24 Março 2021
“Nem ataque de Ladaria ao Papa, nem tiro no pé de Francisco... O Papa continua arriscando suas reformas, embora a nota doutrinal de Ladaria sugira que não”, escreve José Lorenzo, jornalista espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 23-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ainda que fossem corretas as piadas de que ninguém na Igreja sabe o número de congregações femininas, ou quanto dinheiro tem os salesianos, ou o que pensa um jesuíta, não posso acreditar que o jesuíta Luis Ladaria Ferrer escreveria uma nota, como a que diz “não” às bênçãos a casais homossexuais, sem que o seu superior soubesse, o também jesuíta Jorge Mario Bergoglio.
E muito menos que um jesuíta e prefeito da Doutrina da Fé, com seu quarto voto de obediência, não consultasse o Papa sobre uma coisa assim, tendo ainda em conta que a nota foi assinada em 22 de fevereiro, dia da Cátedra de São Pedro.
Nem Ladaria, pressionado pelos setores mais conservadores – e temeroso do rumo que o Caminho Sinodal alemão toma em relação a essas bênçãos e outros assuntos –, publicara a nota como um ataque a Francisco, nem este se deu um tiro no pé dando sua aprovação explícita ao responsum ad dubium.
Nem parece crível que Ladaria e Francisco tenham ignorado a decepção que esta nota iria causar em todos aqueles que valorizam os gestos dados nestes oito anos de pontificado a favor dos homossexuais, e numa Igreja que, no entanto, continua a travar de passagem e sem assimilar Amoris Laetitia, a ponto de ter que ser decretado o Ano da Família, que celebramos desde 19 de março...
Nesta trama que apenas se pode ocultar o mal-estar reinante em alguns episcopados se teria que buscar as causas da nota doutrinal e o “faça-se” de Bergoglio a mesma. Uma nota que, vejamos, torna-se pública em meados de março, coincidindo com a notícia de que Francisco está promovendo uma visita canônica à Congregação para o Culto Divino poucos dias depois de aceitar a renúncia de seu prefeito, o cardeal Robert Sarah, um de seus maiores críticos; e quando a proibição de missas individuais na Basílica de São Pedro também é relatada, o que nada mais é do que uma forma da Secretaria de Estado de retirar de lá as missas de rito extraordinário.
Mais gestos que nem todos acabaram de compreender e que têm a ver com a gestão do tempo e dos processos, teoria que Francisco subscreve. Bergoglio sabe que não é sua vez de dar o passo para abençoar os casais homossexuais como se fosse um vínculo sacramental, mas também sabe que abriu o processo para que um dia acabe sendo assim.
Levando em consideração que não há outra instituição que saiba manejar a elasticidade do tempo como a Igreja, talvez seja demais pedir a Bergoglio, que já perguntou “quem sou eu para julgar os gays” e reivindicou benefícios legais civis para uniões homossexuais, para que agora possa lhes dar a bênção sacramental...
Mas ele deixou a porta entreaberta e a da reforma não fechará mais. Porque os cristãos, e não apenas os homossexuais, não permitiriam porque sabem, como o próprio Papa disse em 8 de fevereiro em seu discurso ao Corpo Diplomático, que “não é preciso ter medo das reformas, mesmo que exijam sacrifícios e não poucas vezes uma mudança de mentalidade”.
“Eles me acusam de heresias, mas há riscos que devo correr”, disse Francisco ao retornar de sua viagem histórica ao Iraque. Ele se referia àqueles que criticam seu compromisso com o diálogo e a fraternidade inter-religiosa. Mas também o criticaram quando, há cinco anos, ele assinou Amoris Laetitia, o que não mudou a doutrina, apesar das acusações, mas sua formulação simples revolucionou a pastoral da família.
Da mesma forma, suas palavras de carinho para com os gays mudaram definitivamente a forma como uma parte muito importante da Igreja agora se aproxima deles e até se deixa abençoar por sua presença, bem como se deixa abençoar pelos divorciados e recasados e não os pede um certificado quando eles se aproximam para comungar...
Francisco continua arriscando, embora a nota doutrinal de Ladaria sugira que não. Amante da literatura, Bergoglio provavelmente não ignora a advertência escrita por seu compatriota Borges em uma das histórias - Os Teólogos - que compõem O Aleph: “As heresias que devemos temer são aquelas que podem ser confundidas com a ortodoxia”. E desmontá-las leva tempo. Existe um processo. E contrário a elas, é claro.
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Por que o Papa Francisco “bendiz” a nota da Doutrina da Fé sobre as uniões homossexuais? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU