado, particularmente nas missas matinais celebradas por João Paulo II. Francisco cortou esse acesso. Para suas missas, é mais provável que um jardineiro do Vaticano possa participar do que um doador super-rico.

 

Vários desses católicos ricos querem que a Igreja se concentre incansavelmente em algumas poucas questões “de ponta” da guerra cultural, como o aborto, a eutanásia e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Embora não tenha mudado os ensinamentos da Igreja, Francisco resistiu firmemente às tentativas de se envolver nas guerras culturais. Ele se pronunciou fortemente sobre a defesa dos nascituros, mas insistiu que ser pró-vida é defender toda a vida, incluindo a oposição à pena de morte. Sobre esta última, as estridentes vozes antiaborto costumam ficar estranhamente silenciosas.

 

Alguns dos doadores, que têm aliados na hierarquia da Igreja, estão angustiados com a defesa aberta dos migrantes e o cuidado pelo ambiente que vimos na sua histórica encíclica Laudato si’. Na época em que a Laudato si’ foi publicada, políticos republicanos católicos dos Estados Unidos, como Rick Santorum e Jeb Bush, criticaram Francisco publicamente. Houve também uma tentativa de subversão em Roma, com o vazamento da encíclica de Francisco para um jornalista crítico deste pontificado, como uma forma de diminuir o seu impacto.

 

 

Embora já tenham se passado sete anos desde a sua publicação, a Laudato si’, que atualiza o ensino social da Igreja, ligando o grito da terra ao grito dos pobres, não foi comunicada aos católicos comuns nos Estados Unidos e é mais conhecida fora da Igreja.

 

O mesmo também vale para outros importantes documentos do magistério papal, como a Amoris laetitia: descobertas recentes de uma pesquisa sinodal na Inglaterra e no País de Gales mostram que esse ensinamento, incluindo a sua abertura para dar a Comunhão a divorciados recasados, não é amplamente conhecido.

 

É preciso dizer que, em todo o mundo de língua inglesa, uma parcela significativa do clero e dos bispos continua resistindo ou ignorando os ensinamentos de Francisco e decidiu “esperar que este papa vá embora”.

 

A oposição a Francisco também tem um “megafone”. Há uma rede de mídias católicas nos Estados Unidos e a maior emissora de assuntos religiosos do mundo que se tornou uma plataforma para algumas das coberturas profundamente hostis ao pontificado de Francisco. Essa rede impulsionou as alegações agora desmascaradas feitas contra Francisco pelo arcebispo Viganò, enquanto também realizava entrevistas bajuladoras com o presidente Trump e seu ex-estrategista-chefe, Steve Bannon. Um dos seus principais programas semanais se dedica a tentar derrubar os esforços de reforma do papa e raramente ouve alguém com um ponto de vista diferente.

 

Mais significativas são as histórias que essa rede opta por ignorar. Quando o papa publicou o seu livro Vamos sonhar juntos, ele recebeu uma cobertura das mídias de todo o mundo. Esse livro era uma séria tentativa de Francisco de abordar a crise da Covid-19 através das lentes do Ensino Social católico. Mas a rede católica que eu mencionei não ofereceu nenhuma cobertura, nem mesmo de um post curto em um blog.

 

Certas mídias católicas têm impulsionado consistentemente uma narrativa hostil ou distorcida sobre este pontificado, com a mensagem de que Francisco é um liberal perigoso que desmantela a tradição da Igreja ou uma espécie de “papa ditador” que está tentando impor a sua vontade à Igreja. Você pode esperar frases de ataque de comentaristas que trabalham para os principais meios de comunicação, mas é extraordinário que essas narrativas sejam impulsionadas de modo tão implacável por meios de comunicação católicos.

 

Parte II

 

Em muitos aspectos, a oposição que Francisco enfrenta, mostra que ele está se movendo com propósito e clareza, e revela uma doença em elementos da vida e da cultura da Igreja que Francisco está tentando curar.

 

Eu acredito firmemente que, depois de quase 10 anos deste pontificado, foram feitas reformas definitivas e irreversíveis. Como um cardeal me disse, “a Igreja não tem marcha à ré”.

 

Um exemplo de destaque das tentativas de implementar a visão de Francisco em nível de base pode ser visto no processo do Concílio Plenário aqui na Austrália. Eu vejo o Concílio como a tentativa de renovação mais avançada no mundo de língua inglesa e, tendo coberto o evento em Sydney, acho que há três maneiras pelas quais ele aponta o caminho para o tipo de Igreja que o papa está pedindo.

 

A primeira é uma Igreja sinodal, da escuta, que implementa – e eu sublinho: implementa – o Concílio Vaticano II, aquele momento decisivo entre 1962 e 1965 em que a Igreja definiu a si mesma como Povo de Deus, conectou-se ao cristianismo primitivo e procurou ler os sinais dos tempos. Como me disse Ormond Rush, um conselheiro do Concílio Plenário e um dos principais intérpretes do Concílio, em Sydney, “a sinodalidade é o Vaticano II em uma palavra”.

 

Agora, mais de 60 anos depois do Concílio, estamos naquela que pode ser descrita como uma terceira fase decisiva do Vaticano II. O que o pontificado de Francisco tem tentado fazer é ir além dos debates sobre qual interpretação do Concílio deve ser definitiva e ir rumo a uma implementação. Em Francisco, temos um papa que tornou inegociável a aceitação do Concílio e descreveu a não aceitação do Concílio como o grande problema da Igreja hoje.

 

A assembleia do Concílio Plenário, como evento, sintetizou essa visão do Concílio. No evento, vimos bispos sentados junto com membros leigos, escutando e discernindo juntos: era um exemplo vivo da visão da Igreja em que bispos e povo, embora com papéis distintos, caminham juntos.

 

Quando chegou um momento de crise, e a votação sobre o papel das mulheres na Igreja não obteve uma maioria, os bispos foram forçados a parar e a escutar o clamor do povo na sala. Os bispos poderiam ter simplesmente seguido em frente. Mas esse foi um exemplo de uma Igreja que busca superar a mentalidade do clericalismo, a desconexão entre as lideranças da Igreja e aqueles a quem elas são chamadas a servir. Após os debates em torno da crise, foi aprovada uma série de moções reformuladas sobre o papel das mulheres, que buscam tornar realidade essa forma colaborativa de tomada de decisão.

 

O acordo sobre o papel das mulheres na Plenária é fundamental, já que, nas discussões sinodais que ocorrem em todo o mundo, a posição que as mulheres ocupam na Igreja é sempre uma manchete. Francisco reconheceu isso com as suas várias nomeações de mulheres para órgãos importantes em Roma e em breve ele nomeará duas mulheres para o departamento vaticano que nomeia os bispos. O que estamos ouvindo nos processos sinodais é que a caminhada precisa ir mais longe e mais rápido.

 

Embora a questão de um diaconato feminino provavelmente continuará muito contestada, o acordo que foi feito sobre as diáconas no Concílio Plenário é altamente significativo do ponto de vista simbólico, pois significa que a Austrália se torna a segunda Igreja, depois da Amazônia, a indicar o seu apoio às diáconas. Se essa é uma reforma que vem pela frente, é provável que seja por meio das Igrejas locais, e não do centro romano.

 

A segunda maneira é uma Igreja que substitui o medo pela confiança no Espírito Santo. O pontificado de Francisco se baseia profundamente nas ideias do teólogo do Vaticano II Yves Congar, que pedia que a Igreja recuperasse a confiança no Espírito para renovar a Igreja, garantindo que ela possa testemunhar o Evangelho de uma forma que fale às pessoas hoje. Francisco adverte repetidamente contra a tentação da mentalidade “restauracionista”, que busca voltar aos modos pré-Vaticano II, particularmente no que se refere à liturgia.

 

É tentador pensar a Igreja Católica como a guardiã do passado, que simplesmente protege doutrinas imutáveis. Para Francisco, no entanto, a Igreja é movida por uma tradição viva e não deve se tornar uma “fé de museu”. Ela pode ser resumida na frase do historiador Jaroslav Pelikan: “A tradição é a fé viva dos mortos, o tradicionalismo é a fé morta dos vivos”.

 

O que isso significa é que, sim, a Igreja pode fazer coisas novas e atualizar suas estruturas, estilos pastorais e hábitos. O Concílio Plenário é um exemplo de como pegar uma estrutura antiga e fazer algo novo com ela. Concílios Plenários já ocorreram na Austrália no passado, mas não abordaram questões como a proteção do ambiente ou os direitos dos povos indígenas. Os Concílios Plenários do passado não tinham membros do sexo feminino. A Igreja na Austrália merece algum crédito por dar um salto no escuro e embarcar neste Concílio com a sua tentativa de construir uma Igreja que seja adequada para esse propósito e esteja disponível para a obra do Espírito Santo hoje. É isso que Francisco está buscando de toda a Igreja à medida que ela se torna mais sinodal.

 

Mas confiar também significa estar pronto para a “bagunça” da sinodalidade. Vimos isso em Sydney, quando as votações sobre as mulheres falharam, e vários membros manifestaram seus sentimentos no auditório. Isso claramente chocou os bispos. Houve uma grande emoção. As pessoas estavam em lágrimas. Seguiu-se uma série de reportagens negativas na mídia. No entanto, essas lutas têm que acontecer, e é só abraçando a crise que você alcança a renovação.

 

Para Francisco, é melhor que os pratos voem por um desacordo do que uma falsa paz, ou que a Igreja pareça forte e harmoniosa por fora, mas por dentro esteja com sérios problemas. Em Roma, as mentalidades da “bella figura”, isto é, de mostrar uma boa imagem, ou do “gattopardismo”, ou seja, de defender a mudança, mas, na realidade, mantendo as mesmas estruturas de poder existentes, são desafiadas pela reforma sinodal.

 

Em contraste, a Igreja australiana mostrou que não estava interessada em uma reforma cosmética. Esse foi um discernimento honesto e um processo construído com base na confiança de que o Espírito Santo conduziria a assembleia mesmo que isso significasse ser levado ao abismo do desastre.

 

A terceira maneira é encontrar a tensão criativa no desacordo, mas evitando a divisão. No início do Sínodo sobre a Família de 2014, Francisco encorajou os bispos a falarem com franqueza, usando a palavra grega parrhesia. O que me impressionou na assembleia do Concílio Plenário foi o modo como as pessoas puderam falar com franqueza, abertura e honestidade. Uma das patologias da Igreja nas últimas décadas tem sido a repressão a falar livremente sobre temas difíceis, mas, durante seu pontificado, Francisco eliminou o medo que as pessoas podiam ter de falar abertamente. Isso se baseia em um princípio católico profundamente arraigado de que a lógica “e/e” é quase sempre preferível à lógica “ou/ou” e de que é escutando opiniões diferentes que um caminho criativo pode ser encontrado.

 

Embora as pessoas discordassem umas das outras no Concílio Plenário, elas ainda estavam conversando umas com as outras. Durante os sínodos em Roma, isso nem sempre ocorre, e é quase impossível imaginar a Igreja profundamente polarizada dos Estados Unidos sendo capaz de colocar todos na mesma sala para uma reunião sinodal. A capacidade de manter diferentes pontos de vista em tensão e, em seguida, encontrar consenso foi uma força do Concílio Plenário e é algo que Francisco quer ver em toda a Igreja.

 

Isso significa que a Igreja sinodal se levanta como uma testemunha da contracultura para uma cultura que continuamente exige que as pessoas façam escolhas segundo a lógica “ou/ou” em questões controversas de âmbito político ou outro, e depois as separa em campos opostos. Ao invés disso, a visão de Francisco busca tirar as pessoas de suas câmaras de eco das mídias sociais e fazê-las entrar em uma cultura do diálogo e do encontro. Uma Igreja sinodal busca construir harmonia a partir de uma cacofonia de vozes.

 

No entanto, ficou claro que, dentro do Concílio Plenário, um pequeno grupo dentro do auditório havia decidido agir como um bloqueio a certas moções, pois procurava impor à assembleia algumas posições político-eclesiais estreitas sobre certos temas. Em vários aspectos, a dinâmica em Sydney reflete a dinâmica mais ampla da Igreja. A oposição ao processo sinodal é forte, e pôr o Sínodo na mira tornou-se uma batalha por procuração para aqueles que querem minar Francisco. O bloqueio em Sydney foi semelhante ao bloqueio no Sínodo da Amazônia de 2019, quando todos os bispos da Região Amazônica pediram a ordenação de homens casados como padres. Essa iniciativa foi obstruída, porque os cardeais da Cúria Romana, que participavam naquele Sínodo, resistiram. Há questões legítimas para Francisco e para a Santa Sé sobre o modo como eles planejam lidar com aquela que provavelmente será uma resistência intensa à cúpula sinodal no Vaticano em 2023.

 

O que foi interessante em Sydney, entretanto, é que, apesar dos seus melhores esforços, o grupo que buscava bloquear a mudança não obteve sucesso – formou-se um consenso em torno das moções, apesar de uma tentativa de resistência por parte de um grupo organizado. No entanto, se acreditarmos em um certo meio de comunicação católico em Sydney, eles planejam continuar lutando.

 

O problema com parte da oposição às reformas sinodais é a recusa de jogar segundo qualquer tipo de regra. Você pode pensar que está jogando uma partida de rúgbi ou futebol, mas muitas vezes você descobre que os vestiários foram inundados ou os holofotes, desligados, a fim de que o legítimo debate entre posições diferentes simplesmente não possa ocorrer.

 

Conclusão

 

Por fim, gosto de pensar que o que o Papa Francisco está tentando implementar é uma Igreja que vive da “economia invertida do Evangelho”. Ele quer uma Igreja que seja uma voz profética nas margens da sociedade; uma Igreja que olhe para fora e se recuse a descansar dentro dos “recintos sagrados” da sua própria segurança. Francisco quer uma visão evangélica:

 

Os últimos são os primeiros.
Os de fora são os de dentro.
“Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus.”

 

Ele defendeu esse seu ponto de vista no topo da Igreja com a nomeação de cardeais, muitos deles bispos que trabalham nas periferias e que nunca esperariam receber o barrete vermelho cardinalício. Ele tornou o serviço, e não o status, o princípio orientador.

 

Alguns na Igreja podem estar esperando que um futuro papa atrase o relógio e já estão manobrando para garantir que um candidato anti-Francisco saia vencedor no próximo conclave. Só o tempo dirá. Até o fim de agosto, ele terá escolhido cerca de 63% dos candidatos que elegerão o seu sucessor, embora isso não garanta nada.

 

Aconteça o que acontecer, porém, o papado de Francisco estabeleceu um marco definitivo que não pode ser apagado. Mesmo que os opositores deste papado consigam encontrar um candidato no próximo conclave disposto a desfazer as reformas, o pontificado de Francisco continuará sendo a estrela-guia que move o Povo de Deus para a frente.

 

Obrigado pela atenção.

 

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