04 Abril 2022
Petro, ex-guerrilheiro e hoje senador, pode ser o próximo presidente. Tem a seu lado Francia, ativista das lutas camponesas e das causas que tocam a juventude. Poderão, juntos, liderar a reconstrução de um país carcomido pelas oligarquias?
O artigo é de Fernando Dorado, ex-deputado colombiano, analista política e ativista social, publicado por Rebelión e reproduzido por OutrasPalavras, 30-03-2022. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Em 13/3, a Colômbia elegeu seus representantes para o Congresso. Os resultados indicam uma grande ruptura na dinâmica do poder no país – e pode indicar um possível redesenho à esquerda. Pela primeira vez na história, uma coalizão progressista – a lista do Pacto Histórico, liderada pelo pré-candidato à presidência, Gustavo Petro – obteve o maior número de votos. Torna-se a coalizão com maioria no Senado, fazendo 19 cadeiras de 108. Na Câmara, a esquerda ampla votação, embora constitua pelos regras eleitorais tenha ficado com a segunda maior força política em número de parlamentares. Além disso, pelo sistema eleitoral colombiano, junto com as eleições legislativas (Câmara e Senado), também são realizadas as primárias para a presidência da República, onde os três mais votados ganham o direito de formar suas alianças (coalizões) e disputar o cargo de presidente do país em dois turnos (o primeiro será em 29/5). Petro recebeu 4,5 milhões de votos nessas primárias, foi o pré-candidato mais votado – e lidera as pesquisas de intenção de votos, junto com a candidata a vice-presidência, Francia Márquez: na última, estavam com cerca de 47% da preferência. O ex-prefeito de Medellín Federico Gutiérrez será o candidato da coalizão de direita e Sergio Fajardo, ex-governador do departamento de Antioquia, representará a aliança de centro.
Um amigo que jogava muito bem bilhar sempre que fazia uma jogada extraordinária dizia: “o saber é chamado de sorte”. No entanto, ele sabia que em certos momentos algo que poderia ser chamado de sorte o ajudava a vencer. Quem joga chama a isso de estar ligado.
Hoje o progressismo e as esquerdas colombianas estão ligados. Não se trata de sorte ou de coincidência – como dizia meu amigo – mas da confluência de vários fatores que tornam isso possível. O agravamento das péssimas condições de vida; a fusão de inconformismo, indignação e consciência política; e a existência de acumulações organizacionais que geraram uma contexto novo.
Em um artigo de mais de um ano atrás (3/6/2021) afirmamos que havíamos entrado em um “novo momento político” na Colômbia. A questão da paz pequeña (desmobilização das FARC) foi basicamente superada e para garantir a paz grande era necessária uma mudança no modelo econômico e político. É onde estamos hoje.
Dissemos (entre outras coisas) que “o bloco de poder oligárquico está enfraquecido”, “as classes médias estão começando a se voltar para o progressismo”, “a pandemia ajudou a desnudar nossas misérias”, “a crise dos partidos políticos está forçando o surgimento de novas expressões políticas” e “há evidências de que mulheres e jovens serão decisivos para este novo momento”.
Após a explosão social e a tentativa fracassada das castas dominantes de fazer acreditar que foi “uma estratégia subversiva para destruir as instituições democráticas”, pode-se dizer que estamos vivendo este novo momento político. Os resultados das eleições de 13 de março confirmam a existência de um processo com fortes raízes sociais que, infelizmente, o conflito armado instrumentalizado pelo império (e o narcotráfico) não nos permitiu apreciar e desencadear.
Gustavo Petro e Francia Márquez, os dois pré-candidatos vencedores do Pacto Histórico [ampla coalização eleitoral, composta por partidos de esquerda e centro-esquerda, para as eleições de 2022], encarnam essas dinâmicas sociais complexas e não-lineares. Cada um deles representa em sua particularidade a diversidade de lutas populares que, felizmente, se confluem na conjuntura atual, mas que têm origens, essências e naturezas diferentes.
Tudo indica que começa a tomar forma na Colômbia um processo político que tenta combinar – de forma criativa – o trabalho cinzento e cotidiano de construção de formas de poder popular com ação eleitoral para, assim, colocar a institucionalidade existente a nosso serviço, sem pretender transformá-la de um dia para o outro e sem abandonar para mudar a sociedade a partir de “autogovernos”.
Essa tarefa está no centro dos debates das lutas populares, progressistas e de esquerda que se desenvolvem na América Latina e no mundo. Atualmente, existem dois tipos de processos que parecem antagônicos (os “autonomistas” versus os “institucionalizados”) devido, basicamente, ao fato de que as diferentes experiências realizadas até agora levaram à cooptação e ao enfraquecimento dos movimentos populares pelo Estado, mesmo em mãos de governos progressistas.
De forma panorâmica podemos afirmar que Evo e Linera na Bolívia se deixaram cooptar, embora os movimentos sociais lutem “de baixo” para reparar essa situação; Correa nunca teve uma estratégia popular, queria fazer tudo a partir do Estado (ou seja, de cima); Lula desenvolveu uma prática muito semelhante apesar da existência dos “sem-terra”. Agora, Gabriel Boric está começando no Chile, mas há um deslocamento com o movimento popular pouco organizado, com exceção do povo mapuche. O perigo de experiências como as de Lula e Correa é que elas abrem caminho para os bolsonaros.
De outra perspectiva, há a valiosa experiência dos neozapatistas mexicanos que, embora sustentados em suas dinâmicas locais, parecem se isolar em seu “autonomismo” e desconectar-se da vida e do povo da nação mexicana e do mundo. Na Colômbia, a experiência indígena e afro está imersa na luta por autonomia e num processo de cooptação institucional sem que ainda tenha havido um governo progressista. É uma realidade complexa de definir e explicar.
No entanto, tudo isso pode mudar se os processos anteriores forem avaliados com seriedade e o problema for esclarecido. Em geral, os “políticos” são responsabilizados e a liderança “social” é exonerada a priori. Isso a leva a assumir um comportamento “purista”, confortável e isoladora. Se deixa o espaço aberto a todo tipo de oportunistas sem deflagrar lutas em seu terreno e, logo depois, quando a burocratização e a corrupção avançam, se diz olimpicamente… “nós avisamos!”.
É por isso que devemos promover um debate mais profundo sobre o caráter e a natureza do Estado, e desenvolvê-lo com o povo, sem medo ou fundamentalismo, sem verdades eternas e com espírito de aprendizado. A vida dos povos e a sobrevivência da humanidade nos obrigam.
Francia Márquez foi escolhida como candidata a vice-presidente de Gustavo Petro. Ela foi treinada em um processo claramente “social” de camponeses e negros mineiros de Cauca, enquanto ele, de origem popular da periferia de Zipaquirá (em Cundinamarca, há 25 km de Bogotá) foi formado em “política” a partir de sua militância no M19, guerrilha democrática e nacionalista dos anos 70 e 80. Cada um tem sua própria história de lutas – valiosas e com seus méritos.
Encontramos na ação política da Francia algumas características particulares. Seu “sucesso” eleitoral – ao menos, até agora – consiste em se comportar como realmente é, sem máscaras nem poses. Ela é uma autêntica outsider, muito diferente de tantos candidatos que hoje se apresentam como “antipolíticos” sem sê-lo e, portanto, não podem competir com ela. Ela é transparente e espontânea; eles são obscuros e previsíveis.
Francia é uma rebelde pacifista operando dentro do sistema. Alguém que diz coisas sem cálculo, mas com convicção; uma pessoa que age regida por uma lei que não está escrita (Ubuntu) e, portanto, nunca se trai. Suas ideias de igualdade, dignidade e justiça social se nutrem de práticas reais e vitais, que a comprometem com as causas do povo e da humanidade.
Ela está protagonizando algo inédito, que é transformador em si mesmo, algo novo pois suas ações, em todos os sentidos, estão fora da política tradicional. Sua luta pelos direitos dos excluídos, das mulheres, de gênero, dos jovens, das vítimas do conflito armado e pela preservação da natureza, não surgem de livros ou teorias, mas de sua própria vida – e da vida do povo.
Já Petro tem que jogar no campo tradicional, tem que agir com base na lei escrita, e de alguma forma ele se trai (tomara que seja conscientemente) porque a imagem que construíram para ele foi a do guerrilheiro e comunista. No entanto, ele também arriscou toda a sua vida, enfrentando o paramilitarismo e a corrupção, desafiando a oligarquia e o uribismo, e construindo um programa que contempla transformações importantes para a sociedade, tanto no plano nacional e regional (latino-americano) quanto global.
A contradição a ser resolvida em meio à prática, tanto por eles quanto pelos movimentos sociais e políticos, foi levantada por Francia em suas intervenções. É, ao mesmo tempo, um slogan dos jovens colombianos: “Não se trata apenas de mudar o governo (subsistema do Estado herdado); a tarefa é mudar a sociedade”. Não é se recusar a participar de um governo, mas saber que a ação principal não é administrativa. Não se trata de “fazer um favor” ao povo a partir do governo ou de iludi-lo com leis e decretos que vão mudar a sua realidade. Trata-se de aproveitar esses espaços institucionais para fortalecer a organização popular e a sociedade civil.
É importante lembrar que todo ato verdadeiramente transformador se baseia em uma lei que não está escrita. Todas as civilizações e sociedades tiveram suas leis não-escritas, de caráter comunitário e coletivo, que são muito semelhantes entre si. Quando as sociedades foram divididas em classes e/ou castas e surgiram governantes, os chamavam de reis, imperadores, marajás, xeques, incas, astecas, etc., chamavam os sábios de seu tempo e os pagavam para escrever os “livros sagrados”. A partir desse momento essas leis perderam seu caráter coletivo e comunitário. Eles foram explorados pelo poder de um setor minoritário da sociedade: os poderosos, os homens, os “sábios”, os opressores, aqueles que governam.
No entanto, essas leis existem. Eles existem na memória coletiva. Fazem parte da humanidade e da tradição de muitos povos ancestrais. Hoje, essas leis são essenciais para restaurar a vida e construir um futuro digno para todos os seres humanos. Quando Francia Márquez relembra seus ancestrais, ela nos lembra aquelas leis não-escritas. E é aí que reside a sua força.
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Colômbia: o possível giro à esquerda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU