20 Agosto 2021
Enquanto eu estava na fila do Aeroporto Internacional Toussaint L’Ouverture, em Porto Príncipe, percebi que alguém estava olhando para mim. Eu tinha acabado de passar uma semana cobrindo os esforços de recuperação após o terremoto de sete graus que ceifou mais de 300.000 vidas haitianas em 2010. Eu estava perdido em meus pensamentos, refletindo sobre tudo o que tinha visto e todas as pessoas que conheci.
O comentário é de J. D. Long-García, publicado em America, 19-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Bonjour”, disse eu ao homem, captando seu olhar. Eu sorri. “Bom dia”, ele respondeu. Ele poderia dizer, imagino eu, que o meu francês não era bom. Ele não sorriu de volta.
“Você é do Haiti?”, eu lhe perguntei. Ele me disse que sim. Eu lhe disse que esta era a minha primeira vez no Haiti. Eu disse que, apesar dos desafios, eu o achei um país lindo.
“O Haiti não é bonito”, ele me disse. Crianças morrem de fome aqui, disse ele. As pessoas não têm comida e são forçadas a comer a casca das árvores ou a argila do solo. As terras estão desmatadas, e quando chove ocorrem deslizamentos. A água está contaminada. As pessoas morrem de doenças aqui, com as quais simplesmente não precisam lidar em outros países. É quase impossível escapar da pobreza se você nasceu nela.
Não me lembro do que eu disse em resposta a ele, se é que disse alguma coisa. Isso não importa.
O que eu quis dizer a ele é que as pessoas são bonitas. Eu fiquei pasmo ao ver como as comunidades, especialmente nas áreas rurais, se uniram após o terrível terremoto. Eu não conseguia imaginar meus amigos e a minha família nos Estados Unidos sobrevivendo em tais condições. Há muita força no Haiti, pareceu-me. De alguma forma, os haitianos continuaram sendo um povo de esperança. E eu achei isso bonito.
Eu não sabia como conciliar o que o homem dizia com a beleza que eu encontrei. Eu ainda não sei. Ele chamou a minha atenção para o sofrimento. Ele não toleraria ninguém encobrindo com palavras bonitas a dor que o seu povo experimenta. Existe beleza e também sofrimento e morte.
Aquela viagem de reportagem que eu fiz com a Catholic Relief Services em 2010 continua sendo uma das experiências mais formativas que eu tive como jornalista. Não passa uma semana sem que eu pense nisso.
Eu pensei nisso no último fim de semana, é claro, quando li sobre o terremoto de 7,2 graus que ceifou mais de 2.000 vidas e feriu outras 10.000. O número de mortos deve aumentar, e a tempestade tropical Grace complicou os esforços de socorro.
Embora o Haiti desapareça das manchetes, a crise parece nunca acabar. Nos últimos anos, áreas do Haiti sofreram secas severas. O furacão Matthew devastou o país em 2016. Um surto de cólera se seguiu ao terremoto de 2010, que desabrigou mais de um milhão de pessoas.
Essa viagem de reportagem me ensinou muitas coisas, mas estas três lições se destacam.
Eu já havia feito reportagens sobre outros países antes. Muitas vezes, eu revelava que sou da República Dominicana. Isso ajuda as pessoas a entenderem por que eu falo espanhol, por exemplo. Meu pai é dos Estados Unidos, e me disseram que eu me pareço mais com ele do que com a minha mãe.
Quando eu cheguei ao Haiti, lembrei-me da República Dominicana. Afinal, os dois países compartilham uma ilha. Os cheiros e o ar quente e úmido; o casabe, a banana e o arroz; até a música, tudo me lembrava de casa.
Mas, quando eu compartilhava com as pessoas do Haiti que eu nasci na República Dominicana, não obtinha a resposta usual. A República Dominicana não tratou bem o povo haitiano ao longo dos anos. Rafael Trujillo, o ditador da República Dominicana de 1930 até o seu assassinato em 1961, ordenou o assassinato de nada menos do que 20.000 haitianos durante o seu reinado.
Hoje, muitos dominicanos – incluindo membros da minha família – mantêm um preconceito anti-haitiano. Ao visitar a minha família em Santo Domingo quando criança em um verão, eu ouvi falar de um prédio alto que desabou. Instantaneamente, alguns membros da família culparam o trabalho dos trabalhadores da construção civil do Haiti. Já adulto, uma das minhas tias me disse que o motivo de a República Dominicana ter problemas econômicos é porque muitos haitianos moram lá.
Eu nunca acreditei em nenhum desses estereótipos. A minha família imediata me ensinou que eles não são verdadeiros. E, quando eu cheguei ao Haiti, me lembrei das coisas que temos em comum. Presumi que as semelhanças que eu percebia seriam a base para conexões significativas.
Eu estava errado e fui ingênuo. Eu ignorei que a minha herança dominicana poderia atrapalhar as minhas interações no Haiti. Então, parei de me referir a essa parte da minha história. Pela primeira vez, tive vergonha disso.
O Haiti é o país mais pobre do Hemisfério Ocidental. Muitas pessoas sabem disso. Mas acho que muitas pessoas não sabem por quê.
Durante a minha viagem de reportagem ao Haiti, o bispo Pierre-André Dumas, então presidente da Cáritas no Haiti, me disse que muito poucos haitianos sabem sobre os seus antepassados. O bispo falou sobre François-Dominique Toussaint L’Ouverture, que dá nome ao aeroporto de Porto Príncipe.
Escravo libertado, Toussaint L’Ouverture enfrentou Napoleão e liderou a Revolução Haitiana que libertou o país da França há mais de 200 anos. O bispo Dumas me explicou que a faixa branca da bandeira haitiana foi arrancada do meio da bandeira francesa e colocada de lado. O Haiti se tornou a segunda república do Hemisfério Ocidental em 1804.
O Haiti, ou Saint-Domingue, como era conhecido sob o domínio francês, tinha sido a colônia mais rica da França, produzindo algodão, café e cana-de-açúcar em abundância. Em 1825, a França enviou navios de guerra a Porto Príncipe e forçou o Haiti a compensar os colonos franceses pela perda de terras e de trabalhadores escravizados. O país não pagou essa dívida até 1947. Golpes e ditadores ao longo das décadas seguintes aumentaram a dívida do Haiti, que nunca se recuperou.
“Queremos um diálogo nacional para tornar o povo haitiano ciente do que chamamos de ‘as ideias dos pais’. Perdemos isso”, disse-me o bispo Dumas em 2010. “Queremos que as pessoas se envolvam muito nesse processo.”
A visão do bispo reflete o lema nacional do Haiti: “A unidade faz a força”.
“Devemos ser pacientes, mas, ao mesmo tempo, devemos enviar sinais para as pessoas e para o Estado”, disse-me ele sobre o papel da Igreja. “Devemos tranquilizá-los de que isso é possível.”
Conhecer a história do Haiti não só ajuda a compreender o sofrimento aparentemente interminável, mas também dá uma razão para a esperança, disse-me o bispo Dumas. As reportagens sobre o Haiti que negligenciam a dimensão histórica são incompletas.
Dias depois do mais recente terremoto no Haiti, a notícia já está desaparecendo. Você não encontrará o Haiti na capa do USA Today, por exemplo. Enquanto isso, a Associated Press relata que as vítimas do último terremoto estão sobrecarregando os hospitais.
Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, as notícias do Haiti também desapareceram. Ele voltou naquele mês de outubro durante um surto de cólera e quando os meios de comunicação publicaram suas reportagens sobre “um ano depois”, como parece ditar o costume. Mas então o Haiti pareceu desaparecer das notícias mais uma vez.
De minha parte, eu fiz algumas reportagens aqui e ali sobre os esforços locais de ajuda; várias paróquias dos Estados Unidos têm parcerias contínuas com as paróquias do Haiti para esforços de socorro. Em 2016, eu escrevi uma história sobre os haitianos deslocados na fronteira dos Estados Unidos com o México.
A revista America publicou uma série de histórias focadas no Haiti, incluindo declarações do arcebispo Thomas Wenski, de Miami, sobre mudança sustentável, e de Colby Bowker, vice-presidente do The Haitian Project, Inc., sobre justiça racial. O Catholic News Service fez uma cobertura contínua do Haiti, incluindo o assassinato do presidente Jovenel Moïse. Mas todos nós poderíamos escrever mais.
Com quanta frequência nós, católicos, reservamos tempo para ler histórias sobre o Haiti? E como respondemos? Tenho certeza de que as agências de ajuda humanitária estão vendo um aumento nas doações após o terremoto mais recente. Mas, se o povo haitiano pretende sair da pobreza, ele precisa de compromissos de longo prazo por parte daqueles que afirmam ser seus amigos.
Devemos dar a nossa atenção ao Haiti, com ou sem terremotos e furacões. As pessoas estão sofrendo lá todos os dias, e, na maioria das vezes, não estamos prestando atenção. Como disse o bispo Dumas, a mudança no Haiti levará décadas. Mas é possível.
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“Católicos: o Haiti merece a atenção de vocês” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU