13 Janeiro 2020
Domingo, 12 de janeiro, marcou o 10º aniversário do terremoto de 2010 que devastou grande parte do Haiti, incluindo a capital Porto Príncipe.
A entrevista é de Chris Herlinger, publicada por Global Sisters Reporter, 09-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Estima-se que o desastre matou 220 pessoas, feriu mais de 300 mil e deixou 1,5 milhão de desabrigados, segundo a organização humanitária inglesa Disasters Emergency Committee.
A cooperação de ajuda humanitária que se seguiu ao evento foi marcante, mas também pôs em dúvida a longa relação do Haiti com grupos de ajuda. Muitos haitianos disseram que boa parte das doações não foi suficiente e não chegou até os necessitados.
Essa resposta reforçou uma dinâmica turbulenta num país com uma história de dominação colonial e neocolonial, bem como de uma corrupção generalizada. As preocupações em torno da corrupção e de uma governança cheia de falhas tornaram-se mais públicas ainda, com haitianos indo às ruas em protestos recentes contra o governo do presidente Jovenel Moïse.
“Populações que foram exploradas por governos coloniais e autocráticos convivem a décadas com uma raiva que pode explodir em violência sem muita provocação. É a ‘gota d’água’ para a explosão acontecer. Vimos isso no Haiti, nos últimos dois anos”, diz a Irmã Marilyn Lacey, diretora executiva da agência humanitária Mercy Beyond Borders e membra das Irmãs Religiosas da Misericórdia.
Lacey diz acreditar que a resposta ao terremoto foi “muito bem-intencionada, foi muito boa. Ela salvou vidas. Restaurou parte da infraestrutura. Trouxe esperança a um povo assustado”. No entanto, segundo a religiosa, “não trouxe uma transformação sistêmica nem transparência no governo, tampouco oportunidades de emprego, ou uma melhoria econômica”.
No final, também segundo Lacey, “o povo haitiano é resiliente, tem um bom coração, é generoso. O espírito dessas pessoas não se rompeu com o abalo de 2010, com a epidemia subsequente de cólera ou com a corrupção geral que assola o país”.
“Há uma forte esperança”.
Para marcar o aniversário, o Global Sisters Reporter pediu a irmãs que estiveram envolvidas com a situação no Haiti que refletissem sobre a data e o legado do terremoto. Elas responderam a perguntas por e-mail e por telefone. Suas respostas foram editadas e condensadas.
Além de Lacey, entre as participantes estão:
A Irmã Sissy Corr, da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur. Corr trabalha no ministério de voluntariado e ajuda na administração de uma padaria industrial na cidade de Les Cayes, reaberta recentemente após ter fechado as portas por causa da violência nas ruas.
A Irmã Judy Dohner, da Congregação das Irmãs da Humildade de Maria. Dohner começou a trabalhar no Haiti em 2002 e estava lá durante o terremoto e nos anos subsequentes. Hoje trabalha com os haitianos que moram na Flórida.
A Irmã Marilyn Marie Minter, que trabalha na cidade de Jacmel e participa do ministério das Irmãs Felicianas da América do Norte, criado em 2012 após o trabalho feito imediatamente após o desastre.
E a Irmã Fidelis Rubbo, das Irmãs de São Francisco de Sylvania, no estado de Ohio. Rubbo atuou como missionária no Haiti de 2001 a 2014.
Como acha que o terremoto mudou o Haiti? Uma década depois, quais os efeitos que ainda permanecem e podem ser sentidos?
Corr: Quando cheguei sete anos atrás, vi as ruínas e ouvi muitas histórias. Para os haitianos, o terremoto é algo entranhado no povo. Está em sua psique. Certamente, as coisas estão muito melhores do que estavam logo após o terremoto. E, no entanto, permanecem muitos desafios. Se eu estivesse no governo, buscaria resolver a questão dos esgotos a céu aberto. É um enorme problema, que contribui para a precariedade na saúde. E já que esse assunto não é abordado, os profissionais de saúde de outros países acabam vindo para cá, o que perpetua a dependência externa. É uma pena que o governo não resolva essa questão, que é básica.
Dohner: O terremoto de 2010 agravou a desesperança no Haiti. Os haitianos estão desiludidos, ao não verem sinais de uma transformação estrutural a longo prazo. Após o terremoto houve uma epidemia de cólera, vários furacões e a retirada de forças da ONU, deixando muitos sem emprego; houve também casos de desobediência civil que continua até hoje. No início, tivemos no país um progresso: o turismo melhorou, havia um acesso maior aos serviços de telefonia e à internet. Mas muito pouco se fez no nível estrutural para diminuir a pobreza esmagadora no Haiti.
Lacey: No trabalho que realizo ao redor do mundo, vejo como as populações atingidas – pelas circunstâncias, pela corrupção, por desastres naturais, pela marginalização cultural ou tudo isso junto – tendem a viver só momento presente, sem muito economizar, pensar ou planejar o futuro. Vejo isso muitas vezes entre as populações de refugiados, e vejo no Haiti. Vejo os haitianos não esperarem muito desta vida. Eles focam na vida após da morte. A religião passa a ser fundamental, mas focaliza na vida após a morte. Isso dificulta o trabalho de desenvolvimento.
Minter: Posso dizer que o terremoto mudou de forma permanente o Haiti. Na época, os olhos do mundo estavam abertos à pobreza e à devastação do país. Destruíram-se cidades, locais de adoração. Isso colocou muitas ONGs e outras entidades como a nossa congregação religiosa em relação com os mais pobres entre os pobres. Dez anos depois, as ONGs foram embora. Algumas delas pioraram um pouco a situação, pois deixaram para trás outros problemas, e outras, sim, fizeram a diferença, reconstruindo vidas. Organizações cristãs e católicas vieram aqui para reconstruir não só prédios, mas relações.
A nossa congregação respondeu com o acompanhamento na Diocese de Jacmel, buscando fazer uma evangelização que caminhasse – e estivesse – com os empobrecidos. Estas vidas não foram transformadas porque elas aqui ainda estão materialmente – e por vezes espiritualmente – pobres. Tentamos trabalhar com a Igreja através da educação, formação na fé e clínicas móveis. As crianças ainda estão famintas? Com certeza, em alguns aspectos. A situação política em 2019 não ajudou em nada. No meio disso tudo, a vida permaneceu a mesma e, para uns, piorou. Mas, para nós, temos o sentimento de que damos o nosso melhor para continuar a crescer em nossas relações com aqueles a quem servimos.
Como o evento mudou a maneira como grupos humanitários, incluindo a Igreja e as irmãs, respondem a emergências?
Dohner: A chegada imediata de inúmeros grupos humanitários ao Haiti após o terremoto piorou o caos existente no local. Um exemplo: muitas organizações que desejavam trabalhar com amputados começaram a se reunir quinzenalmente para desenvolver um processo colaborativo. O que de fato aconteceu foi que muitas organizações estavam representadas, o que levava quase duas horas para completar as apresentações. Em seguida, os participantes completavam o que deviam fazer e saíam. Acabamos recebendo mais pessoas para ajudar a acelerar. Nada se realizou e a colaboração foi mínima.
Lacey: O terremoto foi um desastre de proporções estarrecedoras, mas também o foi o desastre que veio depois: as promessas de ajuda que se transformaram em dinheiro direcionado a consultores e empresas estrangeiras, e não a trabalhadores haitianos. A Cruz Vermelha prometeu milhares de casas novas, tendo entregue somente umas poucas dúzias. O continente da ONU que não só trouxe a cólera para o Haiti como também a triste realidade de centenas de crianças geradas por membros das tropas militares que as abandonaram.
Vi a ineficácia da “entrada e saída” de ajuda humanitária ou o desejo equivocado de doar roupas em vez de, por exemplo, criar uma fábrica que capacitaria os haitianos com a produção de roupas. Os haitianos precisam de emprego. O Haiti precisa de reflorestamento e desenvolvimento econômico.
A resposta internacional massiva ao terremoto foi útil ou não? O trabalho das irmãs é, em geral, pequeno em escala. Essa resposta foi mais apropriada em 2010 e nos anos subsequentes?
Dohner: Não houve mudanças estruturais de longo prazo apesar de todos os fundos que chegaram ao país. As iniciativas de melhoria no Haiti continuam em pequena escala através de ONGs. Mas não há um plano maior. Mesmo a empobrecida catedral de Porto Príncipe ainda se encontra em ruínas. Estes esforços têm diminuído por causa do caos que o Haiti enfrenta atualmente. Voluntários e visitantes não estão vindo, e o acesso a muitas regiões do país está prejudicado.
Lacey: É verdade que as irmãs muitas vezes trabalham mais no nível local. No entanto, elas também trabalham em conjunto e conhecem o poder que há em alavancar sistemas. Através da Associação Católica da Saúde, muitas congregações de irmãs arrecadaram consideráveis recursos de todo os EUA – não apenas milhões de dólares como também um tremendo conhecimento em assistência médica – para planejar e implementar a construção de um hospital moderno em Porto Príncipe. Elas fizeram isso em colaboração com a hierarquia local de Porto Príncipe e outros setores católicos na área da saúde que atuam no país. É um exemplo de trabalho em grande escala.
Minter: A resposta imediata à assistência médica foi uma bênção, mas, com o passar do tempo, estas organizações se foram, e os técnicos e os médicos também. A assistência médica e a educação não tiveram avanços. Ainda temos muitos desafios aqui.
Rubbo: Foi maravilhoso testemunhar a generosidade de tantas pessoas. Que pena que o dinheiro e muitas iniciativas não foram administrados com sabedoria. Os melhores exemplos que vi de coisas funcionando foram quando os haitianos se envolviam nas agências humanitárias, fazendo as coisas e tomando decisões.
Mas fiquei sentida com o fato de agências de ajuda saberem o que fazer numa situação tão crítica. Em alguns casos, elas repassavam o trabalho para outros grupos estrangeiros que não sabiam também como proceder. Ou se autoprotegiam, apenas servindo as pessoas que já participavam em seus programas.
Gastou-se muito dinheiro, e muito se destinou para pagar trabalhadores estrangeiros ao invés de trabalhadores locais. Provavelmente grupos menores, como os que fazem um trabalho religioso, poderiam ter ajudado mais com este dinheiro na época.
Os que visitaram e trabalharam no Haiti sentem uma grande conexão com o país e mostram-se esperançosos com ele, apesar da reputação de ser um lugar difícil. Que esperança podemos encontrar no Haiti depois de passados estes dez anos?
Corr: Uma das coisas que o Haiti precisa é fortalecer o seu protagonismo, e isso é algo que nós como irmãs podemos ajudar. Passamos a fazer muitas coisas que achávamos que não faríamos no começo. Nunca achei que ajudaria na administração de uma padaria de nível industrial. Nem fazer pão eu sei. Mas está em nossa psique como educadoras, como colaboradoras. Podemos ver o potencial nos outros.
Podemos também ver além do futuro imediato. Tem tanta coisa no Haiti relacionada à sobrevivência: as pessoas só precisam ter uma ocupação. Para temos uma padaria, precisamos de uma equipe, que trabalhe e pense junto. Precisamos de talentos em nível industrial. Este talento está aí. Eu o vejo. Podemos ampliar esses talentos. E hoje ele é necessário.
Ouço as pessoas dizerem: “A senhora acha que conseguiremos?” Ou que a situação atual parece pior do que depois do terremoto. O terremoto foi terrível. Mas era a terra se movendo e as pessoas a trabalhando unidas em resposta, ajudando umas às outras. Mas, agora, as pessoas estão preocupadas. Elas dizem que há muitas incógnitas. Uma ansiedade. Um empresário que conheço, e que tem todos os recursos de que necessita, me perguntou: “Como vamos superar essa situação?” Temos essa questão preocupante dos protestos acontecendo de novo.
No entanto, a nossa padaria estava aberta e funcionando em dezembro, as nossas obras estavam concluídas. Ficamos bastante satisfeitas. Nesse momento, digo que estamos confiantes. Para as pessoas com quem trabalho a esperança voltou, e isso no meio de tanta ambição entre os haitianos: aprender inglês, aprender a usar o computador. Eu diria que agora há muita esperança.
Dohner: Atualmente, trabalho com imigrantes haitianos e pessoas que buscam asilo na Flórida. Essa população está desencorajada e não vê saída deste atoleiro. Alguns acreditam que o atual presidente haitiano deve deixar o poder; outros percebem que o Haiti avançou tão pouco em sua história e que as coisas, hoje, só pioraram. Outros acreditam que um retorno a uma ditadura é o caminho para estabilizar o país. Eles amam o Haiti. Não querem retornar. Acham que não há futuro para eles lá.
Lacey: Eu sempre tenho esperança. É evangélico! Mas a pergunta está certa: não é um trabalho fácil, e ficou mais difícil ainda com algumas lideranças civis se referindo a países inteiros como “países de merda”, que não valem a pena receber investimentos. Não me iludo com a grandeza das coisas que podemos realizar. Estamos plantando sementes para uma transformação de longo prazo, onde homens e mulheres possam ter educação, possam se manifestar e influenciar. País algum pode prosperar ou viver em paz se a metade de seu capital humano é deixada para trás.
Minter: A esperança que tenho no Haiti é com os jovens. Convidar, empoderar e trabalhar com eles em nossa missão tem sido uma graça e um desafio. O foco é guiá-los para que se tornem líderes, e respeitar o que podem e o que não podem mudar. Quando empoderamos alguém, a pessoa empoderada pode crescer e descobrir seus dons. São Francisco disse certa vez: faça poucas coisas, mas as faça bem; leve o tempo que precisar, vá devagar. Como interpreto? Menos é mais. Trabalhar em nossa comunidade religiosa. Ajudar as pessoas a crescerem na fé e na confiança. Ajudar no trabalho conjunto para que façamos a diferença onde estivermos, e mostrar como podemos ser sustentáveis quando trabalhos unidos.
Rubbo: Concordo que a maioria das pessoas se encanta com o país e seu povo. Não acho que isso mudou. Neste momento os visitantes estão com medo de vir, acho que por um bom motivo.
Às vezes é mais difícil para os próprios haitianos continuarem esperançosos, já que a situação não está nada fácil. Mas, apesar de tudo, eles se unem, dão o melhor que têm para si e para os filhos. Este povo fica tão alegre com qualquer coisinha que fazemos para ajudar. Penso que a esperança desse povo vem da confiança indomável que ele tem em Deus e no forte senso que tem de família e comunidade.
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Haiti. 10 anos após terremoto, irmãs religiosas debatem progresso e estagnação no país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU