05 Junho 2020
"A crise da pandemia foi um juízo, pois revelou impiedosamente em que nível de consciência pessoal e eclesial, tanto nos pastores como nos fiéis, penetrou a mensagem do Vaticano II sobre a natureza da Igreja, o ministério ordenado e a liturgia".
A reflexão é de Goffredo Boselli, monge italiano e especialista em liturgia, em artigo publicado por Vita Pastorale, junho de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muitas vezes foi reiterado nos últimos meses que a coisa mais errada em uma crise é desperdiçá-la. Toda crise é uma oportunidade. Pois bem, no tempo da epidemia, assistimos à crise de um aspecto fundamental da liturgia, ou seja, que a Eucaristia é o sacramento da Igreja e, por isso, implica a assembleia dos fiéis, que é a própria essência da Igreja: o povo de Deus por ele convocado. Proibida a celebração comunitária da Eucaristia, com certo automatismo muitos presbíteros continuaram celebrando: que o povo de Deus estivesse presente ou não parecia ser uma variável irrelevante. Porém a grande tradição da Igreja atesta que a Eucaristia não deve ser comemorado pela mera devoção de quem é ordenado.
Para poder celebrar sozinho e sem assistente no eremitério de Tamanrasset, em janeiro de 1909, Charles de Foucauld obteve, com muito esforço, a autorização extraordinária que Pio X concedeu-lhe pessoalmente. É, de fato, somente com o Código de Direito Canônico de 1983 que a severa proibição de missas privadas, de fato solitárias, foi abolida, uma vez que o cânon 906 agora as autoriza "por uma causa justa e razoável". Mas se para a lex canônica a piedade pessoal do presbítero é considerada uma causa justa, para a lex orandi não pode ser, porque o "nós" da oração litúrgica nunca poderá se tornar um "nós" formal e muito menos pleonástico. O que nos meses da emergência sanitária entrou em crise, em diferentes níveis, é a delicada e ainda vital relação entre a Eucaristia e a Igreja. E, consequentemente, o entendimento de que o presbítero preside a assembleia litúrgica, porque preside a comunidade, e não vice-versa. É porque preside a construção da comunidade cristã que o presbítero preside o sacramento de sua unidade, e não o contrário. Esse é o significado do cânon VI do Concílio de Calcedônia (451), que proíbe ordenações absolutas, declarando-as nulas e sem efeito "para vergonha dos que as ordenaram".
O presbítero deve ser sempre ordenado para uma comunidade, porque ninguém é presbítero para si mesmo, mas em relação ao serviço de uma parte do povo de Deus. A crise da pandemia foi um juízo, pois revelou impiedosamente em que nível de consciência pessoal e eclesial, tanto nos pastores como nos fiéis, penetrou a mensagem do Vaticano II sobre a natureza da Igreja, o ministério ordenado e a liturgia. Como escreveu Enzo Bianchi: "A reforma litúrgica do Vaticano II mudou os ritos, mas não mudou as mentalidades".
Que mentalidade não mudou? Aquela medieval e tridentina que provou estar ainda muito enraizada, porque desde o segundo milênio até o Concílio Vaticano II foi teorizada, ensinada e praticada. Uma mentalidade que consiste em entender os presbíteros e seu ministério de maneira autônoma e isolada, sem qualquer relação com outros homens e mulheres batizados.
Nessa concepção, a ordenação confere o poder pessoal de consagrar e absolver, o que levou, segundo o eclesiologista Hervé Legrand, "a uma autonomização e a uma divisão dos sacerdotes da Igreja". Visto que o presbítero tem o poder de consagrar, ele pode celebrar a Eucaristia sozinho. Mas isso pode acontecer não apenas no nível litúrgico, mas também no governo da comunidade, negando qualquer dimensão sinodal. O Vaticano II ensina que os batizados não são receptores passivos de um serviço pastoral, mas são corresponsáveis na vida da Igreja, assim como não são receptores dos sacramentos, mas celebrantes dos mistérios sagrados.
No documento O Sacerdócio Ministerial de 1970, a Comissão Teológica Internacional declara: “O sacerdócio ministerial não está separado da Igreja; ele se coloca dentro da assembleia, sob os sacramentos. [...] Afinal, o povo não pode realizar seu ministério sem o ministro provido de caráter sacerdotal, mas este último - bispo ou sacerdote - não pode exercer seu ofício sacerdotal sem o povo, pois ele existe apenas dentro da comunidade sacerdotal”. O único mediador é Jesus Cristo. Um dos princípios fundamentais da reforma litúrgica é que o presbítero não é quem celebra a Eucaristia e os fiéis aqueles que assistem, mas toda a assembleia celebra a Eucaristia e o presbítero a preside. É toda a assembleia que está celebrando. Aliás, "toda a assembleia é liturgia", declara o Catecismo da Igreja Católica (1144).
O Concílio pode ser lido: "As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja. [...] Portanto, tais ações pertencem (pertinente) a todo o corpo da Igreja, manifestam-no (manifestant) atingindo (afficiunt), porém, cada um dos membros de modo diverso segundo a variedade de estados" (SC 26). Embora de maneiras diferentes, as celebrações eucarísticas pertencem a todo o povo de Deus, por isso o "implicam", ou seja, o povo de Deus é uma parte essencial e não uma parte adicional.
Na segunda metade do século XI, enquanto Pier Damiani escreve o Dominus vobiscum, Guerrico d'Igny prega ainda: "O sacerdote não consagra sozinho, nem sacrifica sozinho, mas toda a assembleia dos fiéis consagra e sacrifica com ele". Fiel a esse equilíbrio antigo e tradicional, a Constituição litúrgica do Vaticano II declara: "Os fiéis dão graças a Deus não [...] só pelas mãos do sacerdote, mas juntamente com ele (una cum ipso) [...] por Cristo mediador” (cf. SC 48).
Afirmando que na oferenda eucarística a única mediação é a de Jesus Cristo, essa passagem nega qualquer possibilidade de fazer do presbítero celebrante um mediador entre Deus e seu povo. Nos dias da pandemia, espalhou-se a ideia de que o presbítero celebrava sozinho, mas a favor dos fiéis ausentes, veiculando efetivamente a visão do sacerdote como mediador entre Deus e seu povo. É porque o único mediador Jesus Cristo oferece ao Pai as ações de graças, "per ipsum, et cum ipso, et in ipso" também a Igreja, que é seu corpo, as oferece. É porque todo o corpo da Igreja as oferece que cada um de seus membros, laico ou ministro ordenado, as oferece.
Não faltaram presbíteros na Itália e no exterior que escolheram não celebrar a Eucaristia sozinhos, mas compartilhar o jejum eucarístico imposto com seus fiéis, preferindo orar com eles, através das mídias sociais, a liturgia das horas ou compartilhar a lectio das Escrituras, imitando Inácio de Antioquia: "Eu me refugio no Evangelho, como na carne de Jesus".
Ao pároco que o convidava a participar da celebração eucarística junto com uma dezena de outras pessoas através da plataforma Zoom, um jovem crente respondeu: “Não, obrigado, porque nessa missa só você se alimentará do pão e do vinho eucarísticos. É como se você estivesse nos convidando para jantar em sua casa e estivéssemos sentados à mesa observando enquanto só você come". A realidade é superior à ideia.
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Toda a assembleia celebra a Eucaristia. Artigo de Goffredo Boselli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU