16 Junho 2020
"O 'corpus Domini', em sua originalidade, e depurado do conteúdo apologético que também o caracterizou originalmente, fala-nos dessa 'gratuidade' do dom de si, que o Filho de Deus abriu para a experiência de todo homem e de toda mulher, em 'seu' corpo e no corpo 'deles'".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em Come Se Non, 15-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A celebração do "Corpus Domini" deste ano, em condição de quarentena, nos surpreendeu e nos deu o que pensar, mais que o habitual. Talvez precisamente porque "obrigados" dentro de um regime supervisionado de ações e renúncias, vimos com singular evidência as dobras e as luzes, as sombras e as consolações da tradição. Em especial, a condição excepcional revelou, na trama profunda da festa, uma série de equívocos e "bloqueios" sobre os quais devemos fazer uma pausa para refletir, com serena avaliação. Fazemos isso baseando-nos no texto da Bula Transiturus que, há quase 800 anos, instituiu aquela festa na trama litúrgica das celebrações eclesiais.
No Bula Transiturus com a qual Urbano IV instituiu em 1264 a festa de Corpus Domini, colocando-a na primeira quinta-feira após a oitava do Pentecostes, uma de suas motivações, que certamente pode surpreender se relida hoje, é que no dia que celebra a "instituição da Eucaristia" - isto é, o início do tríduo pascal com a missa "in coena Domini" – devia-se constatar na época uma distração da Eucaristia devido aos ritos pascoais. O texto antigo diz palavras que nos impressionam muito:
"De fato, no dia da ‘Missa in Coena Domini’, no mesmo dia em que Cristo instituiu esse Sacramento, a Igreja Universal, empenhada na reconciliação dos fiéis, na bênção do crisma, no cumprimento do mandamento de lavagem dos pés e em muitas outras sagradas cerimônias, não pode prestar plena atenção à celebração desse grande sacramento."
Observação curiosa, que vem de um passado cheio de fé e devoção, onde, porém, as "cerimônias pascais" marginalizavam, com sua urgência e articulação, a centralidade da Eucaristia. A recuperação dessa centralidade, após as reformas iniciadas com Pio XII, deve nos conduzir a uma interpretação menos "exclusiva" de Corpus Domini no âmbito da experiência eucarística. Tendo sido mudada a "missa cotidiana" quanto a "missa in Coena Domini", o Corpus Domini também assume um significado diferente, diria menos exclusivo. A tradição reelabora seus conteúdos, através de uma delicada recalibração dos equilíbrios entre as suas partes.
Um segundo ponto de qualificação para essa festa é justamente o seu "conteúdo" eucarístico. O "fazer-se corpo" do Senhor entre os seus fala de uma superabundância do dom. O dom se identifica com seu doador, como diz a bula Transiturus:
"Liberalidade singular e admirável, na qual o doador vem como dom, e o dom e aquele que dá são a mesma realidade".
Isso deve nos fazer pensar nas categorias "minimalistas" com as quais frequentemente nos referimos à Eucaristia e à sua insuficiência. A festa de Corpus Domini pode nos ajudar a entender melhor até o "desconforto" que experimentamos durante a fase mais dura da "pandemia", quando, por causa do "confinamento civil", foi repetida a ideia de que a "missa" poderia prescindir do povo que celebra. E foram empregadas de novo as categorias minimalistas de "missa válida" e da "missa sem povo".
Curiosamente, até a missa "in coena Domini" sofreu essa releitura minimalista. Na festa de ontem, fica claro que não se trata de contestar essas categorias, mas de reconhecê-las como "categorias residuais". Poderíamos dizer assim: reconhecer a missa "válida" significa apreender sua lógica "mínima", totalmente excepcional, que não consegue expressar sua verdade plena. Uma missa, se for apenas "válida", não é plenamente ela mesma. Uma missa é missa se for "mais que válida". Isso é muito evidente no cerne da festa de ontem: de fato, a "festa de Corpus Domini" é uma solene superação ante litteram da categoria de "missa válida", porque na missa válida somente o padre pode fazer a comunhão, enquanto a missa de Corpus Domini vê em seu centro a comunhão de todo o povo.
Aqui podem nos auxiliar categorias clássicas e preciosas, como aquelas que identificam "ações supererrogatórias", ações que não são nem comandadas, nem proibidas nem permitidas, mas qualificam quem as realiza em termos de plenitude e de realização. O "corpus Domini", em sua originalidade, e depurado do conteúdo apologético que também o caracterizou originalmente, fala-nos dessa "gratuidade" do dom de si, que o Filho de Deus abriu para a experiência de todo homem e de toda mulher, em “seu” corpo e no corpo "deles". Um bom livro, recém lançado, por Stefano Biancu (Il massimo necessario. L’etica alla prova dell’amore, O máximo necessário. A ética à prova do amor, em tradução livre, Milano, Mimesis, 2020) nos ajuda a penetrar a fundo nessa diferença de ação, que a festa do Corpus Domini em um certo sentido leva à máxima evidência.
Um terceiro aspecto, estreitamente relacionado aos dois primeiros, refere-se, em particular, à relação entre celebração e adoração:
"Dedit igitur se nobis Salvator in pabulum", diz a bula, ou seja, "O Salvador se entregou ao nós como alimento" e, assim, orienta a festa a uma solene "comunhão" de todo o povo. É uma questão de "receber o sacramento", de entrar na lógica do "corpo do Senhor", de "fazer corpo com Ele". O acolhimento da bula ao longo dos séculos deslocou em parte o acento da comunhão para a adoração. A tal ponto que, se a leitura litúrgica da festa prosseguir com as categorias minimalistas de que falei anteriormente, é inevitável que se busque o "excedente" de significado da Eucaristia numa "adoração estática" e não na dinâmica da ação. Se a comunhão é "uma cerimônia externa", que é "ad validitatem" apenas para o padre, mas não para o povo, apenas a adoração resulta verdadeiramente espiritual.
E esse desconforto persiste ainda hoje, a ponto que no dia de ontem não raramente assistimos a uma surpreendente sobreposição de rito de comunhão e devoção de adoração, como se fossem "coisas diferentes", a ponto de que, tão logo acabado o "rito de comunhão” - que é o ponto mais alto da adoração eucarística - e talvez por causa da impossibilidade de "procissão" por causa da situação sanitária, ocorreu um momento de adoração que muitas vezes substituiu o rito de despedida da missa. Aliás, parece que as "normas" previssem justamente um "rito de comunhão" que se concluísse com uma devoção de adoração. Aqui é evidente que dois registros muito diferentes e não totalmente harmoniosos se sobrepõem.
Vamos tentar colocar ordem entre os dois registros:
– Onde ocorre o rito de comunhão, "aquele" é o ato de mais alta adoração, ação de graças, louvor e bênção. Uma "bênção eucarística" e uma "prestação de graças de adoração", acrescentados ao rito da comunhão, são simplesmente uma interferência entre registros diferentes. Isso não acontece apenas no dia de Corpus Domini. Frequentemente acontece também em 31 de dezembro, quando a bênção eucarística com o Te Deum segue a missa da vigília. O que é justificável como "conclusão da Véspera" não é plausível no final da celebração eucarística. Não se trata de "cerimônias fungíveis" às quais "prender", a qualquer custo, o elemento qualificante da "bênção eucarística".
– A tradição de "procissão externa" à Igreja diz respeito a uma experiência diferente do celebrar eucarístico eclesial. Tem mais a ver com o mundo, com a lógica eucarística do secular, com a relação "extra moenia". Mas o que se justifica "ad extra" não é imediatamente traduzível "ad intra".
– Eventualmente "depois da despedida" pode ser dada uma "extensão de adoração", mas isso não deveria acontecer "dentro da sequência ritual". Aqui, parece-me, as normativas que muitas dioceses adotaram parecem pouco claras. Cito uma, que retoma o cânone comum, como foi seguido em muitas dioceses e paróquias:
“Após a distribuição da comunhão, a Eucaristia é colocada no tabernáculo e a hóstia consagrada é exposta no ostensório, enquanto se executa uma canção eucarística; ou, se não for usado o ostensório, deixa-se no altar a píxide fechada com a tampa. Quando se usa o incenso, o incenso é infundido no turíbulo e se incensa a Eucaristia. Depois, quem preside faz a oração após a comunhão. Pode-se prosseguir com um tempo de adoração eucarística".
Uma prática assim articulada perde uma evidência central também para a bula Transiturus: o centro da relação com Cristo é "suscipere sacramentum". Em normativas assim concebidas, continuam a influenciar aquelas teorias e práticas do "uso do sacramento", que equiparam "visão" e "manducação", tornando a primeira uma versão alternativa da segunda, muitas vezes pensada como "mais espiritual". A missa se realiza com a comunhão, que é a forma mais alta de adoração. Depois, terminada a celebração eucarística e dissolvida a assembleia, é possível fazer procissões ou ficar em adoração. Mas se esse gesto é feito dentro da celebração, alteram-se os equilíbrios internos da sequência ritual e há o risco de reduzir a "comunhão" a uma "cerimônia externa" menos intensa que a adoração. Se no dia de Corpus Domini chegarmos a essas sobreposições e confusões, como poderemos voltar para celebrar as missas dominicais e cotidianas, com toda a riqueza de que são generosas guardiãs?
Todas essas luzes e sombras apareceram de modo mais evidentes graças à quarentena sanitária causada pela pandemia, que revela os pensamentos secretos de nossos corações. Graças às máscaras, estamos mais nus. Mas essa nudez não nos prejudica, pode nos fazer crescer, inclusive levando-nos a redescobrir as verdadeiras intenções com as quais a tradição nos orienta e nos conduz. Desde que ouçamos realmente a sua surpreendente palavra e sua necessidade de mergulhar na ação ritual comum, sem dar crédito apenas aos nossos hábitos mais enraizados, mesmo àqueles que nos parecem os mais devotos.
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Corpus Domini e celebração eucarística: dois registros a serem recalibrados. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU