10 Janeiro 2020
"Tenhamos a disponibilidade e a coragem de irmos às periferias e assim contemplar o Mistério da Encarnação", escreve Fábio Pereira Feitosa, historiador especialista em Comunicação.
A Igreja Católica como sabemos é uma instituição hierárquica, plural e universal, desta forma em seu interior coexistem as mais diferentes correntes e grupos com interesses muitas vezes discordantes. A história desta instituição é milenar e repleta de episódios que acabam por demonstrar toda a sua complexidade. Atualmente estamos vivenciando uma nova fase em sua história, tendo esta como marco inicial a chegada do Cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio à Cátedra de São Pedro em 2013.
O início do Prontificado do Papa Francisco assinalou o estabelecimento de uma nova etapa de evangelização, cujo objetivo principal é a afirmação de uma Igreja em Saída. Tal projeto teve como marco fundante a Exortação apostólica Evangelii Gaudium, na qual o Papa Francisco lançou o convite para uma nova etapa de Evangelização, sendo esta caracterizada pela dinamicidade que fará da Igreja cada vez mais companheira de caminhada de homens e mulheres que muitas vezes são marginalizados por um sistema gerador de fome e das mais variadas injustiças e misérias; uma Igreja comprometida como anúncio da Boa Nova e com o desenvolvimento integral do ser humano: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância (João 10:10)”; uma Igreja que busca novas formas de evangelizar a partir de realidades concretas e não de teorias elaboradas sem vinculação com realidade palpável do dia-a-dia. Além do convite citado anteriormente, o Papa Francisco neste documento indica os caminhos pelos quais a Igreja deve trilhar nos próximos anos, o que demonstra de forma clara o seu desejo de que este projeto tenha continuidade e seja aprofundado.
Esta nova etapa de evangelização lançada pelo Papa Francisco não consiste em uma novidade teológica ou pastoral, este projeto é o resulto de uma volta, de uma reafirmação da História da Salvação, bem como das raízes evangélicas da Igreja e uma forma de aplicar e reavivar o Espírito Conciliar nesta instituição, o que demonstra a coragem profética e o zelo de pastor do Bispo de Roma, sobretudo nos tempos atuais. Este projeto implica em uma atitude dinâmica, tal como vemos em Abraão, Moisés, Jeremias e tantos outros que saíram de sua comodidade e se puseram a caminhar, como nos lembra o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, sua primeira Exortação Apostólica:
Na palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de “saída”, que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou o chamado para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn. 12,1-3). Moisés ouviu o chamado de Deus: “Vai, Eu te envio” (Ex. 3.10) e fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex.3,17). A Jeremias disse: “Irás aonde Eu te enviar” (Jr 1,7). Naquele “Ide” de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova “saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar este chamado; sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho.
O Papa Francisco desde o primeiro momento como sucessor de Pedro, ressalta a importância de irmos ao encontro das periferias físicas e existências, tal missão é algo intrínseco ao cristianismo e como tal deve ser vivido. Por meio do Mistério da Encarnação, o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (cf. João 1,14) em uma realidade periférica, longe do luxo e da ostentação palaciana. Transitar pelas periferias faz parte da tradição da Igreja desde as suas origens, como verificamos nos tempos da igreja primitiva quando a sua sobrevivência esteve ligada diretamente à clandestinidade, considerando a perseguição estatal nos primeiros séculos da Igreja.
A Igreja Católica é uma instituição universal e como tal ela está inserida em diferentes realidades, cada qual com suas particularidades especificas, assim, ela deve estar preparada e atenta para os mais diferentes desafios implícitos às áreas nas quais atua. Assim, a Igreja na contemporaneidade deve estar preparada para ir às periferias, tal como o Papa Francisco constantemente nos adverte:
Neste momento, a humanidade vive uma transformação histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia, não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade.
(...) não é possível que a morte por enregelamento de um idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode mais tolerar que se jogue comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, em que o poderoso engole o mais fraco. Em consequência dessa situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, um bem de consumo que se pode usar e depois jogar fora. Assim teve início a cultura do “descartável”, que, aliás, chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas resíduos, “sobras” [1].
Como podemos verificar, o Papa Francisco por meio da fala vista acima, constata uma terrível contradição entre o desenvolvimento tecnológico e econômico com o desenvolvimento humano, o que resulta em um aumento considerável no número dos sobrantes, homens e mulheres jogados às margens da sociedade, que não são notícias, que acabam não sendo vistos e nem lembrados e assim acabam tendo a sua primazia de ser humanos roubada por um sistema excludente. Diante deste quadro cada vez mais atual e crescente, a Igreja deve ir às periferias físicas e existências, tal como nos lembra São Vicente de Paulo: “Não sei quem é mais carente, o pobre que pede pão ou o rico que pede amor”. Tenhamos a disponibilidade e a coragem de irmos às periferias e assim contemplar o Mistério da Encarnação.
[1] Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. 2013, p.40,41.
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Ir ao Encontro das Periferias, um desafio da Igreja na contemporaneidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU