29 Abril 2021
O ataque ao novo bispo de Rumbek Christian Carlassare ocorreu no contexto de uma região, e de um país, ainda fortemente ligados à pertença ao clã, onde a acumulação de recursos é muito forte.
A reportagem é de Bruna Sironi, publicada por Nigrizia, 28-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O nosso "mundo" - o da família comboniana e as casas missionárias em geral, do voluntariado, das associações e das numerosas pessoas que apoiaram o direito à autodeterminação no Sudão do Sul e continuam a trabalhar para fornecer ajuda à população nestes longos anos de crise, à espera do seu desenvolvimento pode ser sustentado – ficou no mínimo chocado com o ataque ao bispo eleito de Rumbek, padre Christian Carlassare, nomeado pelo Papa Francisco em 8 de março e que chegou à sua nova diocese em 15 de abril, onde deveria se instalar oficialmente em 23 de maio, o dia de Pentecostes.
O padre Christian Carlassare, recuperando-se no hospital. (Foto: ACI Africa)
Não há dúvidas sobre a dinâmica do ataque: dois homens armados, à noite, foram procurar o padre Christian em seu quarto, no complexo da diocese, e atiraram em suas pernas. Depois eles fugiram. Não pode haver dúvida nem mesmo sobre o objetivo da agressão: uma pesada advertência sobre o perigo para a sua vida, a que o cargo que ele aceitou o expõe. De acordo com informações de fontes confiáveis, outro possível bispo antes dele havia sido ameaçado de morte caso aceitasse o cargo.
A diocese de Rumbek se estende por cerca de 65 mil quilômetros quadrados, é tão grande quanto a Suíça, é habitada por menos de um milhão de pessoas, há onze estações missionárias. Situa-se no coração do Sudão do Sul e é particularmente conhecida e cara aos católicos italianos, mas não só, porque foi liderada durante mais de uma década por Cesare Mazzolari, um bispo comboniano originário de Brescia, que soube mobilizar recursos e solidariedade a favor da população duramente atingida pela guerra de libertação que durou mais de vinte anos do norte do país. O conflito terminou com a independência, conquistada em julho de 2011, poucos dias antes da morte de D. Mazzolari por um ataque cardíaco, durante a celebração da missa.
A diocese é habitada por uma maioria esmagadora de população Denka, o maior e mais poderoso grupo étnico do Sudão do Sul, e está entre as áreas mais turbulentas e inseguras de um país considerado entre os menos seguros do planeta. A área permaneceu isolada por muito tempo durante os anos da guerra de libertação e depois durante a recente guerra civil, que estourou em dezembro de 2013 e terminou em setembro de 2018, mas a paz está longe de se consolidar. Ainda hoje é difícil chegar por terra durante a estação das chuvas. O estilo de vida, portanto, ainda está fortemente enraizado em padrões tradicionais.
A economia denka é baseada na criação de gado. Os rebanhos costumam ser compostos por milhares de cabeças de gado, apesar de terem sido severamente reduzidos devido a conflitos recorrentes e duradouros. São a base das relações sociais e de poder entre os vários clãs do mesmo grupo étnico. Os jovens, aos quais é delegada a defesa do patrimônio do clã, geralmente estão fortemente armados.
Na verdade, existem frequentes incursões que desencadeiam verdadeiros conflitos entre os diferentes clãs, com inúmeras vítimas. Devido ao isolamento e fragilidade das instituições governamentais, existe o hábito generalizado de resolver as disputas da forma tradicional, muitas vezes com o uso de armas.
Mapa do Sudão do Sul (Foto: Mapsland)
Nos últimos dias, houve pelo menos 13 vítimas em conflitos intercomunitáros na área de Yirol. Ao mesmo tempo, em Cuibet, noutra zona da diocese, em confrontos vinculados à pecuária, as vítimas foram 8. A emissora local Rádio Tamazuj informa que se trata apenas de episódios de rixas de longa data que as autoridades não estão em condições de parar.
Os índices de desenvolvimento humano disponíveis, embora agora muito desatualizados e provavelmente não particularmente precisos, retratam uma situação grave. A taxa de alfabetização seria de 18%; 67,2% das crianças se matriculam na escola primária, muitas das quais não chegam ao final do primeiro ou segundo ano. As matrículas na escola secundária abrangeriam 3,6% dos garotos. 48,9% da população viveria abaixo da linha da pobreza; 13,6% estariam em condições de verdadeira miséria.
É neste contexto que se insere a ação social da Igreja Católica, que oferece uma boa parte dos serviços à população, tornando-se inevitavelmente um centro de poder que arrecada e dispensa recursos significativos.
A diocese de Rumbek permaneceu sem bispo por cerca de dez anos. Desde 2014 tem sido gerido pelo clero local, por isso é extremamente difícil, mesmo que se queira, resistir às pressões e às exigências econômicas e de serviços do seu próprio grupo, tanto de família como de clã. Reunir e distribuir recursos é, além disso, uma fonte de grande poder pessoal.
No Sudão do Sul, as elites transformaram essa dinâmica em um modelo de gestão política, definido por muitos analistas políticos como cleptocracia, que ainda hoje corre o risco de mergulhar o país em uma nova guerra civil. Não é surpreendente que a Igreja também tenha sido contagiada de alguma forma.
Com toda certeza, esta é a dinâmica subjacente ao ataque do bispo, estranho à sociedade local e que inevitavelmente teria posto em jogo equilíbrios consolidados. A pista foi imediatamente indicada pelas autoridades locais.
Já ontem o ministro interino da Informação do estado de Lakes divulgou à Rádio Tamazuj o seguinte comunicado: “Todo processo criminal aqui tem um motivo. Há casos de fugas com garotas, outros de roubo ao gado, outros de vingança. Este é diferente e o estamos tratando como um caso político dentro da própria Igreja Católica... parece ser algo dentro da própria administração porque (o bispo eleito) acaba de chegar e não tem problemas com ninguém”. No mesmo artigo consta que já haviam sido detidas 24 pessoas que deviam saber de algo, porque não se pode entrar armados no complexo da diocese e chegar à residência do bispo sem ser parados.
A agência de notícias católica ACI Africa também menciona alguns nomes. O mais importante é o do próprio coordenador da diocese, padre John Mathiang, no cargo desde dezembro de 2013. No artigo fala-se que uma dezena de nomes, obviamente incluindo o do coordenador, surgiram da análise de um telefone celular que havia caído de um dos agressores e involuntariamente escondido na queda pelo corpo do Padre Christian.
Que se trata de uma questão política, de política realmente baixa, fica claro também no comunicado divulgado ontem à noite pelo presidente Salva Kiir, denka, membro de um dos clãs residentes na diocese, que provavelmente deve ser interpretado como um forte chamamento a seus seguidores, no qual aponta que o bispo eleito está acima e além das querelas dos denka na área.
Claro, São Daniel Comboni afirmava que é preciso “salvar a África com a África”. Mas no Sudão do Sul o contexto geral é tão problemático, para não dizer degradado, que parece ser necessário um importante caminho propedêutico de formação e conversão, até mesmo dentro da própria Igreja.
Na verdade, o ataque ao bispo eleito de Rumbek não é um fato isolado. O novo arcebispo de Juba também passou pela pressão de alguns membros da cúria que tentaram difamá-lo para que o Papa repensasse a sua nomeação.
O Padre Christian já ontem pediu para orar pelo povo sul-sudanês que sofre e parece fortemente motivado a não se deixar intimidar. Mas é claro que seu ministério como bispo começa com obstáculos e vai precisar de todas as nossas orações, mas também de um forte guarda-chuva "político" para protegê-lo de outros problemas que poderiam colocar em risco sua segurança pessoal e até mesmo sua ação como pastor acima dos partidarismos.
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Sudão do Sul: a lei do clã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU