22 Dezembro 2021
Eleição de Boric coroa quinze anos de revoltas sociais e busca de alternativas ao neoliberalismo. Ultradireita reergueu-se na reta final, mas foi batida. Mapa político da América Latina pode transformar-se em 2022, com eleições na Colômbia e Brasil.
O artigo é de Antonio Martins, jornalista e editor de OutrasPalavras, publicado por OutrasPalavras, 20-12-2021.
“O Chile, que foi o berço do neoliberalismo, será seu túmulo”, afirmou Gabriel Boric, agora presidente do país andino, em 22 de julho, quando venceu as prévias da coalizão Apruebo Dignidad e foi escolhido para disputar o posto. Não se sabe se ele – que assume como o chefe de Estado mais jovem, e o que recebeu mais votos na História chilena – será capaz de realizar o projeto, ambicioso. Mas a vitória sobre o ultradireitista José Antonio Kast é emblemática, em vários sentidos. Ela arremata um longo período de lutas, que assumiu às vezes caráter de levante popular e em outros períodos manteve-se como organização silenciosa – mas sempre teve como fio condutor o esforço para superar o neoliberalismo. O triunfo impõe um revés ao fascismo, que tentou de última hora capturar a revolta social, com os mesmos métodos empregados com sucesso em muitos países – entre os quais o Brasil. Por fim, diante do declínio de popularidade dos governos Jair Bolsonaro, em Brasília, e Ivan Duque, em Bogotá, ela abre caminho para que se forme, na América Latina, um conjunto de processos políticos anticoloniais mais vasto que os que compuseram a primeira “onda rosa” na região.
Outras Palavras acompanhou o Chile em profundidade, nos últimos anos. Eis um breve roteiro para examinar, por meio de nossos textos, o que se passa no país de Salvador Allende e Pablo Neruda.
Mais de vinte países viveram revoltas populares em 2019 – um fato que ficou temporariamente apagado pela pandemia que se espalhou pelo mundo em 2020 e prossegue até hoje. Muitos dos protestos tiveram como alvo as políticas neoliberais: do aumento dos combustíveis, no Equador, ao das tarifas de celular, no Líbano. Mas talvez em nenhum destes houvesse, como no Chile, um acúmulo tão vasto de crítica e mobilização contra tais políticas.
Lá, o estopim da revolta também foi um acontecimento aparentemente pouco relevante: a elevação em 30 pesos das tarifas do metrô (3,75%, bem menos que os “vinte centavos” do Brasil, em 2013). Mas o pula-catraca (“evasión”) liderado pelos secundaristas, que se seguiu de imediato, desdobrou-se numa revolta popular generalizada, que durou 70 dias, e se manteve firme mesmo após a repressão policial provocar 26 mortes – até obter o acordo que levaria a uma Convenção Constituinte. Dois de nossos textos examinam este processo e seus porquês. O primeiro, “Insurreição chilena quer passar país a limpo”, foi publicado em outubro de 2019, no calor da revolta. A jornalista Francisca Quiroga produz, em entrevista a Gabriela Leite e Rôney Rodrigues, uma radiografia do movimento. Descreve sua origem espontânea. Narra como articula-se às pressas, a partir da repressão violenta, uma Plataforma Unidade Social, diversa. Explica que dela faziam parte os principais movimentos sociais chilenos – todos ligados de alguma forma à busca de alternativas à ditadura dos mercados.
Em outro texto, reproduzido em nossa seção Outras Mídias (e publicado originalmente na revista da Escola Politécnica da Fiocruz), uma vasta pesquisa do jornalista André Antunes explica quais são estes movimentos. Entre eles estão os estudantes e recém-formados, que lutam contra as mensalidades escolares (e as dívidas que elas produzem). Figuram os aposentados, que recebem benefícios de miséria, após a entrada em vigor do sistema de capitalização, que elimina as contribuições do Estado e dos patrões. Comparecem os setores que se colocam contra a privatização da Saúde, da distribuição de águas. Antunes explica também, de forma detalhada, como no Chile o fascismo introduziu o neoliberalismo – a partir do golpe de Estado do general Pinochet, em 1973. O plano dos militares era arrasar as medidas redistributivas e socializantes de Salvador Allende. Os economistas da Escola de Chicago – entre eles Paulo Guedes – apresentaram-se para a tarefa. O texto conta como cada contrarreforma foi imposta. O Chile foi o laboratório pioneiro. Só anos mais tarde as mesmas políticas seriam adotadas no Reino Unido de Margaret Thatchcer e nos EUA de Ronald Reagan.
A luta contra o neoliberalismo levou ao surgimento de múltiplos movimentos e coalizões sociais, que fazem trabalho paciente de organização pela base. Mas o processo teve, também, o tempero das revoltas de rua. Elas criaram o caldo que entraria em ebulição em 2019. As mais importantes e conhecidas foram as dos estudantes secundaristas – conhecidas como “pinguinos”, por seus uniformes – e universitários.
Eclodiram em 2006 e 2011. Reivindicavam a revogação da Lei Orgânica de Ensino, que entregou, no governo Pinochet, a maior parte da Educação chilena ao setor privado – e tornou as universidades particularmente caras. Tomaram as ruas. Enfrentaram a polícia. Desafiaram o conservadorismo moral que o país herdara da ditadura. Em 2011, um deles era Gabriel Boric. Estudante de direito, liderança social, seria eleito no ano seguinte presidente da FECh – Federação dos Estudantes da universidade do Chile. Num texto de setembro de 2011, uma reportagem de Rôney Rodrigues, que foi ao Chile, descreve não apenas as razões dos pinguins e universitários, mas o clima de sua revolta nas ruas.
Os movimentos antineoliberais do Chile não couberam, por muito tempo, no sistema partidário do país. Desde o fim da ditadura de Pinochet (em 1990) e 2010, os democratas-cristãos (de Patrick Aylawin) e socialistas (de Michelle Bachelet) revezaram-se no poder. Moderados, distantes das ruas, promoveram uma redemocratização limitada, que não ousou tocar nas estruturas econômicas e políticas herdadas da ditadura.
Em 2016, sob influência das revoltas anteriores, este este cenário começaria a mudar. A transição daria origem a uma nova formação política – a Frente Ampla – e viria em duas etapas. O primeiro foi a formação, no processo para as eleições municipais daquele ano, de listas não-partidárias, encabeçadas muitas vezes por expoentes da geração que fora às ruas. Um texto do economista João Telésforo descreve este processo político, ainda embrionário, e relata a novidade mais importante daquele ano. Em Valparaíso, terceira maior cidade do pais, foi eleito para a prefeitura o advogado Jorge Sharp. Com programa claramente à esquerda, sua candidatura foi lançada por meio de outra novidade política: a realização de “primárias cidadãs” abertas aos ativistas e convocadas por pequenas organizações como Revolución Democratica, Izqueirda Libertaria, Nueva Democracia Movimiento de Pobladores ukamau e Partido Humanista.
Um ano depois, outro passo é descrito por Outras Palavras. Forma-se a Frente Ampla, que dá organicidade a um leque ainda mais vasto de organizações oriundas da luta antineoliberal. Numa entrevista a Joana Salem, é o próprio Gustavo Boric – membro do Movimento Autonomista e então deputado independente – que expõe os objetivos do novo partido. “[Hoje] O neoliberalismo é preservado sob a aparência de que existe uma disputa política, quando na realidade o que há é uma luta pelo poder em si mesma, sem nenhuma vocação de impulsionar verdadeiras transformações. É com isso que a Frente Ampla busca romper”, diz ele.
Conquistada no domingo por uma diferença de pouco mais de 11 pontos percentuais (55,9% x 44,1%) a vitória de Boric foi precedida por um susto. No primeiro turno, em 21 de novembro, o ultradireitista José Antonio Kast, um ex-deputado inexpressivo (como Bolsonaro) e entusiasta tanto do presidente brasileiro quanto do ex-ditador Pinochet, liderou a disputa, com 27,9% dos votos (contra 25,8% de Boric). Como isso foi possível – se a esquerda manteve-se em ascenso político desde o levante de 2019; se há pouco mais de um ano, na eleição para a Convenção Constituinte, as formações de esquerda e os independentes tiveram juntos mais de 2/3 dos delegados; e se agora, em torno de Boric, havia uma coalizão mais vasta que a Frente Ampla, da qual participava o importante Partido Comunista?
Um texto de Noam Titelman ajuda a compreender o fenômeno. Ele aponta dois fatores. O primeiro é a volta do conservadorismo recalcado. “A vertigem gerada em setores sociais por mobilizações e demandas feministas, indígenas e dos despossuídos (…) entrelaçada a imagens de desordem ou mesmo caos” fez emergir “as retroutopias de retorno a um passado de suposta estabilidade e paz social”. Kast capitalizou este sentimento, procurando apresentar-se como representante dos que “preferem o familiar ao desconhecido, os fatos ao mistério, o próximo ao distante, o conveniente ao perfeito”. O segundo fator, diz ele, foram as dificuldades naturais da Convenção Constituinte. Ela tem a tarefa de repensar o país, mas não é vista, por muitos, como fonte real de poder – e sim como um “conclave de ativistas”. E parece não ter sido capaz, até o momento, de projetar uma imagem sólida do futuro coletivo que pretende criar.
O susto de novembro levou a vasta rede de movimentos sociais e políticos de esquerda a um imenso esforço de mobilização. Multiplicaram-se os encontros, as assembleias, as marchas e bicicletadas, as listas setoriais de apoio ao candidato, os encontros desta rede com Boric. A virada se consumou no fim de semana. Sua importância para o cenário da América Latina é evidente. A eventual vitória de um seguidor de Pinochet e Bolsonaro, num país que vem de um vasto processo de mobilização social, sinalizaria que todas as lutas podem ser derrotadas; que a revolta social tende sempre, nos tempos atuais, a ser capturada pela ultradireita.
Em contrapartida, a eleição de um governo à esquerda, no Chile muda o tabuleiro político da região. Inclusive porque ela isola Jair Bolsonaro e Ivan Duque, amplia suas dificuldades internas e torna ainda mais viável uma hipótese tentadora: a de uma vitória das forças antineoliberais tanto na Colômbia (em 29 de maio) quanto no Brasil (em 3 de outubro). Se isso ocorrer, poderá surgir, na região, um conjunto de governos e de processos sociais de mudança mais vasto que o da “onda rosa” de 2000-2016. Incluiria Brasil, Argentina, Venezuela e Bolívia, como antes. Mas, também, Chile, Colômbia e México, cuja importância geopolítica, social, econômica e simbólica é destacada. É com este cenário que parece sonhar o ex-chanceler Celso Amorim, entrevistado na semana passada por Outras Palavras.
A “onda rosa” de 2000-2016 naufragou vítima de golpes de Estado, mas também dos limites que se autoimpôs. Em muitos dos países que a viveram, houve políticas sociais inéditas, mas não reformas estruturais. Boa parte dos governos que a compuseram resistiram a romper com o neoliberalismo fiscal. As condições para isso são muito mais favoráveis, sugere Amorim a mesma entrevista. A força dos Estados Unidos está em declínio. O neoliberalismo fiscal está em crise. Haverá disposição e inteligência para tirar proveito das novas condições.
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Breve roteiro para compreender a virada chilena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU