31 Agosto 2021
Em situação de grande instabilidade desde o assassinato do seu presidente Jovenel Moïse em 7 de julho, o Haiti continua afundando no caos. No dia 14 de agosto, o país foi duramente atingido por um terremoto de magnitude 7,2 que deixou mais de 2.000 mortos e consideráveis danos materiais. Onze anos após o último terremoto dessa magnitude, que matou mais de 200.000 pessoas em 12 de janeiro de 2010, o Haiti deve mais uma vez se reconstruir.
O Estado dispõe dos meios para conduzir tal projeto? Qual é o papel da ajuda internacional? Como evitar a repetição dos erros cometidos em 2010? Jean-Marie Théodat, geógrafo e professor da Universidade Panthéon-Sorbonne e da Universidade do Estado do Haiti, respondeu às nossas perguntas.
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 30-08-2021. A tradução é de André Langer.
Em entrevista concedida ao Le Monde, o senhor insiste na necessidade de não repetir os erros cometidos após o terremoto de 2010. Quais são esses erros?
Em 2010, o cólera foi acidentalmente introduzido no Haiti pelas forças de manutenção da paz então enviadas para lá, provocando uma epidemia e milhares de mortes. No atual contexto sanitário, que sabemos ser particularmente tenso, é fundamental evitar que as missões de socorro e resgate sejam portadoras da disseminação do coronavírus em maior escala na ilha. O país, já extremamente vulnerável, teria dificuldade em lidar com o estado deplorável de seu sistema de saúde. A introdução de qualquer variante agravaria ainda mais o quadro em que já existem catástrofes suficientes até o momento.
O segundo erro consistiu, em 2010, em canalizar a ajuda internacional apenas através das ONGs. Elas são obviamente muito úteis para o Haiti, mas contar apenas com elas é ignorar o Estado e diluir suas responsabilidades. É também uma forma de os doadores ocidentais recuperarem parcialmente o seu investimento, uma vez que, como consequência, a ajuda de emergência e o esforço de reconstrução dependem mais de especialistas internacionais contratados por ONGs do que da mão de obra local.
Assim, paradoxalmente, a ajuda às vezes pode ter um efeito deletério. Para dar apenas um exemplo: hoje é difícil encontrar clínicos gerais em Porto Príncipe porque a sua atividade enfrenta a concorrência dos serviços oferecidos pelas ONGs. Tornou-se mais interessante ir a uma clínica da missão militar cubana presente no Haiti do que ao médico de família, e por uma razão muito simples: o primeiro é gratuito, o segundo pago!
O imperativo hoje é fortalecer o Estado haitiano, não fazer sem ele a todo custo. Atenção, isso não significa que devemos passar um cheque em branco ao poder local e seus representantes, muitos dos quais são corruptos.
O primeiro-ministro Ariel Henry, cujo governo assumiu a presidência interina desde o assassinato do presidente em exercício, quer que a ajuda externa seja coordenada pela defesa civil. Esta é uma solução pertinente?
A defesa civil é da responsabilidade do ministro do Interior e destina-se a intervir em caso de catástrofe ou de crise. Como tal, seria interessante que ela coordene o esforço de emergência, de reconstrução e redução de vulnerabilidades que posteriormente será necessário para evitar a recorrência de crises similares. Mas este corpo está, como muitas instituições no país, morrendo.
É preciso dar-lhe novos meios com novas exigências de resultados, dotá-lo de recursos humanos adicionais e dos meios para realizar trabalhos estatísticos e cartográficos de qualidade, sem os quais não poderá cumprir a contento a sua missão. O desafio para as instituições internacionais preocupadas com a prestação de ajuda ao Haiti é, portanto, tornar este serviço mais eficaz, revitalizá-lo.
O Haiti pode evitar a reprodução destes desastres climáticos?
Devido à latitude da nossa ilha e de sua localização no arquipélago, o Haiti está e continuará sujeito, como as outras Antilhas, a um duplo risco sísmico e climático. Como estamos na intersecção de duas placas tectônicas, sempre haverá terremotos, e isso não é nenhum mistério. Duas grandes falhas atravessam a ilha. Uma, ao norte, ameaça a segunda maior cidade, Cap-Haitien, como uma espada de Dâmocles. A outra, ao sul, que passa pela península de Bahoruco e Cap Tiburon, devastou Porto Príncipe em 2010.
A localização entre os trópicos e o equador também explica a frequência dos ciclones, que se sucedem entre junho e novembro com uma intensidade variável. No contexto do aquecimento global, não apenas o mau tempo se tornará mais frequente, mas também mais violento. É preciso se preparar para isso.
Nossos vizinhos cubanos, martinicanos e dominicanos estão na mesma situação. Mas a diferença é que esses países, ao contrário do Haiti, dispõem de meios para se equipar com infraestruturas e habitações mais sólidas e têm planos de abrigo para as populações em caso de perigo muito mais eficientes. No Haiti, a confiança no Estado é tão baixa e desacreditada que a população não respeita as ordens oficiais de evacuação quando surge a oportunidade, como em 2016 com o furacão Matthew.
O ciclone devastou Grand'Anse [no extremo oeste do país, nota do editor], mas deixou Cuba intacta, onde a ordem de evacuação deslocou mais de um milhão de pessoas para o interior em abrigos com o necessário para acomodá-las. No Haiti não havia abrigos. A população, portanto, teve que suportar os ataques diluviais sem vacilar. Houve mais de 500 mortos e danos estimados em dois bilhões de dólares.
O presidente Jovenel Moïse foi assassinado no início de julho. Nesse contexto, o governo interino é capaz de lidar com a crise humanitária que está atingindo o país? Em que isso se diferencia em relação à situação que prevalecia em 2010?
Em 2010 a situação já tinha se deteriorado bastante no Haiti, mas houve uma pequena melhora econômica e certa estabilidade política com pelo menos um presidente no cargo. Além disso, o ambiente internacional favorecia uma certa generosidade para com o Haiti, que hoje se encontra muito mais isolado. Os Estados Unidos estão enfraquecidos pela derrocada no Afeganistão, a Europa pelo afluxo de refugiados em seu solo, a China preocupa-se sobretudo com sua própria expansão global e a Rússia de Vladimir Putin não colocou a situação haitiana em sua lista de prioridades. Tudo isso é obviamente dificultado ainda mais pelo contexto sanitário relacionado à pandemia da Covid-19.
Este isolamento dá rédea solta à expressão dos apetites mais ferozes e à proliferação dos comportamentos mais desumanos. Para citar apenas alguns exemplos, sequestros de médicos foram noticiados no Haiti nas últimas semanas, com a ajuda humanitária sendo desviada por pessoas que não necessitam dela prioritariamente. Essa violência é orquestrada por redes mafiosas internacionais que operam dos Andes até a Flórida, passando pelas Antilhas. Elas usam o Haiti como uma plataforma privilegiada em seu tráfico de drogas e armas.
A democracia haitiana é fagocitada por essas forças sombrias que, sob o pretexto das liberdades e do liberalismo, transformaram o Estado em uma marionete. Obviamente, isso não é de ontem. É o resultado de um longo processo de desconstrução do Estado iniciado durante a ditadura dos Duvalier [o pai e depois o filho estiveram no poder por 30 anos, de 1957 a 1986, nota do editor].
As próximas eleições presidenciais e legislativas devem ocorrer em novembro. O que podemos esperar? Quais são para o senhor as prioridades para os próximos meses?
As eleições foram efetivamente adiadas para novembro [o primeiro turno estava originalmente previsto para ocorrer setembro, nota do editor], mas é improvável que possam realmente acontecer nesse momento. Muitos cidadãos provavelmente ainda ficarão presos em suas localidades, sem acesso a uma seção eleitoral próxima. Podemos razoavelmente dizer a eles que sua voz não conta?
Enquanto nem todos estiverem em condições de votar, faz sentido fazer uma pausa e deixar que as autoridades cuidem do dia a dia. Precisamos de perspectiva para poder organizar eleições que sejam honestas, transparentes e livres de qualquer influência estrangeira. Na pressa, corremos o risco de construir um país de qualquer jeito e, mais uma vez, dar um mandato duradouro aos responsáveis pelo desastre atual.
De onde o Estado haitiano obtém seus recursos?
A ajuda oficial ao desenvolvimento representa 60% do orçamento do Estado. O resto é baseado principalmente em impostos. Só que o Estado consegue, por exemplo, arrecadar apenas 10% do valor do imposto de renda devido. A maior parte da tributação é, portanto, baseada em impostos indiretos sobre o consumo, para os quais os mais pobres contribuem mais do que os mais ricos. Claramente, o Estado não tem os meios para agir. Além disso, um terço do produto interno bruto haitiano é gerado por remessas da diáspora que vive no exterior. Tudo isso deixa o país em situação de falência política, econômica, institucional e ambiental.
Quais são os recursos aos quais o Haiti poderia recorrer para encontrar um novo alento?
Sua maior riqueza é natural. O Haiti é dotado de ambientes que permitem a produção de uma variedade excepcional de alimentos. As montanhas, as planícies e os vales oferecem uma gama de produtos temperados e tropicais que podem ser cultivados com bons rendimentos, quando as técnicas de cultivo são adaptadas. O mar tem sido um recurso inexplorado desde a colonização por razões óbvias ligadas à impossibilidade de permitir que os marinheiros escravos adentrem o mar...
Até as décadas de 1980 e 1990, éramos quase autossuficientes. Certamente não era uma garantia de desenvolvimento, mas pelo menos era a certeza de evitar a fome. Poderíamos viver com o produto de nossos campos. Tudo isso foi minado por uma abertura excessiva aos mercados internacionais, que resultou na eliminação da produção doméstica pela produção estrangeira.
Como, de fato, manter uma agricultura viável no país, quando agora abundam em nossos mercados o arroz importado ou doado por ajudas internacionais? Na verdade, os camponeses são obrigados a deixar suas terras e vir morar nas favelas da capital. Hoje, no Haiti, o açúcar consumido, às vezes até o café ou o rum, que é a nossa bebida nacional, vem de nossos vizinhos. Esta é uma situação absurda.
No plano humano, temos uma população muito jovem que é uma força de trabalho e também uma reserva de inteligência. Mas, infelizmente, não tem meios para receber uma formação adequada, uma vez que, exceto possivelmente em Porto Príncipe, onde todos os esforços foram concentrados, os estabelecimentos de formação são insuficientes. E mesmo depois de formados, nossos jovens nos deixam. Sinal desse êxodo: 85% dos haitianos com um diploma de ensino superior ou igual ao mestrado vivem no exterior. Na França, para se ter uma ideia, apenas 15% dos diplomados neste nível emigraram.
O senhor está mais otimista ou mais pessimista em relação à capacidade de recuperação do Haiti?
Esta é a segunda vez que me faço essa pergunta. Em 2010, respondi com grande entusiasmo e, onze anos depois, percebi que estava errado. Perdemos a oportunidade de dar esperança aos mais pobres e aos mais jovens que fogem do país aos milhares. O país tornou-se um covil de bandidos que mantêm como reféns aqueles que não podiam fugir. Os princípios de liberdade e igualdade são desprezados. O diagnóstico é doloroso, mas mesmo assim necessário.
No entanto, os desastres agem sobre os haitianos como uma injeção de coragem. Todo mundo toma isso como resiliência; eu preferiria dizer que é um legado de nossa independência heroica. Resta ver o que coletivamente conseguimos fazer com isso.
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“O Estado haitiano está em situação de falência econômica, política e ambiental”. Entrevista com Jean-Marie Théodat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU