30 Junho 2022
No domingo, 19 de junho, a Colômbia, pela primeira vez em sua história, elegeu um presidente de esquerda. Gustavo Petro sucederá oficialmente Iván Duque no dia 7 de agosto. Após a vitória de Alberto Fernández em 2019 na Argentina, Pedro Castillo no Peru e Gabriel Boric no Chile no ano passado, podemos falar de uma “nova onda rosa” no continente sul-americano que sucederia a do início dos anos 2000?
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 23-06-2022. A tradução é do Cepat.
Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurès, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris) e autor de Progressisme et démocratie en Amérique Latine, 2000-2021 (Progressismo e democracia na América Latina, 2000-2021), analisa a situação política nesses países, principalmente no que diz respeito às grandes manifestações que se multiplicaram nos últimos anos para exigir mais justiça social. Ele relativiza a noção de ciclos eleitorais a partir de alternâncias sistemáticas que, segundo ele, não permitem apreender toda a complexidade das aspirações populares.
A Colômbia elegeu um presidente de esquerda, Gustavo Petro, pela primeira vez em sua história. Ele sucederá o presidente de direita Iván Duque, que está terminando seu mandato de quatro anos. Como Petro conseguiu convencer a população?
Gustavo Petro obteve 40% dos votos no primeiro turno, contra 28% do outsider Rodolfo Hernández, que obteve imediatamente o apoio da direita tradicional liderada por Federico Gutiérrez (24%). Entre os dois turnos, as pesquisas não ousaram cravar o nome do vencedor, pois a diferença entre os dois candidatos era pequena. Por fim, Petro vence com apenas 50,4% dos votos.
Guerrilheiro até 1990, quando o movimento guerrilheiro M-19 assinou um acordo de paz, Gustavo Petro tornou-se então senador e depois prefeito de Bogotá em 2014.
A Colômbia é assolada por desigualdades, que foram agravadas pela Covid. Em dois anos, a taxa de pobreza aumentou 10 pontos. Em 2021, protestos em larga escala ocorreram exigindo mais justiça social e foram duramente reprimidos. Para a população, esta eleição foi uma oportunidade para virar a mesa, para expressar sua frustração com um governo impotente e um aumento da violência.
Gustavo Petro conseguiu, na reta final, encarnar essa mudança. Rodolfo Hernández, pelo contrário, mostrou que não tinha perfil de estadista ao se recusar a participar de um debate entre os dois turnos, apesar de um tribunal lembrar a obrigação de se submeter a esse exercício. Gustavo Petro também comunicou sobre a denúncia por corrupção feita por seu oponente, que mesmo assim fez desse tema seu único eixo de campanha.
Enquanto Gustavo Petro atrai um eleitorado urbano e de classe média, sua vice-presidente Francia Márquez representa as classes trabalhadoras e as populações afrodescendentes. Militante feminista e ativista ambiental, ela trouxe de volta às urnas pessoas que normalmente não votam. A taxa de participação na eleição presidencial não era tão alta desde 1997 (58%).
Qual é o programa de Gustavo Petro?
Até agora, Gustavo Petro ficou nas generalidades. Quer atender às expectativas sociais e caminhar para um modo de desenvolvimento mais respeitoso com o meio ambiente e, portanto, menos extrativista.
No entanto, como conseguir isso levanta perguntas, porque a renda da Colômbia, como a de grande parte da América Latina, depende da exportação de produtos primários - no caso da Colômbia, especialmente do carvão e do petróleo.
A única medida concreta anunciada até agora é a libertação de estudantes presos após os protestos de 2021. Em seu discurso de vitória, o novo presidente falou de paz e amor durante aproximadamente dez minutos. Isso pode parecer surpreendente visto da Europa, mas na Colômbia, que é um país marcado pela violência, o simbolismo é forte.
Em março, houve eleições legislativas na Colômbia para eleger as duas câmaras do Congresso, o Senado e a Câmara dos Deputados. O governo tem maioria nessas duas casas legislativas?
O presidente não tem maioria nem no Senado nem na Câmara dos Deputados, o que explica por que ainda não tem uma estratégia clara para as próximas semanas. Ele sabe que terá que negociar constantemente. Essas referências à paz e ao amor também remetem à necessidade, para Gustavo Petro, de abrir um diálogo com a oposição.
Na Colômbia, os representantes da câmara baixa e os senadores devem ser divididos em três grupos: o grupo do governo, o grupo da oposição e o grupo independente. Os novos eleitos em março tomam posse no dia 20 de julho, mas têm até 7 de setembro para escolher o grupo ao qual querem se vincular. Gustavo Petro toma posse no início de agosto, mas por isso se concentrará até setembro na busca de aliados, mais do que na aplicação de seu programa.
Seu interesse é que haja o maior número possível de independentes porque, mesmo que não o apoiem totalmente, será mais fácil para eles votarem, num sentido e depois no outro, nos projetos se estiverem vinculados a esse grupo do que se estiverem na oposição.
Devemos, pois, esperar até o início de setembro para ver com mais clareza e saber se o novo chefe de Estado conseguirá evitar o desastre peruano – o presidente eleito no ano passado passou seu tempo frustrando tentativas de impeachment.
Visto da Europa, muitas vezes temos a tendência de simplesmente olhar para a coloração do presidente para formar uma opinião sobre a situação política de um país da América Latina, mas não devemos esquecer de olhar para o que está acontecendo no Parlamento.
Após a vitória de Alberto Fernández em 2019 na Argentina, de Pedro Castillo no Peru e de Gabriel Boric no Chile no ano passado, estamos presenciando um retorno da esquerda no continente latino-americano? Essas alternâncias, às quais acaba de se somar o exemplo colombiano, marcam o início de um novo ciclo político?
À primeira vista, podemos realmente ver um ciclo de esquerda tomando forma após um ciclo de direita, que, por sua vez, sucedeu um ciclo de esquerda do início dos anos 2000. Mas não reflete as visões ideológicas ou partidárias dos eleitores.
Vemos isso muito concretamente no Peru. O presidente Castillo foi eleito há dez meses, mas não tem maioria no Parlamento, e tem lutado desde o início do seu mandato contra os processos de impeachment. Já teve que aceitar a renúncia de vários ministros. Podemos, nessas condições, considerar o Peru como um país de esquerda?
O eleitorado está mudando na América Latina e as alternâncias são numerosas, porque há um descontentamento latente ligado às desigualdades que estão entre as mais altas do mundo e pelas quais os governos são responsabilizados. É a busca por melhorias concretas nessa área que orienta o voto dos eleitores. Como resultado, quando o governo em vigor não parece mais capaz de responder às aspirações, vota-se contra.
É assim que podemos explicar as sucessivas alternâncias na Argentina, por exemplo?
No caso da Argentina, de fato, governos justicialistas (1) de esquerda foram liderados por Néstor Kirchner (2003-2007) e depois sua esposa Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015), em um período de dinamismo econômico no continente e no mundo. Neste período, a China começou a comprar grandes quantidades de minerais e matérias-primas agrícolas da África e da América Latina, o que permitiu financiar políticas sociais ambiciosas.
Quando o preço dessas matérias-primas caiu em 2014-2015, o empresário liberal Mauricio Macri foi eleito com ampla margem de votos e apostou em um empréstimo colossal do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ninguém sabe para que foi usado esse dinheiro, a taxa de pobreza continuou a subir e o crescimento não voltou ao país.
Em 2019, assistimos, portanto, ao retorno do peronismo de esquerda ao poder. Alberto Fernández foi eleito com Cristina Fernández de Kirchner como vice-presidente, mas luta para governar depois de perder a maioria nas eleições de meio de mandato. Por enquanto, todas as pesquisas dão Mauricio Macri como o vencedor contra Alberto Fernández na eleição presidencial de 2023.
A partir de 2019, no Equador, Colômbia, Chile e Peru, ocorreram grandes manifestações principalmente por demandas sociais. Elas se depararam com uma repressão às vezes muito violenta. Você fala no seu livro de um “cinturão de fogo”. Será sinal de que as aspirações dos cidadãos já não encontram eco nas urnas?
No continente, a trágica memória dos regimes militares e ditatoriais dos anos 1970 ou 1980 ainda está muito viva, muito ancorada nas memórias, para que as demandas sociais sejam extintas pela tomada do poder direta pelas autoridades militares. No momento, portanto, o descontentamento social caminha para uma espécie de terceira via, encarnada, por exemplo, por um dos dois candidatos à eleição presidencial colombiana.
Rodolfo Hernández se apresentou sem ter um programa, fez campanha nas redes sociais (TikTok, Instagram) e limitou-se a comunicar seu desejo de lutar contra a corrupção. Uma solução que permite, segundo ele, baixar os impostos e reduzir o orçamento do Estado.
No México, antes dele, Andrés Manuel López Obrador, que chegou ao poder em 2018, também prometeu realizar uma política social forte graças ao dinheiro recuperado da luta contra a corrupção. Cada vez mais, o combate aos vícios individuais, ou seja, a recuperação do produto do furto de alguns, apresenta-se como forma de financiamento de programas sociais coletivos.
O aumento do descontentamento também encontra subterfúgios na delinquência. Quer se trate da pequena delinquência ou de redes mais organizadas, atinge níveis elevados no Brasil, México e Colômbia. E a polícia responde de uma forma muito violenta. Nós nos concentramos na brutalidade policial e nos crimes policiais nos Estados Unidos, mas a polícia brasileira mata 5.000 afro-brasileiros por ano em quase total silêncio da mídia.
A democracia está ameaçada no continente?
Em alguns países, resta apenas a aparência de uma vida democrática. No Brasil, em 2016, Dilma Rousseff foi forçada a deixar o poder após um golpe de Estado parlamentar, destinado a impedi-la de perpetuar programas sociais e, sobretudo, de financiá-los por meio de novos impostos sobre as empresas.
A manipulação da opinião pública no país é cada vez mais numerosa. Jair Bolsonaro foi eleito sem debater com seus adversários e usando fake news. Na Venezuela, todas as eleições são vencidas pelo governo em exercício, que monopoliza a expressão pública nas mídias.
Cada vez mais, surgem no continente candidatos que estão longe do que se poderia esperar de um sistema democrático funcional, incapazes de apresentar programas reais aos eleitores com garantias de financiamento. E, portanto, para alimentar um debate democrático.
Mais uma vez, a memória das ditaduras ainda é forte demais para permitir que a história se repita. No entanto, em alguns países, a presença militar é forte dentro dos governos e em setores inteiros da economia.
No Brasil, Jair Bolsonaro é capitão, seu vice-presidente é general do Exército e muitos de seus ministros ou diretores de agências governamentais também pertencem às Forças Armadas. Essa influência não é secreta, e os militares apoiam regularmente as tentativas de Jair Bolsonaro de adiar a data da próxima eleição presidencial, marcada para outubro.
No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador (conhecido como “Amlo”) fez campanha com a promessa de desmilitarizar o país, mas se cercou de militares.
A esquerda europeia tem a tendência de apagar essas áreas cinzentas das esquerdas latino-americanas. Lançar um olhar militante sobre a América Latina e tentar vê-la como gostaríamos que fosse nos impede de captar as realidades políticas no terreno.
Recuemos um pouco no tempo. A primeira “onda rosa” na América do Sul remonta ao início dos anos 2000 e trouxe ao poder especialmente Luiz Inácio Lula da Silva (“Lula”), Hugo Chávez, Michelle Bachelet e Rafael Correa, respectivamente no Brasil, Venezuela, Chile e Equador. É a mesma esquerda que está voltando ao poder hoje?
Existem diferenças. Na Argentina, o atual presidente Fernández representa uma corrente mais centrista do que a encarnada pelos Kirchner em seu tempo. Isso também coloca problemas de coerência e contradições dentro do conjunto do atual executivo.
Sinal de crescente desconfiança dos partidos, a nova esquerda no poder com a eleição de Gabriel Boric no Chile vem da sociedade civil, ONGs, associações feministas, ambientalistas ou de bairro. Esta nova esquerda se recusa, diferentemente daquela do início dos anos 2000 encarnada por Ricardo Lagos (presidente de 2000 a 2006) e Michelle Bachelet (presidente de 2006 a 2010 e depois de 2014 a 2018), a se solidarizar com a Venezuela, a Nicarágua ou Cuba. Gabriel Boric, por exemplo, condenou o desrespeito às regras eleitorais e à democracia nos dois primeiros países e admitiu ter pouco em comum com Havana.
Na Bolívia, ao contrário, há uma forma de continuidade já que Luis Arce, o atual presidente, pertence ao movimento indígena socialista (o MAS) presidido por Evo Morales. Este último governou entre 2006 e 2013, antes que a direita tomasse o poder brevemente através de um golpe de Estado.
Finalmente, no México, “Amlo” não se considera de esquerda. Alegando ser progressista e nacionalista, ele, no entanto, defende a posição crucial de seu país entre os Estados Unidos, aos quais está associado em um espaço econômico comum, e a América Latina. Essa não é a posição da esquerda brasileira, que quer fortalecer a comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (a “Celac”).
Que conclusões podemos tirar da onda rosa do início dos anos 2000, que terminou em 2014, com a eleição de vários governos liberais, e inclusive autoritários em alguns países?
Os governos da época careciam de uma visão de longo prazo. Eles eram principalmente da esquerda, mas alguns da direita cometeram o mesmo erro, na Colômbia ou no México, por exemplo. Sua estratégia consistiu em colher os benefícios da venda de matérias-primas energéticas, minerais e agrícolas, principalmente para a China, para financiar programas sociais. Mas quando os preços caíram, eles se viram na miséria, incapazes de financiar os programas que haviam prometido implementar.
Embora retratado como um revolucionário, Hugo Chávez na Venezuela usou o dinheiro da renda do petróleo para financiar programas sociais, mas não iniciou a reforma tributária para que os ricos contribuíssem mais, nem liderou um programa coerente de nacionalização.
Nenhum país organizou a diversificação de sua produção ou procurou exportar produtos com maior valor agregado do que suas riquezas brutas. No entanto, uma política social não pode se basear apenas na conjuntura global favorável e no nível da demanda chinesa, que flutua por natureza.
Desde o início dos anos 2000, os programas da esquerda latino-americana incorporaram as preocupações ecológicas?
Uma das primeiras decisões tomadas pelo presidente do Chile é uma boa ilustração do estado do debate ecológico na América Latina: Boric lançou a adesão de seu país ao acordo de Escazu, que visa garantir a proteção dos defensores do meio ambiente. Hoje, muitos deles ainda são vítimas de ataques, até mesmo são assassinados.
Desaparecidos no início de junho, o jornalista Dom Phillips e o antropólogo especializado em povos indígenas Bruno foram encontrados mortos na floresta amazônica brasileira, na fronteira com o Peru, onde pesquisavam atividades ilegais de extração.
No Caribe, o ministro do Meio Ambiente da República Dominicana foi assassinado em seu gabinete no início de junho. A candidata a vice-presidente colombiana da chapa de Gustavo Petro, por sua vez, foi vítima de várias tentativas de assassinato em sua região de origem na costa do Pacífico, onde estão localizadas muitas empresas de mineração.
A guerra na Ucrânia também foi reveladora sobre questões ambientais. Jair Bolsonaro e “Amlo” tiveram o mesmo reflexo de se opor às sanções aos fertilizantes russos para proteger seu modelo agrícola intensivo. O México precisa de rendimentos para alimentar sua população e o Brasil para manter suas receitas de exportação.
O presidente mexicano, que priorizou as questões sociais, considera que o petróleo e os recursos fósseis são um instrumento importante na luta contra as desigualdades. Um de seus principais programas de desenvolvimento inclui uma refinaria. Para impulsionar o setor de turismo com benefícios sociais para a população, espera, também não hesitou em lançar a construção de um trem que atravessa a floresta tropical no sul do México.
Na Argentina, o presidente Fernández fez há alguns meses uma turnê a várias capitais ocidentais, bem como a Moscou e Pequim para vender seu lítio e seu petróleo, e pedir a empresas estrangeiras que invistam neste setor contra a facilidade de instalação. O modelo extrativista não é, portanto, questionado, especialmente quando há uma dívida colossal a pagar.
Em termos econômicos, que consequências a guerra na Ucrânia pode ter na América Latina?
Alguns países poderiam se beneficiar da situação atuando como substitutos da Rússia e da Ucrânia no mercado de grãos. Ao exportar mais produtos alimentícios, cobre, ferro, gás ou mesmo petróleo, a América Latina pode esperar receitas financeiras adicionais.
Mas o jogo corre o risco de ser de soma zero, já que o continente importa a maioria dos produtos de maior valor agregado de que necessita. No entanto, o preço destes aumenta acentuadamente com a inflação. O que é ganho de um lado é, portanto, suscetível de ser perdido do outro.
1 - O justicialismo é um movimento político identificado com o programa social estabelecido por Juan Domingo Perón durante seus mandatos de presidente (1946-1955). É marcado por seu pragmatismo, sua adaptação ideológica, suas divisões políticas internas e sua fraca disciplina partidária.
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“Na América Latina, a onda rosa não reflete necessariamente os valores dos eleitores.” Entrevista com Jean-Jacques Kourliandsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU