08 Julho 2021
O conflito entre oligarquias que levou ao autogolpe de Moïse. Por que velha mídia tenta acobertá-lo. O que diz o Judiciário. O papel dos EUA, França e Canadá na crise haitiana. Uma análise em profundidade, para além da cobertura eurocêntrica.
O artigo é de Lautaro Rivara, publicado por ARG Medios e reproduzido por Brasil de Fato, 25-02-2021. A tradução é de Luiza Mançano.
Em 7 de fevereiro, o presidente Jovenel Moïse, agora interino, consumou no Haiti um autogolpe após o período de cinco anos de governo estipulado na Constituição do país ter expirado. Assim, Moïse coroa uma longa deriva autoritária que o confrontou e o confronta com a permanente mobilização das classes populares, da oposição política e de todos os poderes e instituições do Estado. Em recente entrevista concedida por Moïse ao jornal espanhol El País, em algumas intervenções públicas de membros de seu governo e na voz de alguns comentaristas sobre a situação do Haiti, circularam uma série de teses que distorcem a situação atual e a crise em curso no país caribenho ao ponto de torná-la incompreensível. Algumas delas são risíveis, outras são criativas mas não rigorosas, e a maioria delas são apenas a reciclagem de velhos preconceitos racistas, eurocêntricos e coloniais. Nas linhas a seguir, tentaremos acertar contas com algumas dessas ideias.
A crise no Haiti não é abstrata, nem metafísica, nem eterna. Ela tem datas, causas e responsabilidades específicas. Em primeiro lugar, a longa história de ocupações, interferências e golpes de Estado com apoio internacional, que fizeram do país uma neocolônia francesa apenas alguns anos após a Revolução de 1804, e depois uma neocolônia norte-americana após a ocupação dos fuzileiros navais ianques entre 1915 e 1934. Em termos gerais, os grandes protagonistas desta política de recolonização e tutela têm sido a tríade composta pelos Estados Unidos, França – que nunca abandonou realmente a ilha – e Canadá – talvez o país que pratica uma política imperialista mais invisível e desleal em nosso continente, sempre por trás de suas corporações mineradoras. Mas nos últimos 50 anos, organizações multilaterais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a ONU e grupos interessados, como o Grupo Central – formado por países autodenominados “amigos do Haiti”, em sua maioria europeus, com interesses mineradores, migratórios, financeiros ou geopolíticos no país, também desempenharam um papel importante na mediação e no desempenho de um papel de liderança. O surgimento do chamado “intervencionismo humanitário” no período pós Guerra Fria, ou ideologias similares como a “responsabilidade de proteger” (R2P na sigla em inglês) ou o “princípio da não indiferença”, foram inseridas no laboratório haitiano, nas inúmeras missões civis, policiais e militares que desembarcaram na costa oeste da ilha, desde a pioneira MICIVIH em 1993, até a tristemente famosa MINUSTAH durante o período 2004-2017. Os louváveis objetivos declarados por essas missões e agências têm sido a paz, a estabilidade, a governança, a justiça, a reconstrução e o desenvolvimento. Entretanto, o Haiti, impedido de seguir uma política fundamentalmente soberana, regrediu em todas essas áreas e indicadores nos últimos 30 anos.
Aqueles que no Norte global que gostam de apontar e medir os deficits democráticos dos países periféricos com a régua de suas robustas democracias liberais – sem importar o fato de que nelas ainda parasitam monarcas ou correspondentes de tempos não republicanos – geralmente param para apontar o número de governos e presidentes que o Haiti teve nos últimos anos como um sintoma inequívoco de instabilidade política. Entretanto, eles tendem a não mencionar que, desde 1957, todos os governos do Haiti – com exceção do primeiro governo do padre progressista Jean-Bertrand Aristide e mais tarde de seu deputado René Préval – chegaram ao Palácio Nacional com a mediação, intervenção, golpe ou ocupação promovidas por sucessivas administrações americanas, sejam elas democratas ou republicanas. A longa lista de figuras executivas preparadas pelos países ocidentais inclui um ditador vitalício, seu filho adolescente, efêmeros tiranos, um general aposentado, um ex-ministro, um pastor evangélico, um contador, um cantor de konpa, um empresário bananeiro, etc.
O Haiti não é um “estado falido”, nem um “estado frágil”, nem uma “entidade caótica ingovernável”, nem sua população tem uma propensão natural e genética para o caos, a instabilidade e o desgoverno. Pelo contrário, um entusiasmo democrático incomum e uma verdadeira enxurrada de votos levaram ao poder o primeiro presidente progressista da região, mesmo antes do início da chamada “primavera latino-americana”. Nesta eleição fundamental de 1990, 75% do eleitorado – em eleições não obrigatórias – deram a Aristide uma vitória retumbante com 67,39% dos votos. Mesmo após o golpe que o tirou do poder – com a participação direta dos Estados Unidos – em uma nova eleição realizada em 2000, o povo haitiano demonstrou novamente seu compromisso democrático com uma participação de cerca de 50%, elegendo novamente Aristide por 91,7% dos votos válidos. Em 2004, Aristide foi novamente derrubado, desta vez pela ação de uma Força Provisória Multinacional composta por tropas dos Estados Unidos, França e Canadá.
Tanto a administração republicana quanto a democrata têm seguido as seguintes estratégias no país, sem distinção: destruir sua economia agrícola e agroindustrial, assim como privatizar poucas empresas nacionais no Haiti; liberalizar o comércio e as finanças; aplicar as prescrições neoliberais, como a eliminação dos subsídios promovida pelo Fundo Monetário Internacional; tornar o país um nó periférico nas cadeias globais de valor, particularmente nos setores têxtil e eletrônico; promover, apoiar e financiar golpes; organizar e assessorar missões internacionais de ocupação; infiltrar mercenários e paramilitares, etc. Provavelmente e paradoxalmente, talvez nenhum presidente estadunidense tenha causado tantos danos ao país quanto o carismático e progressista Bill Clinton, copresidente da Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (IHRC) que desviou para o setor privado grande parte do dinheiro enviado ao país pela cooperação internacional após o devastador terremoto de 12 de janeiro de 2010. Como afirma Clinton em sua própria autocrítica, foi o principal responsável pela destruição da economia do arroz do país, o que levou à ruína agrícola e induziu o êxodo de centenas de milhares de camponeses que mais tarde se transformaram em balseros [pessoas que emigram ilegalmente em embarcações precárias e improvisadas].
Como em tantos outros aspectos e em relação a tantos outros países, o que podemos ver sob a nova e reluzente administração democrática é uma mudança de métodos, mas não de estratégias, na tentativa de mitigar os custos de algumas alianças que são tão sensíveis quanto indefensáveis. A interrupção da venda de armas à Arábia Saudita para desacelerar sua ofensiva no Iêmen, a caracterização de Honduras de Juan Orlando Hernández como um “narcoestado” pelos próprios funcionários do establishment e alguns limites e condições “democráticas” impostas ao governo de Jovenel Moïse devem ser lidos na mesma linha. No Haiti, em particular, o governo PHTK foi cominado a retomar uma certa ordem constitucional. Para este fim, foi solicitada uma maratona eleitoral, embora por um Conselho Eleitoral Provisório – permanentemente provisório, na realidade – nomeado unilateralmente pelo Executivo; certo desconforto foi manifestado sobre o fechamento do Parlamento em janeiro de 2020; houve apelos para a libertação de alguns juízes do Tribunal de Cassação acusados de sedição; e a criação de uma opaca Agência Nacional de Inteligência, bem como decretos sobre segurança e “antiterrorismo” foram apontados como contrários às liberdades civis e aos direitos humanos. E mesmo sob a Lei Magnistky, dois funcionários do governo e um chefe de quadrilha aliado ao governo foram punidos no início deste ano por seu envolvimento no Massacre de La Saline cometido em 2018. Julie Chung, vice-secretária adjunta da Secretaria de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado dos EUA, elevou o tom das declarações, contestando o apoio sem reservas de outros funcionários estadunidenses a Moïse: “Estou alarmada com as recentes ações autoritárias e antidemocráticas, desde a destituição unilateral e nomeações de juízes do Tribunal de Cassação até ataques contra jornalistas”. Ela acrescentou que seu país “não ficará em silêncio quando as instituições democráticas e a sociedade civil forem atacadas” e que condenam “todas as tentativas de minar a democracia através da violência, da supressão das liberdades civis e da intimidação”.
Por enquanto, o esboço destas coordenadas é uma chamada explícita para “cuidar dos formatos”, o que estabelece uma série de condições para o cartão de imunidade que Donald Trump havia concedido a Moïse quando ele consumou sua virada contra a República Bolivariana da Venezuela em janeiro de 2019. A etapa insurrecional desatada em julho de 2018, prolongada e superdivulgada apesar do cerco da mídia, o apelo do Departamento de Estado dos EUA diz respeito a uma normalização rápida e forçada, mesmo que seja através de eleições condicionadas e fraudulentas. Políticas de baixo custo e alto impacto: essa parece ser a fórmula globalista e multicultural para recuperar a confiança e margem na geopolítica da América Latina, do Caribe e do mundo.
Se tal discrepância existiu efetivamente, já foi esclarecida pelo Poder Judiciário, o poder encarregado de interpretar as leis em qualquer República que se preze. No Haiti, como em qualquer outro país soberano – ou quando não seja uma colônia formal – existem tribunais competentes encarregados de resolver as discrepâncias constitucionais. No dia 7 de fevereiro, o Conselho Superior do Poder Judiciário (CSPJ) emitiu uma sentença sobre a data final do governo de Jovenel Moïse, assentando uma firme posição entre a interpretação do próprio governo e seus aliados ocidentais, e a interpretação que fizeram, entre outros atores, o Parlamento, os sindicatos e centrais sindicais do país, as câmaras empresariais, a Conferência Episcopal e os setores evangélicos, a Ordem dos Advogados, diversas agrupações da diáspora, organizações feministas, movimento de mulheres, sociais, rurais e urbanos, e um longo etc. O CSPJ fez uma interpretação limitante do Artigo 134, inciso 2, da Constituição de 1987, estabelecendo que a presidência de Moïse terminou no último 7 de fevereiro, após 5 anos da realização das eleições que em 2016 o levaram ao poder, sendo improcedente a extensão de seu mandato por adiamento de uma posse formal. É paradoxal que esta mesma interpretação restritiva da Carta Magna tenha sido utilizada pelo próprio Moïse para fechar o Parlamento em janeiro de 2020, quando dois terços dos deputados e o conjunto dos senadores encerraram o prazo de seus mandatos, sem a possibilidade de renová-los perante a incapacidade do governo para organizar eleições legislativas previstas para 2019.
Portanto, o que define a crise política do Haiti não é um enfrentamento entre poderes – como coloca Moïse- ou uma crise institucional. O que se observa é a extensão ilegal de um mandato presidente que expirou. Isto, somado aos atentados contra os poderes do Estado por parte do Executivo, confirma a consolidação de um regime interino, supralegal e anticonstitucional por completo, que governa por decreto, carece de orçamento público, aprsiona e nomeia juízes de forma improcedente, persegue seus opositores politicamente e agora propõe uma Reforma Constitucional expedita para ratificar não o Estado de Direito, mas sim o estado de forças existente no país.
É simplesmente tão impossível afirmar isto quanto afirmar exatamente o contrário. Até o momento, o governo de Moïse não apresentou nenhuma prova para apoiar a acusação de tentativa de assassinato contra ele, o que levou à prisão de Ivickel Dabrésil, juiz do Tribunal de Cassação, Marie Louise Gauthier, inspetora-geral da Polícia Nacional, e outras 20 pessoas. Como prova fidedigna, foram apresentados aos meios nacionais e internacionais dois fuzis automáticas, duas escopetas calibre 12, um facão, dinheiro e alguns telefones, o que demonstraria uma capacidade financeira e operativa suspeitosamente precária por parte dos insubordinados, quando não uma operação tosca por parte de um governo que tenta se vitimizar. Tampouco houve explicações sobre a prisão, na República Dominicana, de Ralph Youry Chevry, ex prefeito de Porto Príncipe e uma conhecida figura da oposição, que denunciou que poderia ser assassinado caso fosse deportado para seu país.
Em relação à acusação de golpismo contra um setor da oposição, tal golpe não poderia existir legalmente. Poderia ser lido antes como um processo de insubordinação civil, já que a quebra da ordem constitucional esteve a cargo do presidente interino Jovenel Moïse. O oposto seria argumentar, ridiculamente, que o movimento democrático haitiano dos anos 80 foi um golpe ao derrubar a ditadura pela vida de Jean-Claude Duvalier. Poderia ser lido antes como um processo de insubordinação civil, já que a ruptura da ordem constitucional era de responsabilidade do presidente de facto Jovenel Moïse. O oposto seria argumentar, ridiculamente, que o movimento democrático haitiano dos anos 80 foi um golpe ao derrubar a ditadura pela vida de Jean-Claude Duvalier. Pelo contrário, o que estamos vendo no Haiti é o início de um esquema de duplo comando, já que o governo Moïse se agarra ao poder e mantém o controle das fracas alavancas do Estado haitiano – em particular, de suas forças repressivas – enquanto a grande maioria dos setores da sociedade civil e da oposição política decidiram nomear um presidente provisório – o juiz Joseph Mécène Jean Louis – com o objetivo de comandar o que eles chamam de “transição de ruptura” e de convocar eleições transparentes e democráticas a médio prazo. No meio, o governo interino e um setor da oposição mais conservadora estão competindo pelo favor da todo-poderosa embaixada dos EUA, como evidenciado pela comunicação de Patrick Leahy, presidente pró-tempore do Senado, ao Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, solicitando seu apoio para a transição.
Evidentemente, por trás da eleição de Mécène Jean Louis há uma luta de poder entre diferentes setores da oposição, desde movimentos sociais até partidos conservadores e antigos membros da casta política. Uma luta na qual, sem dúvida, o corredor com maior vantagem seria a formação de centro-direita do Setor Democrático e Popular liderada pelo advogado André Michel, embora ele esteja longe de ter o controle decisivo das mobilizações de rua que poderiam mudar a correlação de forças num futuro imediato. As propostas soberanistas e antineoliberais que enfatizam o elemento de ruptura e não apenas o elemento de transição são de responsabilidade dos movimentos da CLOC-Via Campesina e da Articulação dos Movimentos Sociais rumo à ALBA, que junto com outras organizações e partidos construíram um pólo de oposição mais radical chamado Fórum Patriótico Popular. Apesar do que Mécène Jean Louis representa neste delicado equilíbrio de forças e além de sua real capacidade de agência, o que está claro é a improcedência de descrevê-lo como uma espécie de presidente “autoproclamado”, desenhando analogias confusas e inapropriadas com o caso de Juan Guaidó na Venezuela.
Isto se deve a pelo menos três fatos fundamentais: porque o consenso social e as forças progressistas não estão aqui do lado do partido governista, mas daqueles que exigem a saída de Moïse; porque o magistrado não foi autoproclamado de forma sediciosa diante de um governo democraticamente constituído, mas eleito pela oposição social e política para preencher o vazio legal diante da consumação de um autogolpe; E fundamentalmente porque a política dos EUA, a verdadeira e fiel balança do equilíbrio no país, está inclinada, pelo menos por enquanto, para a continuidade do governo PHTK e não para a construção de um governo de transição, muito menos para uma ruptura que ameaça seu domínio sobre a geopolítica da Bacia do Caribe.
Ao contrário do senso comum, os níveis de violência dos cidadãos no Haiti são relativamente baixos, pelo menos na comparação com o Caribe e a América Latina. Especialmente se assumirmos o excelente terreno fértil gerado pelas condições generalizadas de pobreza, desemprego, marginalidade, fome e desigualdade. Por razões que diferentes intelectuais do país iluminaram com as suas pesquisas, a sociedade haitiana é uma comunidade humana particularmente homogênea e integrada em termos sociais, linguísticos e culturais, com elementos importantes como a existência abrangente de uma cultura popular muito rica, de uma língua nacional e popular singular, como o crioulo haitiano, ou de formas de organização socioterritorial típicas da vida camponesa. Isto não significa, é claro, que não exista violência no Haiti. Pelo contrário, o que observamos no país são altos índices de violência política organizada. Com isto queremos dizer que os atores da violência mais flagrante no país – notadamente grupos criminosos, quadrilhas armadas, paramilitares – são atores organicamente ligados ao poder político, ao Estado e às potências internacionais. A maioria destes grupos foi criada e financiada por senadores, ministros e presidentes, se não diretamente incentivada pelas potências imperialistas.
É por isso que é impossível entender a atual onda de sequestros que está varrendo o país, os sucessivos massacres em comunidades rurais ou bairros populares da capital – Carrefour Feuilles, La Saline, Bel Air, a lista é extensa sob o governo Moïse – sem entender seus fundamentos e seus objetivos políticos. Trata-se de desmobilizar a população que em julho de 2018 tomou massivamente as ruas do país, gerando uma insurreição social de tal volume e radicalismo que é, até hoje, impossível de administrar e reprimir pelas fracas forças de segurança do Estado haitiano. Suas Forças Armadas, dissolvidas por Aristide em 1996 e nominalmente reconstruídas em 2017, não estão realmente operacionais. A Polícia Nacional, a principal força de segurança, tem poucos e carece de capacidade logística. Por sua vez, a ONU retirou seu último pessoal policial e militar com a partida da MINUJUSTH em 2019. A questão em sotto voce do establishment local e internacional é como reprimir e desmobilizar as classes populares que levaram à própria interrupção do ciclo de acumulação de capital em numerosas ocasiões, forçando a paralisação do comércio, a suspensão das importações, ameaçando o fluxo de remessas e produzindo um foco de perigosa instabilidade geopolítica a poucos quilômetros de Cuba, Venezuela, no Canal do Panamá e nas costas da Flórida. Isso contradiz as próprias afirmações de Moïse em sua entrevista ao El País, e repetida por seus aliados, quando ele se refere à existência de “pequenos bandos da oposição mobilizada”. Basta mencionar que o pacote do FMI e seu decreto para eliminar os subsídios aos combustíveis, gerou em julho de 2018 uma mobilização estimada de dois milhões de pessoas – num país de 11 – uma figura sideral e sem precedentes em termos históricos se extrapolarmos para a dimensão de países como o Brasil ou os Estados Unidos.
Considerando que uma nova missão de ocupação é muito cara em termos políticos e financeiros – apesar de nunca faltarem lobistas para esta causa -, pesando sobre ela o fardo dos numerosos crimes e escândalos da MINUSTAH – violência sexual generalizada, massacres, a introdução de uma epidemia de cólera, etc. – e considerando que as ações da Polícia Nacional são muito deficientes, a última aposta, a partir da administração Trump, pareceu ser a “via Líbia”, ou utilizar referências mais próximas, elementos combinados do modelo e práticas colombianas, hondurenhas e salvadorenhas da Guerra Híbrida aplicadas sistematicamente contra a Venezuela. É claro que ninguém aqui está considerando atacar diretamente os fundamentos sociais e econômicos do profundo mal-estar social que levou a grande maioria da população haitiana ao limiar da reprodução da vida, catapultando-a uma e outra vez nas ruas do país. A única resposta parece ser a destruição completa do robusto tecido social haitiano que sustenta e reproduz suas forças organizadas e sua capacidade de mobilização política, em meio às condições materiais mais adversas de todo o hemisfério.
É por isso que o governo teceu uma aliança firme com uma espécie de coalizão de grupos criminosos chamada “G9”, que hoje cogoverna o território haitiano, em certas regiões até mesmo com um domínio mais substancial do que o do próprio Estado. A panóplia de fundações, agências de cooperação, ONGs coloniais e igrejas neopentecostais norte-americanas que tentaram cooptar e desmobilizar movimentos rurais e urbanos, difundindo teorias coloniais, teologias mercantis e concepções pseudo-desenvolvimentistas e competindo pelo que consideram uma clientela cativa, não é mais suficiente. O poder duro mas invisível é exercido através da promoção do tráfico de drogas, do crime organizado e do paramilitarismo. Basta lembrar os casos comprovados de infiltração de paramilitares – norte-americanos, haitianos, sérvios, russos, mas todos eles contratados ou ex-militares das Forças Armadas dos Estados Unidos – que foram detidos no Aeroporto Internacional Toussaint Louverture carregados com armamento de alta potência e equipamentos avançados de telecomunicações. É até impossível compreender a surpreendente facilidade com que as armas circulam em um país que apenas 30 anos atrás estava praticamente e milagrosamente livre delas, se não fosse pelos recursos injetados pelo exterior, ou pelo próprio tráfego gerado pelos capacetes azuis durante os anos dourados da MINUSTAH.
Na entrevista mencionada acima, Moïse afirmou que por trás da oposição a seu governo estava a “oligarquia que quer tomar o poder”. Antes de tudo, é preciso dizer que a oligarquia no Haiti nunca deixou o poder, e nunca houve nada que se assemelhasse a uma burguesia liberal, progressista e industrial, além da transferência do poder da tradicional burguesia mulata para uma burguesia negra consumada pela ditadura de François Duvalier. Em particular, o que um escritor haitiano eloquentemente chamou de “elite repugnante” é composto de uma classe oligárquica, mas acima de tudo de uma burguesia importadora que se reproduz de forma parasitária através do controle da alfândega do país. Uma burguesia que não produz nada, consome tudo e quase não vive em seu próprio país. Além disso, o fato risível de Moïse denunciar a oligarquia de tentar apropriar-se do poder é como Guillermo Lasso acusar os banqueiros de querer governar o Equador – de novo -, ou Álvaro Uribe fazer acusações idênticas aos traficantes de drogas colombianos. O próprio Moïse é um típico empresário do setor bananeiro, catapultado para a política a partir do seu capital acumulado no setor agrícola e agroindustrial, com empresas comprovadamente fraudulentas como a AGRITRANS, participantes de vários desfalques do erário público.
Sem dúvida, nem todos os interessados na saída de Moïse são camponeses, migrantes, classe média ou os pobres urbanos. É claro que existe um setor da classe dominante haitiana que também está trabalhando para substituí-lo, mas neste caso são os setores que são, a rigor, menos oligárquicos. Em particular, o governo tentou construir um épico popular tardio e pouco convincente através de seu confronto com Dimitri Vorbe em particular e com empresas de eletricidade como a Sogener em geral. De fato, a proposta da campanha estrela de Moïse era trazer energia para todas as residências “24/24”, dado que o serviço de eletricidade mal chega a 40% da população, e considerando que mesmo na capital seu serviço é deficiente e intermitente. Apesar das lutas pelo controle da empresa elétrica nacional (EDH), seria ingênuo fingir que as outras frações da classe dominante haitiana não operam contra um governo incapaz de oferecer as mínimas garantias de estabilidade para o processo de acumulação, bem como elaborar teorias conspiratórias que tentam culpar um ou dois operadores por uma crise orgânica de hegemonia que se expressa em todas as áreas e se baseia, principalmente, na incessante mobilização das classes populares e na permanente deterioração de suas condições de vida.
Esta declaração é uma faca de dois gumes. Algo semelhante é declarado em um editorial recente no The New York Times intitulado “O Haiti precisa de ajuda”, onde se prevê “uma solução” na qual “poderes externos – alguma combinação dos Estados Unidos, da OEA, da ONU e da União Europeia” teriam algum tipo de influência – ainda mais notória – sobre o país. Mas um país soberano não é uma criança, para andar por aí exigindo acompanhamento e tutela. Menos ainda se foi o país que aboliu a escravidão de forma pioneira, que criou uma filosofia humanista que eclipsaria a das próprias revoluções burguesas, que consumou a primeira revolução social no hemisfério e que construiu a primeira República independente ao sul do Rio Bravo. Mas também é impossível isolar os chamados “problemas do Haiti” como se fosse uma cepa de vírus, sem enquadrá-los na geopolítica regional e global e na longa história de interferência que já desenvolvemos. Para dar um exemplo recente e prático: estamos convencidos de que nenhum governo teria suportado um único dia a mobilização ativa e radical de um quinto de sua população sem o apoio político, financeiro, diplomático e eventualmente militar dos Estados Unidos e de organizações multilaterais. Nenhum governo, de qualquer caráter, teria sido capaz de superar o tremor de uma coalizão de oposição que inclui praticamente todos os setores sociais e todas as forças políticas do país. Ainda hoje, Moïse terminaria seu mandato imediatamente se não tivesse a promessa dos Estados Unidos de uma salvaguarda, dinheiro e um visto para ele e toda sua família uma vez consumada sua saída do poder, dado que o destino habitual que o país tem dado a presidentes ainda menos impopulares é o linchamento em praça pública. Nem as eleições e a Reforma Constitucional proposta – a última tentativa de recuperar alguma legitimidade – poderiam ocorrer, como é evidente, sem o apoio financeiro, logístico e técnico desses mesmos países e organizações que durante anos controlaram o sistema eleitoral haitiano.
Portanto, o “problema Moïse”, assim como o problema das políticas neoliberais e seus efeitos devastadores sobre o país mais empobrecido do continente – políticas que não caíram do céu mas foram impostas impiedosamente pelo FMI e pelo Departamento de Estado dos EUA – não são apenas problemas do Haiti. São, antes, problemas de geopolítica regional que se expressam fortuitamente nesse castigado, mas orgulhoso país. Mas ainda podemos resgatar esta sétima e última tese num sentido bem intencionado e propositivo. A ajuda e cooperação que o Haiti precisa é a de todos os governos populares, setores democráticos, forças progressistas e esquerdistas, organizações de direitos humanos, organizações autônomas de integração e militantes imperialistas da região e do mundo que querem enfrentar a interferência devastadora do que veio a ser chamado de “comunidade internacional”, formada na realidade por um minúsculo grupo de países ricos e poderosos. Um velho slogan, cunhado durante o tempo da MINUSTAH, ainda parece manter sua eloquência: “É hora de deixar o Haiti em paz”. É o Haiti, em paz e com plena soberania, que mais uma vez conquistará um bom governo que possa resolver seus próprios problemas.
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Sete teses equivocadas sobre a situação no Haiti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU