Políticas públicas para cidadãos em situação de rua são um castelo de areia. Entrevista especial com Igor Rodrigues

Segundo o sociólogo, políticas públicas para cidadãos em situação de rua são formuladas sem analisar a realidade concreta das pessoas e o Estado segue “dando tiros no escuro”

Foto: Jorge Araújo | Fotos Públicas

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin | 07 Mai 2020

A pandemia de covid-19 escancara inúmeros problemas estruturais do Brasil. Um deles é a situação da população de rua, que atravessa a história do país desde o período da Colônia e tampouco conseguiu ser resolvido com a expansão das políticas públicas nos últimos anos. “Percebemos que essa população tem dificuldade de acesso a itens básicos de saúde, como, por exemplo, lavar as mãos”, diz Igor Rodrigues, coordenador do relatório “Cidadãos em situação de rua: dossiê Brasil - grandes cidades”, que reúne informações sobre o cotidiano das pessoas que vivem em situação de rua a partir de uma série de pesquisas realizadas por pesquisadores de diversas universidades durante quatro anos.

Segundo ele, a pandemia está evidenciando problemas que fazem parte do cotidiano das pessoas que vivem em situação de rua, como a dificuldade de ter acesso aos benefícios oferecidos pelos programas sociais. “Os benefícios assistenciais não chegam até essa população. Acabamos de ver essa situação, pois eles não têm aplicativos, celulares, nada disso. É uma população que precisa desses benefícios e não consegue acessá-los”, relata. A impossibilidade de acesso aos programas sociais mostra que “o histórico das políticas públicas no Brasil é um histórico fracassado: a população de rua aumentou e os programas sociais não conseguiram atingir essa população de forma significativa”, reitera. Além disso, menciona, pessoas que vivem nas ruas sofrem violência física, sexual, patrimonial e institucional, quando buscam o auxílio das instituições de apoio.

Apesar de a população de rua estar presente em praticamente todas as cidades brasileiras, Rodrigues destaca que a sociedade “não sabe quase nada” sobre ela porque “não há investigações qualitativas no cenário nacional, não há diagnóstico, não há uma preocupação histórica na produção de dados, no sentido de quantificar e qualificar essa população”. O “desconhecimento generalizado”, complementa, “em parte, é consequência das instituições governamentais que pouco sabem do cotidiano em si da cidade”. Na avaliação dele, o maior desafio na elaboração de políticas públicas para as pessoas que estão em situação de rua consiste em “entender essa população, ver qual é o ponto de comunhão que torna esses indivíduos iguais. A noção de cidadania é importante justamente para não percebê-los somente como se fossem uma coisa, como ‘eles e nós’. Na realidade, somos todos nós”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Rodrigues apresenta os principais resultados do relatório e explica as razões pelas quais houve um aumento de pessoas morando na rua nos últimos anos. “Nós interpretamos esse aumento do número de cidadãos em situação de rua como vinculado a alguns fatores, entre eles, não só a crise econômica, mas também em decorrência da fragilização dos vínculos afetivos e sociais e da diminuição da solidariedade na sociedade”, conclui.

Igor de Souza Rodrigues (Foto: Arquivo pessoal)

Igor de Souza Rodrigues é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e em Direito pelo Instituto Vianna Júnior, e é mestre e doutor em Ciências Sociais pela UFJF. Foi editor-chefe da Revista Eletrônica de Direito Investidura e realizou pesquisas na Universidade de Humboldt, na Alemanha, entre 2015 e 2016.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais eram os objetivos da pesquisa que deu origem ao relatório “Cidadãos em situação de rua: dossiê Brasil - grandes cidades”, que aspectos foram observados e em quais cidades a pesquisa foi desenvolvida?

Igor Rodrigues – Não existe um diagnóstico qualitativo no Brasil sobre a população em situação de rua, que nós chamamos, nesse estudo, de cidadãos em situação de rua. Há um dado quantitativo de 2009, do Ministério de Desenvolvimento Social, e também um dado quantitativo de 2016, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Nos dados do Ministério de Desenvolvimento Social não entraram na contagem as cidades de Belo Horizonte, São Paulo, Fortaleza e diversas outras capitais. O dado do Ipea, por sua vez, constatou que há cem mil pessoas em situação de rua, mas não levou em conta as pequenas cidades, então, existe uma distorção.

Percebemos, diante disso, que não existem muitos dados no Brasil sobre a condição dos cidadãos em situação de rua, principalmente dados qualitativos sobre como é a vida e o cotidiano dessas pessoas e sobre que tipo de dificuldades, dramas e sonhos elas comungam – e essas foram as questões centrais que procuramos discutir no trabalho. A pesquisa foi realizada em oito grandes cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Juiz de Fora, João Pessoa e Vitória e foi desenvolvida por pesquisadores de diversas universidades, como USP, UFRJ, UERJ, UFF, UFES, UFJF, UFPB, e também por uma pesquisadora da Universidade de Humboldt, na Alemanha. Então, a pesquisa contou com um grupo de pesquisadores sediado na UFJF e procuramos entender que tipo de cotidiano essa população vivencia.

Outra questão relevante é que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE não considera a população em situação de rua. Isso porque o padrão do IBGE é domiciliar e como essa população é alijada do direito à moradia, ela não entra no censo.

IHU On-Line - Qual era a visão dominante sobre os moradores de rua e quais são as novidades do relatório sobre a situação dos moradores de rua em relação ao que se pensava anteriormente?

Igor Rodrigues – Primeiro é importante destacar que nós nos referimos a essas pessoas como cidadãos em situação de rua e é preciso, igualmente, desfazer uma grande confusão conceitual em relação a situação deles. Para isso, fizemos no trabalho um percurso histórico desde o Brasil Colônia para desfazer alguns equívocos em relação à conceituação do agrupamento.

Muitos teóricos conceituam essas pessoas como sem-teto e isso é um equívoco, porque não se trata apenas de desprovimento de moradia; a questão da situação de rua é muito mais complexa e não envolve apenas a ausência de um teto. Pelo contrário, algumas pessoas estão debaixo de um teto e estão em situação de rua, como os albergados. O mesmo acontece com aquelas pessoas que realizam um movimento pendular entre a casa e a rua, ou seja, ficam três dias em casa e dormem outros três dias na rua. Isso ocorre principalmente entre os coletores de material reciclável que às vezes estão trabalhando numa região e não querem se deslocar de um ponto a outro da cidade e acabam dormindo na rua, assim como os profissionais do sexo e uma série de outros indivíduos que fazem parte desse agrupamento.

A segunda categoria com a qual não concordamos é a de morador de rua, porque quando falamos em morador de rua, estamos essencializando os predicados, como se existisse um morador de rua, quando na verdade o que existe é uma situação de rua. Ninguém é morador de casa por natureza ou morador de rua por natureza, ou seja, a rua não é um predicado da pessoa, mas da situação. Portanto, tentamos afastar essa nomenclatura.

Percebemos que o conceito de pessoa em situação de rua nasceu nos anos 1990, com a ideia constitucional de direitos. No entanto, quando falamos em pessoa em situação de rua, não estamos pensando as pessoas como agrupamento e acabamos fragmentando este universo meramente à questão individual, ou seja, uma pessoa em situação de rua. Mas o objetivo do estudo é justamente percebê-los como um agrupamento nacional que tem direitos. Se os chamamos de população, aparece outro conflito, porque existiram várias populações em situação de rua na história da humanidade que foram alijadas de direitos. Assim, para pensar tanto a questão de direitos quanto a unidade do grupo, optamos pelo conceito de cidadãos em situação de rua.

Esse grupo é caracterizado a partir de vários fatores: o desprovimento material, a irregularidade financeira e a irregularidade de moradia, mas isso é apenas uma parte do problema. Há, de outro lado, um desprovimento disposicional, de capital cultural, que envolve disciplina e capacidade de concentração. Na pesquisa de campo, reparamos que esses indivíduos tinham baixa autoestima e essa é uma questão que acaba dando conformidade ao grupo. Uma outra característica é o vínculo afetivo familiar, ou seja, o capital social – as pessoas com quem eles se relacionam, os amigos etc. Resumindo, são três formas que configuram o grupo: capital econômico, cultural e social.

 

Cidadãos em situação de rua

 

Também percebemos que são vários os fatores que levam esses indivíduos à situação de rua. Discordamos veementemente da ideia de que a rua é uma questão de escolha – escutamos muito esse discurso que atribui a condição do indivíduo a uma escolha. As pessoas têm esse entendimento porque não percebem o leque que está dado para aqueles indivíduos. No caso das transexuais que entrevistamos, a situação é a seguinte: ou elas escolhem sair para a rua ou escolhem ficar num contexto de violência doméstica. Aí a rua surge, sim, como uma escolha, mas é preciso perceber o leque que está dado para o indivíduo, ou seja, quais são as opções que ele tem. Não podemos perceber esta opção como uma escolha racional de vontade, de que o indivíduo tem tudo e escolhe morar na rua por uma contravenção ou por rebeldia. Através do relato das pessoas, percebemos que a grande maioria quer sair dessa situação e não deseja permanecer na rua.

IHU On-Line – Qual é o perfil dos cidadãos em situação de rua?

Igor Rodrigues – Acerca do perfil, também derrubamos alguns mitos, como, por exemplo, o de que eles não trabalham. O que qualifica este grupo? O trabalho precário, exaustivo, ligado à força física: trabalhos como o de vendedor ambulante, de coletor de material reciclável, de engraxate, os quais são mal remunerados e avaliados pela sociedade como humilhantes, bicos, não dignos de serem percebidos como trabalho ou de ter uma formalidade jurídica trabalhista de emprego.

Percebemos que grandes empresas e grandes negócios acabam se sustentando com essa força de trabalho. Por exemplo, o ramo da reciclagem não emprega quase ninguém na ponta. Então, as empresas que lucram com a atividade da reciclagem simplesmente sabem que existem essas pessoas, utilizam do trabalho delas para obter lucros, mas não as empregam e não lhes dão nenhum tipo de garantia, como a previdenciária. Além disso, são trabalhos insalubres, em que a pessoa mexe diretamente no lixo. Constatamos que algumas pessoas trabalham de 12 a 14 horas por dia e dormem embaixo do carrinho em que carregam o material reciclado. Ou seja, é uma pessoa que dorme dentro do seu instrumento de trabalho.

Fotografia produzida para o relatório "Cidadãos em situação de rua: dossiê Brasil - grandes cidades" (Guilherme Landim)

IHU On-Line - Como é o cotidiano dos cidadãos com os quais conversou durante a pesquisa?

Igor Rodrigues – Identificamos nos relatos deles que um ponto comum é a ampla violência que sofrem no cotidiano das cidades. Ou seja, esta é uma população muito violentada não só em termos físicos. Eles sofrem uma violência patrimonial, porque os objetos que carregam consigo, como mochilas e cobertores, são tratados como lixo. Sofrem também uma violência simbólica: eles relatam que quando entram nos supermercados, as pessoas olham para eles como se fossem roubar algo. Muitas vezes a condição de sujeira, por conta da higiene precária, também cria um estigma social em relação a essas pessoas e, de certa forma, esses cidadãos em situação de rua também configuram uma ruptura estética.

Fotografia produzida para o relatório "Cidadãos em situação de rua: dossiê Brasil - grandes cidades" (Guilherme Landim)

Eles também sofrem violência sexual, especialmente entre as trans, e violência institucional: relatam que quando buscam ajuda em instituições, encontram mais violência. Por exemplo, quando buscam a ajuda da polícia para resolver algum conflito, relatam que são tratados como a parte “errada” na situação. Da mesma forma, dizem que quando buscam instituições de acolhimento, lá a sua dignidade é violada. Um exemplo disso é o caso da Laura, uma mulher de Fortaleza, que abortou porque teve uma complicação na gravidez em decorrência do uso do crack. Ela nos contou que quando esteve no hospital, a médica mostrou o feto morto para ela e disse: “Você é um monstro”. Esta é uma situação complicada, mas relata como aquele indivíduo que está extremamente fragilizado e numa situação de vulnerabilidade não é amparado pelas instituições e diversas instâncias sociais e governamentais. Ao contrário, ele é massacrado pelas questões e dificuldades que vivencia.

IHU On-Line - O Estado consegue chegar até essas pessoas? Como se dá o acesso a programas assistenciais e de apoio e a serviços básicos como emissão de documentos e atendimento à saúde?

Igor Rodrigues – O Estado chega a essas pessoas de maneira muito precária, primeiro, porque há um histórico de políticas higienistas, sanitaristas e repressoras que afasta esses cidadãos do Estado, e o Estado, por sua vez, tem dificuldade de permear o cotidiano dessas populações.

Em segundo lugar, o Estado não faz um mapeamento da vida dessas pessoas. Se alguém tem um problema de saúde, qual é o primeiro passo para realizar o tratamento? É ter um diagnóstico. Nesse sentido, não adianta criar uma política pública e não ter um diagnóstico em mãos no sentido de compreender essa população, ou seja, o que eles sentem, qual é a dificuldade, que lugares frequentam, quantos são homens e quantas são mulheres, como é a vida deles, quais são os seus medos, sonhos, planos, o que eles fazem, quanto ganham etc. Tudo isso tem que entrar no diagnóstico, mas no Estado há uma ausência muito grande de dados e de produção de dados. Qual é o resultado disso? O Estado dá tiros no escuro e as políticas públicas acabam sendo um castelo de areia, baseadas numa lógica impositiva em que se pensa em criar uma política para cidadãos em situação de rua sem partir da realidade concreta.

Há uma ampla dificuldade dessa população em acessar os benefícios sociais, sendo que ela é uma das mais necessitadas. Por exemplo, eles não têm acesso ao Bolsa Família ligado ao Cadastro Único, não têm assistencial social, não são atendidos pelo Sistema Único de Assistência Social - Suas, pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social - Creas. Todas as entidades que deveriam ter maior sensibilidade em relação a esses dramas do agrupamento são justamente aquelas que essas pessoas não conseguem acessar.

Cerca de 70% dessa população não tem acesso ao Bolsa Família, aos serviços de emissão de documentos – a grande maioria não tem documentos básicos e sequer sabe a sua idade. Eles são também alijados da vida burocrática e racional do Estado em relação à documentação, pois não têm lugar para guardar os documentos e a política pública não pensa que seria preciso um lugar para guardá-los. Eles também têm dificuldades de tratar doenças crônicas, porque o tratamento dessas doenças exige uma “papelada”. Essa não é uma população que vota, porque não tem título de eleitor nem documento de identidade. Tampouco há incentivo à participação deles e, quando votam, são recriminados de certa forma. Narram que às vezes o olhar dirigido a eles é um olhar de violência. Então, essa é uma população que acabou sendo afastada das políticas do Estado.

Fotografia produzida para o relatório "Cidadãos em situação de rua: dossiê Brasil - grandes cidades" (Guilherme Landim)

IHU On-Line - Como a sociedade em geral vê o cidadão em situação de rua? Como essa visão impacta o desenvolvimento efetivo de políticas públicas para a população de rua?

Igor Rodrigues – A sociedade vê essas pessoas de uma maneira perversa e compele as instituições de controle, como a polícia, a fazer uma política de controle em relação a esses indivíduos. Por exemplo, quando essas pessoas frequentam uma praça, não são vistas do mesmo modo de quando eu e você estamos numa praça. Essa população não pode estar na praça porque gera um incômodo. Então, na pesquisa também tentamos desconstruir a noção de invisibilidade, porque essa não é uma população invisível.

Eles relataram um amplo espectro de intolerância nas cidades. Essa população é invisível em parte porque existe uma invisibilidade social, mas existe, de outro lado, uma grande visibilidade penal, ou seja, eles são superexpostos e são intolerados. A sociedade que se utiliza desses indivíduos, do seu serviço como “chapa”, dos profissionais do sexo à noite, do serviço de reciclagem, do serviço de engraxate, e apresenta uma pseudossolidariedade, é a mesma que compele órgãos de controle a reprimir os cidadãos em situação de rua e que acaba tratando esses indivíduos com perversidade. Então, a sociedade é uma só: a mesma que estende solidariedade é a que apresenta o controle penal, as instituições repressoras, que tratam a questão como um problema de polícia.

IHU On-Line - Nos últimos anos houve um aumento da população de rua nas grandes cidades do Brasil. Como o senhor interpreta esse aumento? Quais foram as razões desse fenômeno?

Igor Rodrigues – Sempre houve um aumento e mapeamos isso desde a época do Império, onde havia relatos de crimes de vadiagem e mendicância. No começo do século XX, essas pessoas eram vistas como “loucos de rua”, “o homem do saco”, especialmente quando os ciganos vieram para o Brasil. Quando passamos pela verticalização das cidades, em 1950, também surgiu o morador de rua e, nos últimos anos, essa população cresceu exponencialmente. Em São Paulo houve um aumento significativo dos cidadãos em situação de rua, mas em dados oficiais, esse número é mascarado: houve um aumento muito maior de pessoas nessa situação, mas também houve uma diminuição da qualidade de vida dessa população.

Nós interpretamos esse aumento do número de cidadãos em situação de rua como vinculado a alguns fatores, entre eles, não só a crise econômica, mas também em decorrência da fragilização dos vínculos afetivos e sociais e da diminuição da solidariedade na sociedade. O crescimento da violência doméstica é outra questão que mapeamos e que acaba influindo nesse fenômeno. A dificuldade da formalização dos empregos e das garantias previdenciárias também são fatores relevantes. O uso de drogas também é um fator, mas todas as classes sociais usam drogas e não dá para dizer que somente os cidadãos em situação de rua sofrem com esse problema.

IHU On-Line - O que seus estudos revelam acerca da saúde mental e da saúde em geral da população de rua?

Igor Rodrigues - Nós buscamos entender a saúde como uma concepção ampliada de saúde, portanto, saúde não é só ausência de doença; compreende também rotina, qualidade de vida, hábitos alimentares, estresse, autoconfiança e até mesmo a questão da autoestima. Tudo isso influencia a saúde se pensada num sentido ampliado.

Percebemos que essa população tem dificuldade de acesso a itens básicos de saúde, como, por exemplo, lavar as mãos. Em tempos de covid-19, as pessoas têm disponibilizado garrafinhas com água e sabão para a população que mora na rua, mas veja quanto tempo a sociedade demorou para visualizar que essa população não tinha acesso a lugares para lavar as mãos. Veja com que atraso estamos percebendo essa situação de dificuldade. Foi preciso uma questão sanitária desse porte para percebermos essa situação. Além disso, eles encontram dificuldades para tomar banho, lavar as roupas, e até para guardar os carrinhos. Se eles querem dormir no albergue, onde vão guardar o carrinho de coleta? Acabam tendo que dormir debaixo do carrinho, então alguns acabam com pneumonia. Por isso, é importante perceber a saúde como um conceito geral.

Percebemos que muitas instituições destinadas a cuidar da saúde desses cidadãos são as que acabam violando a dignidade deles. Eles narram que a maioria das entidades que praticam essa violação são as instituições que justamente deveriam cuidar deles, emancipá-los, promovê-los. Há o caso de um rapaz, por exemplo, que chegou a um hospital e a médica, vendo a condição de higiene precária, mandou jogar Bom Ar [spray aerossol aromatizador de ambiente]. Veja que neste caso o spray pode causar alergia na pessoa, mas também tem a questão da humilhação, da destruição da dignidade desses indivíduos - essa é uma das razões pelas quais preferimos nos referir a eles como cidadãos, para manter a dignidade deles.

IHU On-Line - O senhor também pesquisou a incidência do crack entre as populações de rua. Como compreender a perenidade dessa droga entre os moradores de rua? Quais os maiores erros para o enfrentamento atualmente e quais os desafios para enfrentar esse problema de forma efetiva?

Igor Rodrigues – Estudei a questão do crack no Ministério da Justiça. Cidadãos de rua não são o mesmo que usuários de crack, mas esses universos se conversam. Todas as classes sociais usam drogas: esteroides, ansiolíticos, que são amplamente consumidos pelas classes mais ricas, tranquilizantes, sedativos e por aí vai. Falamos muito do crack, mas não se fala tanto da cocaína, da metanfetamina. O crack nada mais é do que a cocaína suja fumada. Então, a via de uso é que é diversa, mas observe como damos muito mais atenção ao crack do que à cocaína.

Claro que o crack gera diversos prejuízos à saúde do indivíduo, problemas pulmonares, alimentares, problemas relacionados ao sono, à imunidade. Entretanto, o grande problema é que ele está comungado com a questão de rua: o indivíduo que dorme na rua usa crack e é acometido de uma pneumonia. Ou seja, a rua comungada com o crack traz diversos prejuízos para essas pessoas. É claro que todas as classes usam drogas, mas o efeito do uso das drogas não é o mesmo para todas as classes. Esses moradores de rua enfrentam efeitos mais perversos relacionados a prejuízos concretos da droga no corpo. Em segundo lugar, enfrentam prejuízos sociais muito mais graves porque são rotulados, estigmatizados, sofrem muito mais controle e são vítimas da “batida” da polícia. Assim, sofrem em várias dimensões e os prejuízos são somados.

IHU On-Line - Como analisa as políticas públicas que vêm sendo desenvolvidas para a população de rua? Quais os limites e potencialidades?

Igor Rodrigues - O histórico das políticas públicas no Brasil é um histórico fracassado: a população de rua aumentou e os programas sociais não conseguiram atingir essa população de forma significativa. Pelo contrário, essas pessoas têm dificuldades de acessar os benefícios.

Os albergues têm uma baixa aderência porque os cidadãos em situação de rua reclamam de diversos fatores, como a falta de individualidade, afinal de contas, todo mundo quer ter um pouco de individualidade. Às vezes, a política pública reclama dessa questão e sugere que é preciso promover os laços afetivos e familiares, mas não percebe que é preciso criar albergues para casais. Falam que é preciso criar uma política pública para a promoção dos laços e vínculos afetivos, mas, na hora de dormir, essa população tem que se separar ou dormir na rua. De um lado, se diz uma coisa e, de outro, há uma contradição. Outra coisa é com relação ao animal: às vezes, eles têm um carinho pelo seu animal de estimação e não vão deixá-lo para trás. E, ainda, às vezes, o animal vai ficar na rua porque não tem lugar para ele dormir no albergue.

 

Desafios das políticas públicas

 

As políticas públicas são muito distantes da realidade desses indivíduos justamente porque não conseguem mapear a realidade, não há um diagnóstico sobre a situação dessas pessoas. Criam situações impositivas, modelos adaptados e ruins, inspirados em outros países e que não têm relação com a nossa realidade. Todas essas questões são desafios a serem enfrentados. O maior desafio não é só da efetividade das políticas públicas a serem criadas, mas é o desafio simbólico de entender essa população, ver qual é o ponto de comunhão que torna esses indivíduos iguais. A noção de cidadania é importante justamente para não percebê-los somente como se fossem uma coisa, como “eles e nós”. Na realidade, somos todos nós.

Entendemos a questão da cidadania como ponto de comunhão que eles têm com todas as outras pessoas: são cidadãos brasileiros como qualquer outro e têm que ter sua dignidade promovida e seus direitos garantidos. O direito à propriedade, por exemplo, é um direito que faz parte dessa concepção ampliada de cidadania, e se as outras pessoas têm esse direito, por que eles não têm? Temos ainda a questão do cuidado, do atendimento, da alimentação, dos documentos, do voto, ou seja, o direito de ter acesso a benefícios como qualquer outra pessoa. Usamos a noção de cidadania para pensarmos uma comunhão.

IHU On-Line - Como vivem e qual a situação, especificamente, das mulheres em situação de rua?

Igor Rodrigues – Em relação às mulheres, há relatos de submissão dentro de casa, imposição de um relacionamento abusivo e, então, a rua se torna um processo de ruptura, de romper com aquele cenário em que elas se encontravam. Mas a ida para a rua não é o ponto final da exclusão, porque estar em situação de rua é extremamente complicado. Estar em situação de rua e ser mulher é uma situação ainda pior: há casos de gravidez, de violência sexual, dificuldades no cuidado da saúde e ainda existem poucos albergues para as mulheres. Todas essas são questões cumulativas que, na situação de rua, geram ainda mais prejuízos para a questão de gênero.

O mesmo também ocorre com transexuais que também investigamos. As pessoas trans vão para a rua dentro do processo de ruptura, pois a família se envergonha delas ou não as aceitam. Como existe uma dificuldade de acesso de pessoas trans ao mercado de trabalho, elas acabam vendo na prostituição uma alternativa. E aí não é uma questão de escolha, mas sim de alternativa que se coloca dentro de um cotidiano de extrema violência.

IHU On-Line - De que forma a pandemia da covid-19 tem impactado as populações de rua?

Igor Rodrigues – Com a pandemia, estamos vendo como há uma dificuldade enorme de acesso a inúmeras coisas. Vou citar apenas um ponto: a questão da higiene, a necessidade de lavar as mãos. Mas ainda tem a questão do consumo, pois se todo o comércio fecha, essas pessoas não conseguem se alimentar, porque contam, às vezes, com bares e restaurantes que dão almoço. Com o comércio fechado, elas não têm a quem recorrer e, também, não têm pessoas a quem poderiam pedir ajuda.

Os benefícios assistenciais não chegam até essa população. Acabamos de ver essa situação, pois eles não têm aplicativos, celulares, nada disso. É uma população que precisa desses benefícios e não consegue acessá-los. Há também a questão da moradia: fala-se que temos que ficar dentro de casa, mas em que casa eles vão ficar? E no albergue, como vai ser se lá não tem nenhum tipo de individualidade, questões sanitárias e de isolamento? O albergue é coletivo e eles reclamam que lá falta privacidade. Como já disse, todo indivíduo tem que ter sua individualidade preservada e no albergue não há nenhum tipo de individualidade.

Essas questões que estamos colocando ressurgem agora, mas é uma série de questões que a sociedade, de certa forma, não vê. Primeiro, porque desconhece muita coisa. A sociedade acha que sabe tudo sobre a vida desses indivíduos, mas na verdade não sabe quase nada. Até porque não há investigações qualitativas no cenário nacional, não há diagnóstico, não há uma preocupação histórica na produção de dados, no sentido de quantificar e qualificar essa população. Esse desconhecimento generalizado do senso comum, em parte, é consequência das instituições governamentais que pouco sabem do cotidiano em si da cidade. Basta olhar para o lado e ver, porque sabemos da existência dessas pessoas, mesmo que os dados não nos informem. Mas o fato é que se olha para o lado e simplesmente se ignora; há uma ignorância estratégica de não ver, não perceber. A ignorância se mobiliza através de uma estratégia no cotidiano das cidades.

IHU On-Line - Que tipo de políticas públicas precisariam ser pensadas para enfrentar essa situação? Que cenário vislumbra para essa população pós-pandemia?

Igor Rodrigues - As políticas públicas precisam ter ousadia, é preciso sair do lugar comum, porque temos demonstrado que ele não funciona. As políticas públicas históricas, que já têm um passado de amplo fracasso, são engodo para fazer de conta que algo realmente funciona. As políticas são impositivas, não partem da realidade; se não temos dados para falar de uma população, como vamos criar uma política pública? É preciso primeiro qualificar, quantificar, mapear, dizer qual é a voz das ruas, quais são as dificuldades, os dramas, o que vivenciam etc. E, a partir desse mapeamento, será possível criar uma política adequada aos anseios vivenciados e às reivindicações históricas dos movimentos sociais dessas populações – existem movimentos sociais nessas populações! É preciso muita ousadia e política pública de coragem. É preciso superar os meros modelos prontos, importados de outros países e de outras cidades. Temos condições de criar um tipo de pacto social para realmente minimizar e diminuir os efeitos da população em situação de rua, melhorar a qualidade de vida, fazer com que as instituições funcionem. A sociedade de modo geral não passa só pelas políticas públicas, pelo Estado; é preciso que a sociedade se mobilize em torno de um ideal que queremos.

Pós-pandemia, acredito que as políticas públicas vão ser repensadas, porque, de uma certa forma, a pandemia coloca em xeque as contradições que existem. Coloca em xeque a contradição que vai desde o hábito mais elementar, mais simples e básico, como escovar os dentes e lavar as mãos no cotidiano das ruas, e até mesmo a questão do acesso a benefícios, do cuidado à saúde, da dificuldade no tratamento de doenças crônicas. Por todas essas questões, a pandemia coloca em xeque e expõe as feridas de uma população ignorada, que agora está sendo vista pela maioria das pessoas em função da grande mobilização social que estamos vivendo. Pós-pandemia, as feridas vão continuar expostas até que o problema seja resolvido. De todo modo, as instituições se mobilizaram, muitas visualizaram as dificuldades e essa inflexão, e isso, de certa forma, é positivo.

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