15 Janeiro 2021
Tomada de posição dos jesuítas do Haiti sobre a atual crise haitiana.
O texto é publicado por AlterPresse, 10-01-2021. A tradução é de André Langer.
A profunda crise que a sociedade haitiana está atravessando há várias décadas atinge hoje dimensões inimagináveis. Temos a impressão de que estamos no caos total; no fundo de um abismo de onde nenhuma saída é visível no horizonte. A incerteza e o sofrimento infelizmente parecem tirar toda a esperança. Nossa nação está entrando lentamente em colapso e com ela nossas instituições e os valores fundamentais sobre os quais nossa existência coletiva se baseia. Esta triste situação nos desafia como homens e mulheres, cristãos e cristãs e ainda mais como religiosos jesuítas. Este grito do apóstolo Paulo ressoa agora mais do que nunca em nossas mentes e em nossos corações e nos exorta à ação: “Ai de mim se não anunciar o Evangelho” (1 Cor 9,16).
Acabamos de celebrar o Natal, o mistério da Encarnação. O Deus criador do universo que irrompe na história da humanidade para abrir a experiência humana à transcendência e à esperança. O profeta Isaías descreve o advento do Messias como a inauguração de uma nova terra e de uma humanidade renovada que possibilita novas relações de fraternidade entre os humanos e estes com a natureza (Is 11,1-10). Jesus cumpriu sua missão recebida do Pai, com quem permaneceu em comunhão permanente (Jo 10,30). A experiência de Jesus revela a solidariedade de Deus com o homem em geral e especialmente com o homem em dificuldade. Abre-lhe novos horizontes ao revelar-lhe os valores da partilha e da empatia (Mc 10,46ss; Mt 14,13-36). O objetivo final de sua missão continua sendo o desenvolvimento integral do ser humano e de cada ser humano.
Nossa missão agora recebida de Cristo inclui como exigência radical a tarefa de encarnar esses valores todos os dias na realidade ardente do mundo e do povo sofredor do Haiti. Na meditação sobre a Encarnação dos seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola recorda a empatia do Pai pelo gênero humano em sua diversidade e suas misérias e sua decisão de enviar seu Filho ao mundo para salvá-lo (Cf. Santo Inácio, Exercícios Espirituais n. 102). O Papa Francisco, por sua vez, recorda-nos com urgência: “‘Hoje nasceu para vós um Salvador’ (Lc 2,11). Para mim e para vocês” (Cf. Papa Francisco, Homilia da Missa da Noite de Natal 2020).
Fiéis a esta missão, em total comunhão com o nosso Papa Francisco e com os nossos Bispos do Haiti que, nas suas recentes mensagens, não cessam de denunciar e chamar a atenção para a gravidade da crise atual (Cf. CEH, Mensagem de Natal de 2020), em solidariedade com os nossos irmãos e irmãs de outras confissões religiosas, todos os nossos irmãos e irmãs haitianos de boa vontade e com nosso povo sofredor do Haiti, nós, jesuítas do Haiti, junto com nossos colaboradores, declaramos o seguinte:
A crise vivida pela sociedade haitiana não é de forma alguma uma simples crise conjuntural. Trata-se de uma crise social global e profunda, ou seja, que afeta todas as camadas e esferas da sociedade. Está minando as formas organizacionais básicas da nossa sociedade e ameaça a própria existência do Estado. Assistimos dolorosamente ao colapso das instituições públicas, em particular das representativas, à banalização dos valores fundamentais que tornam possível a convivência e à perda de referenciais éticos que resultam no desrespeito total do outro. Nosso país se tornou um país em risco, onde a insegurança assume dimensões incríveis: proliferação de gangues armadas, sequestros, assassinatos, etc. Tudo isso muitas vezes é feito com a cumplicidade das mais altas autoridades do Estado, na indiferença e, às vezes, na impotência da Polícia Nacional do Haiti. A Conferência Episcopal do Haiti (CEH) em sua Mensagem de Natal 2020 denuncia esses graves problemas que minam o corpo social: a violência, a miséria, a insalubridade, os atos de violência, de assassinato, de barbárie, etc. (CEH, Mensagem de Natal de 2020 n. 3).
A crise atual também é política. Manifesta-se no total descrédito da política expresso na perda de credibilidade dos atores políticos, na generalização dos déficits públicos e no desrespeito dos orçamentos do Estado. As atitudes e o comportamento dos políticos são semelhantes ao que podemos chamar de tibieza, ou seja, a falta de coragem, de criatividade, de planejamento e de previsão. Predominam a rotina e o descuido. Observamos um questionamento dos direitos e valores da propriedade privada, a multiplicação e o fortalecimento de redes engajadas na corrupção, nas drogas e no tráfico de pessoas. O Estado está perdendo cada vez mais o controle dos grupos armados e de parcelas cada vez maiores do território nacional.
Vivemos sob a constante ameaça de um retorno à ditadura com um Executivo que governa por decreto e muitas vezes em desacordo com a Constituição. Fato incomum! A irrupção de bandidos e criminosos notórios – alguns, dizem, procurados pela polícia nas arenas política e midiática. Este clima político deletério desdobra-se num pano de fundo de profundos problemas sociais: deterioração generalizada e preocupante das condições de vida, fuga do capital humano e financeiro (cerca de 84% dos que passaram pelo bac II nos últimos anos deixam o país), ausência gritante, pois, de recursos humanos em todos os setores sociais e o vigoroso surgimento do fenômeno dos exilados sociais e econômicos.
A crise global da nossa sociedade tem uma dimensão eminentemente econômica. Esta última tem como indicadores: a queda da produção em todos os setores da economia nacional e a queda do Produto Interno Bruto (PIB) real. Este último se elevou no ano de 2019 para 9,6 bilhões de dólares americanos, ou seja, 854 dólares per capita. Permanece insignificante em comparação com o PIB da República Dominicana, que totalizou 75 bilhões de dólares americanos no mesmo período. Mais de 60% da população do país vive abaixo da linha de pobreza absoluta. A grande maioria dos haitianos não tem acesso a serviços sociais básicos, incluindo a educação. O êxodo rural está em pleno andamento; grande número de camponeses migra para a cidade em busca de um emprego que, infelizmente, não existe.
Estamos assistindo a um acúmulo de déficits comerciais e orçamentários nos últimos anos, ao desvio de recursos públicos e à institucionalização da corrupção. O país importa atualmente quase tudo: tecnologias, produtos alimentícios (carne, peixe, leite), automóveis, medicamentos, tecidos, etc. Isso acelera cada dia mais o desequilíbrio da balança de pagamentos, com suas muitas consequências negativas, tanto no nível micro quanto no macroeconômico.
Uma das expressões dessa crise social global continua sendo a dimensão constitucional. Esta última se manifesta nas constantes violações da Carta Fundamental do país e isso tanto por atores políticos nacionais como internacionais. Do lado dos atores nacionais, observamos: as prisões arbitrárias, a destituição ilegal de juízes, a abolição tout court da Constituição em junho de 1988, ao apoiar a ocupação estrangeira do território nacional. Mais recentemente, o Executivo emitiu uma série de decretos, uma prática que não é reconhecida pela Constituição e faz parte dos métodos ditatoriais que lembram o triste período da ditadura dos Duvalier. Os cidadãos perdem toda a confiança em suas instituições políticas, especialmente na instituição eleitoral. Isso pode levar a novas revoltas populares. Em suma, esta crise constitucional tem suas raízes em um fenômeno ainda mais sério e fundamental que é a própria perversão do Estado de direito e a impotência do próprio direito.
As causas explicativas desta profunda crise são numerosas. Citamos, entre outras, as seguintes:
• As gritantes desigualdades sociais e o imenso vazio que separa aqueles que possuem e aqueles – a grande maioria – que mal conseguem sobreviver. “Duas nações em uma nação”, dizia já o escritor e político haitiano Louis Joseph Janvier no século XIX (Cf. Louis J. Janvier. As Constituições do Haiti);
• A ausência de políticas públicas de integração dos cidadãos e uma mentalidade de prebenda tolerada e incentivada até mesmo pelas elites;
• A falta de empatia e de consciência cívica que se torna uma cultura dominante;
• A acumulação das injustiças sociais ao longo de vários séculos e o nosso desprezo pelos valores fundamentais que incluem a solidariedade, o respeito pela vida, pelo meio ambiente e a promoção do bem comum, a superação de si, etc.;
• As oportunidades perdidas para uma transferência estável do poder expressa em transições intermináveis e crises políticas recorrentes;
• Nossas muitas imperfeições culturais, como a arrogância, o egoísmo, a falta de magnanimidade e mentalidade revanchista;
• A má gestão das nossas relações com o nosso ambiente internacional.
No entanto, esta situação de angústia corre o risco de esconder as nossas numerosas riquezas que podem constituir um trunfo importante em qualquer esforço para ultrapassar a crise e lançar o país no caminho do progresso. O Haiti tem um imenso potencial natural e cultural. Mencionamos, entre outros: um subsolo rico e inexplorado, mais de 1.700 quilômetros de costa, muitos sítios históricos e naturais, entre os mais ricos da região, uma população jovem, uma diáspora constituída por mais de dois milhões de pessoas e dotada de recursos profissionais significativos. Além disso, está se iniciando um movimento cidadão, por meio de múltiplas organizações sociais, organismos de defesa dos direitos humanos, alguns meios de comunicação, partidos políticos, etc., que, apesar de suas limitações, permanece como um portador de esperança no processo de construção da democracia e de um Estado de direito no país.
Temos certeza de que esta situação não representa uma fatalidade, nem é fruto do acaso. Ela é o resultado da ação humana. Por conseguinte, as saídas são sempre possíveis. Espera-se que a nossa nação consiga renascer, através de uma profunda consciência coletiva, de uma ação determinada de suas filhas e filhos a partir dos muitos desafios identificados e das reais potencialidades existentes.
• É hora de realizar um verdadeiro movimento cívico com vistas a promover o amor à pátria, o engajamento cidadão, o desinteresse, o respeito pela vida, a promoção do bem comum, o senso do voluntariado – especialmente entre os jovens – por boas causas nos campos social e político.
• É urgente em nossa sociedade promover um verdadeiro retorno aos valores espirituais fundamentais, incluindo o amor ao próximo e a empatia; em suma, um renascimento espiritual que servirá de base para a ação nos campos socioeconômico, político, cultural, etc.
• É imprescindível criar um dinamismo econômico baseado no investimento na produção de bens e serviços, para reduzir o desemprego em massa que desumaniza, reforça as desigualdades e está na raiz de múltiplos males da nossa sociedade.
• É hora de entrar em um verdadeiro movimento de modernização da sociedade; uma modernização inclusiva, oferecendo a todos sem exceção uma educação de qualidade.
• É preciso descentralizar o país e ir além da “república” de Porto Príncipe, conforme estipulado na Constituição de 1987, para maior inclusão administrativa e econômica e, finalmente, lançar o país no caminho do desenvolvimento sustentável.
• É importante envolver todas as forças religiosas no caminho do renascimento do Haiti, a fim de superar as divisões entre as religiões e permitir uma colaboração saudável entre elas (católicos, protestantes, voduístas, etc.) no campo social, para o maior bem da nação.
Se a tragédia que vivemos é fruto da ação humana, uma saída da crise e um amanhã melhor podem surgir através da ação positiva dos filhos e filhas de nosso país.
• Nós exortamos os principais atores, nacionais e internacionais, a tomar as decisões adequadas, com total respeito pelos princípios democráticos fundamentais, para ajudar a salvar este país.
• Nós exortamos as forças vitais da nação, pedimos para que fiquem de pé, nesta encruzilhada histórica do nosso país, para refazer o gesto de 1804 e assim lançar este vasto movimento de renascimento nacional que devolverá esperança e dignidade ao nosso povo.
• Nós exortamos também todos os ativistas sociais e políticos, as muitas organizações da diáspora haitiana, a não desanimar e a continuar a luta para reverter esta situação insuportável.
• Nós exortamos o valente povo do Haiti, povo corajoso e resiliente, povo orgulhoso, mesmo nas profundezas da adversidade, a continuar a se inspirar em sua fé, em sua rica cultura e em sua história única, nas novas razões de esperança e na coragem necessária para tornar seu sonho de um novo Haiti uma realidade.
Dado no Centro de Espiritualidade Jesuíta, Tabarre 10, Cazeau, em 18 de dezembro de 2020.
Pelos jesuítas do Haiti:
Padre Jean Denis SAINT-FÉLIX, S.J, Superior dos Jesuítas do Haiti
Padre Jean-Marie LOUIS, S.J, Conselheiro
Padre Rogério da SILVA, S.J, Conselheiro
Padre Kawas FRANÇOIS, S.J, Conselheiro
Padre Kénel SÉNATUS, S.J, Conselheiro
Padre Jean Maxène JOAZILE, S.J, Secretário
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Haiti. Crise global: Os jesuítas exortam as forças vivas da nação a “refazer o gesto de 1804” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU