18 Fevereiro 2021
O presidente Jovenel Moïse negou-se a deixar o poder, desatando fortes protestos e uma crise constitucional no país golpeado pela miséria, violências, desastres naturais e impunidade.
A reportagem é publicada por Open Democracy, 12-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Haiti atravessa uma crise profunda, agravada agora pela decisão do presidente Jovenel Moïse de não deixar o poder na data constitucionalmente estabelecida: 07 de fevereiro de 2021.
Sua negativa levantou protestos multitudinários, frente aos quais o regime reagiu alegando uma suposta tentativa de golpe de Estado, no qual envolveria desde opositores civis a juízes independentes da Suprema Corte do Haiti. 23 pessoas foram presas, entre essas estavam um policial e Hiviquel Dabresil, juíza da Suprema Corte do país.
Segundo um documento da Rede Nacional para a Defesa dos Direitos Humanos no Haiti (RNDDH, em suas siglas em francês), Dabresil foi torturada, e ainda não foi liberada. RNDDH fez um chamado aos organismos internacionais para que apoiem a libertação de Dabresil e as outras 22 pessoas presas. A máquina de repressão se pôs em ação.
Segundo o presidente Moïse, seu mandato não termina até fevereiro de 2022. Baseia sua alegação dizendo que quando venceu as eleições presidenciais de 2016, ocorridas apenas uma semana depois da passagem do furacão Matthew, que destruiu o país e fez que somente 30% da população fosse às urnas, denunciou-se fraude.
O fato é que Moïse ganhou as eleições pela primeira vez em outubro de 2015, porém sua vitória foi impugnada e anulada, por isso teve que vencer novamente em 2016 e tomar posse em 07 de fevereiro de 2017. O mandato presidencial é de 5 anos, que ele conta desde esse dia, porém a oposição remete à eleição de 2015.
Sua decisão de não reconhecer o fim de seu mandato desatou a indignação popular, que está em permanente mobilização desde que em 2018, um maiúsculo escândalo de corrupção vinculado a empréstimos venezuelanos à operação Petrocaribe implicou também o presidente, que é um conhecido ex-empresário.
Na quarta-feira, 10 de fevereiro, centenas de haitianos marcharam nas ruas de Porto Príncipe cantando “Abaixo aos sequestros! Abaixo à ditadura!”, e apoiando a oposição que pede que o presidente, que se mantém em seu posto, renuncie. O país vive uma autêntica epidemia de violência criminal e sequestros sistemáticos diante da inação e impotência das forças de segurança.
Estes foram os maiores protestos no país em 2021 e fizeram com que os EUA, potência que exerceu papel chave na prolongação do mandato de Moïse e seu partido, começa a se distanciar do governo haitiano.
O Haiti foi a primeira república negra do mundo, após o triunfo da revolução de escravos e libertos (1791-1804) contra o poder colonial francês. Com uma história marcada pela pobreza, autoritarismo, instabilidade política e contínua ingerência externa, o Haiti vive uma crise permanente. Além disso, foi atingida por uma série de desastres naturais, com um terremoto devastador em 2010 (mais de 250.000 mortos), seguido pelo furacão Matthew em 2014, que agravou a já precária situação econômica e social de seus habitantes. Segundo dados oficiais, o Haiti é o país mais pobre do Hemisfério Ocidental e um dos mais pobres do mundo. 59% de sua população vive abaixo da linha da pobreza e mais de 24% vive em pobreza extrema.
O antecessor de Moïse, de seu mesmo partido, o Tèt Kale, e que o escolheu como seu sucessor, é Michel Martelly, político e ex-músico haitiano que governou o país de 2011 a 2016. Martelly foi o primeiro presidente legítimo do Haiti a sucedê-lo, outro democraticamente.
Como candidato, ele recebeu apoio decisivo do governo dos Estados Unidos que ficou explícito quando Hillary Clinton, então secretária de Estado dos Estados Unidos, e Bill Clinton, presidente da Comissão para a Reconstrução do Haiti após o Terremoto (IHRC, por seu acrônimo em inglês), apoiado Martelly. O IHRC enfrentou duras críticas pelo lento processo de recuperação e porque os fundos não chegaram em tempo hábil. De acordo com o Escritório do Enviado Especial para o Haiti, US $ 5,4 bilhões foram para organizações não haitianas, como agências das Nações Unidas, grupos de ajuda internacional e contratantes privados; 580 milhões de dólares para o governo haitiano e 36,2 milhões para organizações haitianas.
Os fundos nunca foram distribuídos de forma equitativa e as organizações de base nunca foram priorizadas. Uma análise do governo dos Estados Unidos concluiu que não houve desvio de fundos, mas que a maneira como o IHRC distribuiu os fundos não estava de acordo com as necessidades do Haiti. Também ficou evidente que o IHRC buscava obter resultados de curto prazo, ao invés de construir capacidades instaladas de longo prazo no território.
A corrupção historicamente tem sido um grande entrave ao desenvolvimento do Haiti, que viveu uma forte onda de protestos anticorrupção após o escândalo Petrocaribe, que estourou em 2018. Junto com outros países caribenhos, o Haiti fez parte do Petrocaribe, um projeto “solidário” com Hugo Chávez que lhes permitiu ter acesso ao petróleo a preços preferenciais e que acabou por ser uma fonte abundante de corrupção e peculato.
Em julho de 2018, diante das acusações de enriquecimento ilícito contra Moïse, milhares de haitianos fizeram uma passeata de protesto e ocorreram violentos motins contra o aumento do preço do combustível. Moïse reverteu a medida e até mudou de primeiro-ministro, mas o que os manifestantes pediam era claro: não só uma verdadeira renovação do pessoal do governo, mas a implementação de políticas públicas que permitissem que mais de 80% da população tivesse acesso ao emprego, saúde, educação de qualidade e segurança em bairros populares.
A forte desvalorização da gourde, a moeda haitiana, e as tentativas do governo de controlar a taxa de câmbio tiveram efeitos opostos, elevando os preços. Hoje o Haiti continua importando três vezes mais do que exporta. Com um salário mínimo de 3,4 dólares por dia e uma taxa de desemprego próxima a 75%, a qualidade de vida dos haitianos, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), não melhorou desde 1990.
Em agosto de 2018, André Michel, advogado, abriu um processo no qual se tornou o patrocinador de todos aqueles que quiseram se apresentar como parte civil contra o Estado por se considerarem vítimas indiretas do desfalque.
Nada parecia se mover até que em 14 de agosto de 2018, um tuíte de um jovem roteirista, Gilbert Mirambeau, acordou os haitianos novamente. Na foto ele foi visto vendado exibindo um cartaz onde estava escrito em créole: “Kot Kòb Petwo Karibe a?” (Onde está o dinheiro Petrocaribe?). Foi assim que começou o movimento #PetroCaribeChallenge, que foi compartilhado em redes por rappers e outras personalidades até se tornar viral e gerar novos protestos contra o corrupto governo de Moïse.
Em resposta aos protestos de 2018, o governo de Moïse reagiu com violência, perpetrando um massacre em um bairro pobre da capital no qual 71 pessoas foram mortas a facões, houve estupros e assassinatos de crianças. Isso desencadeou investigações das Nações Unidas por violações de direitos humanos. Concluiu-se que o mentor do massacre era um membro do governo, Joseph Pierre Richard Duplan. Da mesma forma, o planejamento e a execução do massacre foram realizados pelo ministro do Interior, Fednel Monchery.
Em 2 de janeiro, os líderes do G9 (grupo de 9 gangues, uma “federação” de gangues criminosas criada por Jimmy Cherisier, um ex-policial haitiano), marcharam em favor do presidente. Isso é o que Nixon Boumba, um ativista dos direitos humanos haitiano, chama de “gangsterização” do país. O poder dessas gangues hoje é tal que aterrorizam a população, mantendo-a intimidada nas favelas de Porto Príncipe e nas áreas rurais. Com o seu apoio, Moïse governa por decreto, sem necessidade de aprovação do parlamento. Isso permitiu, por exemplo, declarar algumas formas de protesto (incluindo marchas civis) como “terrorismo”, dando mais um passo na incessante repressão.
Hoje os haitianos estão passando por um período de abuso e terror como o que vivenciaram com Jean Claude Duvalier (Baby Doc) e seus tontons-macoute, uma milícia encarregada de aplicar castigos à sociedade civil. Que hoje outro presidente, apoiado por poderes externos, se perpetue em um poder autoritário, corrupto e violento, e conte com uma federação de quadrilhas de criminosos para impor sua lei, leva o país ao maior desastre.
Os protestos de hoje são o grito desesperado de uma população exausta. É difícil entender que as organizações internacionais continuem a apoiar Moïse e tenham aderido a seu plano unilateral de reformar a Constituição para limitar os poderes do parlamento e proteger a imunidade dos presidentes e submetê-la a um referendo em abril, e então realizar eleições em Setembro.
Sob um regime corrupto e cada vez mais violento, o Haiti vive atualmente uma crise humanitária e de direitos humanos totalmente insustentável. A comunidade internacional deve reagir imediatamente.
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Haiti. Uma interminável crise política e humanitária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU