28 Março 2022
O Papa Francisco muda a Igreja e o mundo e o faz a partir da Basílica de São Pedro, onde, na sexta-feira à tarde, 25 de março, em união com todos os bispos, consagrará a Rússia e a Ucrânia ao imaculado coração de Maria, um mês após a dramática invasão russa.
O comentário é de Marco Grieco, jornalista, publicado por Domani, 25-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na contingência de um pedido feito pelos bispos ucranianos, o pontífice rompe com a visão nacional-identitária do catolicismo, que na história fez dos reis Carlos Magno e Constantino os dióscuros de sua igreja: "Fazer parte de uma sociedade cristã não resolve mais o problema da guerra, porque cada um é livremente responsável pelo que faz. O Papa Francisco amadureceu uma consciência diferente do passado: a história é guiada pelos homens e é necessário intervir nas consciências para mudar seu curso”, explica Daniele Menozzi, professor emérito de história contemporânea da Scuola Normale de Pisa.
Sob essa lente deve ser interpretada a oração de consagração que o pontífice enviou a todos os bispos. Andrea Grillo, professor de teologia do Pontifício Ateneu Sant'Anselmo, explica:
“Formalmente, trata-se de uma oração de consagração: na realidade, transformou-se em uma invocação à misericórdia divina por meio de Maria, que transforma os homens em irmãos. Uma grande invocação a Maria, na qual o papa interpreta as demandas do povo e as suas necessidades”.
Na estrutura, o cerne da oração é uma confissão comum de culpa, da qual o pontífice se torna o intérprete, nunca o juiz. As expressões utilizadas são as mais distantes do conceito de "liberdade de ação oportuna" da encíclica Firmissimam Constantiam (1937), que sancionava a posição do Papa Pio XI diante da chamada "Cristiada", a tomada de posição combativa do Católicos após a repressão anticristã no México.
Como Menozzi aponta, "o papa aqui indica claramente que a guerra é o resultado dos erros dos homens, que não se apropriaram da dramática lição do século XX - 'Esquecemos a lição das tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos nas guerras mundiais'".
Mas ele não esquece as responsabilidades específicas: sem citações diretas, há uma referência tanto à Rússia, que violou o direito internacional, quanto à Ucrânia, envolvida em impulsos nacionalistas - "nos encerramos em interesses nacionalistas".
Nesta confissão mundial de pecado, nem mesmo as Nações Unidas são poupadas - "a Comunidade das Nações" -, que mostraram a incapacidade de manter a harmonia entre os povos. O papa havia mencionado isso explicitamente no Angelus de 6 de março último, quando implorou o retorno ao respeito do direito internacional: "Com o uso do termo ‘Comunidade de Nações’, o papa parece reconhecer que as Nações Unidas se mostraram incapazes de uma governança adequada do planeta. O convite à oração é um chamado universal a todos para que cada um seja um artesão da comunhão planetária”, enfatiza Menozzi.
Era 2015 quando, na sede da ONU, Francisco lembrou que a contribuição da normativa internacional para os direitos humanos, as operações de paz e reconciliação e o desenvolvimento do direito internacional "são luzes que contrastam a escuridão da desordem causada por ambições descontroladas e por egoísmos coletivos", que ressurgiram hoje com preponderância: "Nos tornamos indiferentes a tudo e a todos, exceto a nós mesmos".
No rosto da guerra, também a história não é mais percebida como um desenvolvimento direto da providência, mas como uma consequência direta da ação humana: "Há uma mudança na visão providencialista que ligava a guerra à ira divina e a solução dos conflitos à reconstrução de uma sociedade cristã”, explica o historiador Menozzi, que vê no sintagma “artesãos de comunhão” a chave interpretativa de uma visão comunitária da história, um verdadeiro objetivo a ser buscado. Isso também é evidente na escolha de "Jesus príncipe da paz" justaposto, por sua vez, à realeza titular de viés novecentista do "Cristo Rei".
Como explica o historiador, que dedicou ao tema o ensaio De Cristo Rei à cidade dos homens (em tradução livre):
"O Papa Francisco já havia se distanciado da ideologia política tradicional que ligava o título de Cristo Rei a uma sociedade hierocrática, em continuidade com a reforma litúrgica de Paulo VI que privilegiava a dimensão não política, mas universalista e espiritual da realeza. Em seu pontificado, o papa repetidamente liga a realeza à misericórdia e ao triunfo da fraternidade”.
O teólogo Grillo faz eco a ele: "Por isso, a invocação pode ser entendida como a tradução orante da encíclica Fratelli Tutti". Maria torna-se assim o ponto de intersecção entre uma abscissa comunitária (onde o mundo inteiro, incluindo a Rússia e a Ucrânia, é chamado à fraternidade e uma ordenada que define a comunhão com Deus).
Da ditadura portuguesa de Salazar à consagração em chave anticomunista da Itália em 1959, a prática piedosa ligada a Fátima assumiu uma coloração política ao longo do século XX a ponto de ser aproveitada até pelos populistas em busca de consenso eleitoral. Basta pensar na consagração mariana do Brasil por parte de Jair Bolsonaro em 2019 e da Itália por Matteo Salvini em 2021. O papa rasga essa legitimação religiosa dos impulsos identitários, livrando a própria Maria de uma lógica apologética.
Grillo explica: "Aqui temos uma sutil síntese de três títulos marianos: no dia da Anunciação, a Imaculada Conceição é endereçada como Dolorosa. Os tons medievais da invocação, de Jacopo de Todi a São Bernardo até à menção explícita de Dante no verso: 'Você é uma fonte viva de esperança', ajudam o texto a desistoricizar o culto mariano: 'Francisco moderniza um registro mais antigo, o ressemantiza: nesse sentido, combina perfeitamente a invocação do Stabat mater à experiência moderna de Nossa Senhora de Guadalupe, onde a devoção mariana se liberta da pressão europeia que havia caracterizado a consagração de Fátima no século XX'”.
Menozzi destaca: “O Papa Francisco ressalta a capacidade intercessora de Maria ligada ao seu papel materno. A maternidade sagrada torna-se assim a maternidade para os homens. É uma inversão substancial: enquanto no passado se pedia a intercessão de Maria pelos pecados dos homens que tinham atraído a ira divina, desencadeada com o flagelo da guerra, hoje Maria é invocada para mudar o coração dos homens, os únicos que querem a guerra".
Isso também explica por que, pela primeira vez, a ameaça nuclear é mencionada em uma ladainha: “Responde a uma vontade eclesial de despertar as consciências, ou seja, tornar os homens cientes que a ameaça atômica não se resolve se a definição de sociedade cristã permanece em um nível institucional. A mudança deve ser substancial, e deve ser pedida ao coração dos homens”, acrescenta. É a máxima de Santo Inácio emprestada do biógrafo jesuíta Pedro de Ribadeneira: "Aja como se tudo dependesse de você, sabendo que na realidade tudo depende de Deus". Com todo o respeito à guerra incrementada por um metafísico choque de civilizações, como prospectado pelo patriarca russo Kirill.
Eis a íntegra da oração proferida pelo Papa Francisco no dia 25 de março de 2022, ao consagrar e confiar a humanidade, e especialmente a Rússia e a Ucrânia, ao Imaculado Coração de Maria:
"Ó Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, recorremos a Vós nesta hora de tribulação. Vós sois Mãe, amais-nos e conheceis-nos: de quanto temos no coração, nada Vos é oculto. Mãe de misericórdia, muitas vezes experimentamos a vossa ternura providente, a vossa presença que faz voltar a paz, porque sempre nos guiais para Jesus, Príncipe da paz.
Mas perdemos o caminho da paz. Esquecemos a lição das tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos nas guerras mundiais. Descuidamos os compromissos assumidos como Comunidade das Nações e estamos a atraiçoar os sonhos de paz dos povos e as esperanças dos jovens. Adoecemos de ganância, fechamo-nos em interesses nacionalistas, deixamo-nos ressequir pela indiferença e paralisar pelo egoísmo. Preferimos ignorar Deus, conviver com as nossas falsidades, alimentar a agressividade, suprimir vidas e acumular armas, esquecendo-nos que somos guardiões do nosso próximo e da própria casa comum. Dilaceramos com a guerra o jardim da Terra, ferimos com o pecado o coração do nosso Pai, que nos quer irmãos e irmãs. Tornamo-nos indiferentes a todos e a tudo, exceto a nós mesmos. E, com vergonha, dizemos: perdoai-nos, Senhor!
Na miséria do pecado, das nossas fadigas e fragilidades, no mistério de iniquidade do mal e da guerra, Vós, Mãe Santa, lembrai-nos que Deus não nos abandona, mas continua a olhar-nos com amor, desejoso de nos perdoar e levantar novamente. Foi Ele que Vos deu a nós e colocou no vosso Imaculado Coração um refúgio para a Igreja e para a humanidade. Por bondade divina, estais conosco e conduzis-nos com ternura mesmo nos transes mais apertados da história.
Por isso recorremos a Vós, batemos à porta do vosso Coração, nós os vossos queridos filhos que não Vos cansais de visitar em todo o tempo e convidar à conversão. Nesta hora escura, vinde socorrer-nos e consolar-nos. Repeti a cada um de nós: «Não estou porventura aqui Eu, que sou tua mãe?» Vós sabeis como desfazer os emaranhados do nosso coração e desatar os nós do nosso tempo. Repomos a nossa confiança em Vós. Temos a certeza de que Vós, especialmente no momento da prova, não desprezais as nossas súplicas e vindes em nosso auxílio.
Assim fizestes em Caná da Galileia, quando apressastes a hora da intervenção de Jesus e introduzistes no mundo o seu primeiro sinal. Quando a festa se mudara em tristeza, dissestes-Lhe: «Não têm vinho!» (Jo 2, 3). Ó Mãe, repeti-o mais uma vez a Deus, porque hoje esgotamos o vinho da esperança, desvaneceu-se a alegria, diluiu-se a fraternidade. Perdemos a humanidade, malbaratamos a paz. Tornamo-nos capazes de toda a violência e destruição. Temos necessidade urgente da vossa intervenção materna.
Por isso acolhei, ó Mãe, esta nossa súplica:
Vós, estrela do mar, não nos deixeis naufragar na tempestade da guerra;
Vós, arca da nova aliança, inspirai projetos e caminhos de reconciliação;
Vós, «terra do Céu», trazei de volta ao mundo a concórdia de Deus;
Apagai o ódio, acalmai a vingança, ensinai-nos o perdão;
Libertai-nos da guerra, preservai o mundo da ameaça nuclear;
Rainha do Rosário, despertai em nós a necessidade de rezar e amar;
Rainha da família humana, mostrai aos povos o caminho da fraternidade;
Rainha da paz, alcançai a paz para o mundo.
O vosso pranto, ó Mãe, comova os nossos corações endurecidos. As lágrimas, que por nós derramastes, façam reflorescer este vale que o nosso ódio secou. E, enquanto o rumor das armas não se cala, que a vossa oração nos predisponha para a paz. As vossas mãos maternas acariciem quantos sofrem e fogem sob o peso das bombas. O vosso abraço materno console quantos são obrigados a deixar as suas casas e o seu país. Que o vosso doloroso Coração nos mova à compaixão e estimule a abrir as portas e cuidar da humanidade ferida e descartada.
Santa Mãe de Deus, enquanto estáveis ao pé da cruz, Jesus, ao ver o discípulo junto de Vós, disse-Vos: «Eis o teu filho!» (Jo 19, 26). Assim Vos confiou cada um de nós. Depois disse ao discípulo, a cada um de nós: «Eis a tua mãe!» (19, 27). Mãe, agora queremos acolher-Vos na nossa vida e na nossa história. Nesta hora, a humanidade, exausta e transtornada, está ao pé da cruz convosco. E tem necessidade de se confiar a Vós, de se consagrar a Cristo por vosso intermédio. O povo ucraniano e o povo russo, que Vos veneram com amor, recorrem a Vós, enquanto o vosso Coração palpita por eles e por todos os povos ceifados pela guerra, a fome, a injustiça e a miséria.
Por isso nós, ó Mãe de Deus e nossa, solenemente confiamos e consagramos ao vosso Imaculado Coração nós mesmos, a Igreja e a humanidade inteira, de modo especial a Rússia e a Ucrânia. Acolhei este nosso ato que realizamos com confiança e amor, fazei que cesse a guerra, providenciai ao mundo a paz. O sim que brotou do vosso Coração abriu as portas da história ao Príncipe da Paz; confiamos que mais uma vez, por meio do vosso Coração, virá a paz. Assim a Vós consagramos o futuro da família humana inteira, as necessidades e os anseios dos povos, as angústias e as esperanças do mundo.
Por vosso intermédio, derrame-se sobre a Terra a Misericórdia divina e o doce palpitar da paz volte a marcar as nossas jornadas. Mulher do sim, sobre Quem desceu o Espírito Santo, trazei de volta ao nosso meio a harmonia de Deus. Dessedentai a aridez do nosso coração, Vós que «sois fonte viva de esperança». Tecestes a humanidade para Jesus, fazei de nós artesãos de comunhão. Caminhastes pelas nossas estradas, guiai-nos pelas sendas da paz. Amen."
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Com a consagração da Ucrânia a Maria, Francisco derruba as cortinas de ferro da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU