20 Outubro 2021
"O grito de ajuda de uma nação não pode passar despercebido. Muito menos da Europa que, ao longo dos séculos, dividiu, depredou e por fim abandonou esta magnífica ilha. Várias pessoas me perguntam por que a Itália não reabriu a embaixada no Haiti fechada há vários anos. Eu me pergunto como podemos voltar a caminhar juntos com este povo, descartando as roupas horríveis dos colonizadores e assumindo aquelas amigáveis de companheiros de viagem", escreve Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, em artigo publicado por La Repubblica, 19-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em um país onde 70% da população tem menos de 30 anos, falta tudo: comida, energia elétrica, saúde. Os mais afortunados fogem na esperança de chegar aos Estados Unidos. Para muitos dos que permanecem, os sequestros se tornaram uma das principais fontes de renda. Ontem o sequestro de dezoito missionários protestantes.
Ver com os próprios olhos os números do drama do Haiti desperta consternação por um lado, desdém pelo outro, junto com a urgência de gritar. Quem já leu o relatório 2020 sobre a fome e a desnutrição no mundo elaborado pela FAO sabe que 48,2% da população do Haiti (mais de 5 milhões de pessoas, pouco menos da metade da população do país) sofre de fome crônica; 21,9% das crianças menores de cinco anos sofrem de interrupção de crescimento, 6,5% morrem. 70% da população não tem acesso à assistência sanitária, 60% não tem acesso à eletricidade, 27% vivem abaixo da linha da pobreza ... e poderíamos continuar.
Ao desembarcar em Porto Príncipe, a capital desta nação atormentada, também tenho esses e muitos outros números trágicos em mente que li para me preparar para uma curta viagem. Eu venho de Santo Domingo, e quem fez este voo percebe a fronteira entre os dois países pela mudança de paisagem: verde é aquele de onde se vem e é deserto onde se pousa. E isso já deixa em alerta. Depois, quando o carro que me acompanha começa a cruzar a cidade, o espetáculo de enxames de crianças e montes de lixo me absorve: os números viram rostos (qual entre a ventena de pequeninos que eu vi não vai comemorar os cinco anos?). Nem mesmo as freadas bruscas para evitar os infindáveis buracos das estradas ruins me distraem. No máximo, eles me lembram que devemos manter a velocidade e permanecer perto do carro de escolta: ainda ontem sequestraram dezessete missionários protestantes - em uma das muitas áreas abandonadas do país - e não há necessidade de fazer paradas ou desvios.
Os sequestros tornaram-se, segundo me dizem, uma das principais fontes de renda de muitos jovens que fizeram dessa atividade a única fonte de renda das suas vidas. Praticamente não há perspectivas de trabalho ... o mais próspero é o dos sequestros. 70% da população tem menos de 30 anos! Os jovens mais afortunados, e os poucos que não desistem apesar de tudo, esperam conseguir o diploma o mais rápido possível e voar para os Estados Unidos: eles também querem um pedaço do sonho americano, e não importa se isso significa abandonar o seu país, as suas famílias, os seus amigos. O Haiti parece não ter nada para dar a 70% de sua população que tem menos de 25 anos. E se forem mulheres, o destino é ainda mais triste e cheio de violência: sobreviver à fome nem sempre é o prenúncio de boas notícias. A exploração de garotas e das meninas é um hábito cotidiano.
Mostram-me alguns artigos sobre como escapar do Haiti. Para chegar aos Estados Unidos, um jovem haitiano deve ir à vizinha Santo Domingo e de lá pegar um voo para o Chile, o único país do continente americano que não pede visto. Depois de algumas semanas de trabalho para arrecadar algum dinheiro, ele se põe em marcha e, a pé (sim, a pé!), inicia uma jornada que dura até três meses e atravessa toda a América central. Quem resiste a travessias pelo mar, desfiladeiros de montanha e cruzamento de florestas, encontrará em certo ponto o Rio Grande que marca a fronteira entre o México e os Estados Unidos e o muro que de todas as formas tenta conter essa onda contínua. São dados que eu conheço, mas ouvir as histórias cheias de raiva e decepção e ver as imagens de pessoas arrastadas pelos fluxos das águas do rio levantadas deliberadamente para “limpar” o Rio Grande é outra coisa.
O vazio político e cultural desta nação - a tragédia do assassinato do presidente torna o vazio político ainda mais dramático - desloca a esperança para além de suas fronteiras: todo visitante é bem-vindo e recebe um pedido de ajuda. Eles insistem: aqui falta totalmente a esperança pelo amanhã e o hoje é invivível. Existem exemplos que me são apresentados por ONGs e associações estrangeiras que têm projetos de recuperação e desenvolvimento. Fico comovido com alguns jovens de Santo Egídio que, com a “escola da paz”, se empenham em fazer com que os filhos de um subúrbio na capital cresçam com mais serenidade, na medida do possível. Mas é como uma gota no mar, ou melhor, no deserto de vida e de esperança. Pedem-me que fale sobre eles ao Papa, convencidos de que a sua autoridade moral possa desencadear uma renovação numa população que não consegue encontrar dentro dela uma forma estruturada e fecunda para enfrentar a situação em que se encontra.
Penso no recente discurso que o Papa Francisco dirigiu aos movimentos populares latino-americanos no qual elogiou sua capacidade de acompanhar e fazer crescer um povo e me pergunto se também poderia se aplicar aqui. Vejo um povo resiliente à espera de um novo futuro para seu país.
Vejo o bem que fazem, mesmo a médio prazo, esses projetos que, embora iniciados por estrangeiros, fazem crescer as realidades locais ao pedir-lhes que se tornem protagonistas do seu futuro e, dom ainda mais precioso do que dinheiro e contribuições, oferecem a eles uma razão para fazê-lo.
O grito de socorro desta população jovem e atormentada ressoa cada vez mais na minha cabeça e no meu coração: a partir de hoje tem a forma da mãe muito jovem cujo olhar cruzo numa "favela" da capital, ou do jovem bispo de Anse-à-Veau que me fala sobre o infinito desastre produzido por um terremoto que atingiu a sua cidade.
O grito de ajuda de uma nação não pode passar despercebido. Muito menos da Europa que, ao longo dos séculos, dividiu, depredou e por fim abandonou esta magnífica ilha. Várias pessoas me perguntam por que a Itália não reabriu a embaixada no Haiti fechada há vários anos. Eu me pergunto como podemos voltar a caminhar juntos com este povo, descartando as roupas horríveis dos colonizadores e assumindo aquelas amigáveis de companheiros de viagem. Porque, neste mundo agora tão estreito, só podemos nos salvar juntos: nós, já em idade avançada, e os jovens garotos que ficam largados o dia todo nas ruas fazendo barulho, sem que ninguém faça nada por eles. Apenas juntos nos salvaremos.
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Nas ruas do Haiti entre a fome e a miséria. Jovens desesperados em luta pelo futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU