07 Mai 2018
“É triste constatar que os milhões de brasileiros condenados a morar em condições piores do que se dá ao gado sejam ainda considerados “vagabundos” que se negam a trabalhar” escreve Juan Arias, jornalista, em artigo publicado por El País, 06-05-2018.
A tragédia anunciada do edifício Wilton Paes de Almeida, de 24 andares, ocupado por mais de uma centena de famílias e que caiu calcinado pelo fogo, no centro da rica São Paulo, oferece várias leituras e simbolismos. O desastre, que pode ser o primeiro de muitos, obriga o Estado e a sociedade a uma reflexão urgente, já que no Brasil 20 milhões de pessoas padecem de falta de moradia. Habitam ainda edifícios ou barracos desumanos, uma afronta à Constituição, que sanciona em seu artigo VI o direito de todos a viver sob um teto digno.
Calcula-se que no centro de São Paulo, a maior metrópole da América Latina, a mais rica e com maior número de milionários, quatro mil famílias vivem em 70 edifícios ocupados. No Brasil, moram em condições inseguras e indignas 1,2 milhão de pessoas. É duro constatar que esses milhares de brasileiros condenados a viver em condições às vezes pior do que a que os criadores de gado dão a seus animais são ainda considerados pela sociedade de consumo “vagabundos”, que se negam a trabalhar e que seriam cúmplices dos traficantes de drogas. Não. Esses milhões de famílias, sem um lar decente, fazem parte da caravana dos excluídos que preferiríamos não ver. Fazem parte da massa dos exilados, dos refugiados de guerras, dos novos párias da sociedade do bem-estar. São os judeus do século XXI.
Depois da queda do edifício Wilton Paes de Almeida, surgiram vozes que tentaram também criminalizar os movimentos de apoio aos sem-teto, como denunciou minha colega Carla Jiménez, sagaz jornalista e redatora-chefe da edição brasileira do El País. Mas à margem dessas tentativas de difamar o conjunto dos movimentos sociais, pessoas que conhecem bem o problema, inclusive algumas pertencentes a esses próprios grupos, reconhecem que a eles se associaram alguns cujo único propósito é aproveitar-se da frágil situação de tantas famílias para criar uma espécie de “indústria dos sem-teto”. Para uma minoria de irresponsáveis, a desgraça alheia se torna produto lucrativo, fazem negócio em troca de prover abrigo em um local que nenhum de nós, como bem destacou Guilherme Boulos, da Coordenadoria Nacional do MTST, “escolheria para viver”.
Além de quem quer transformar essas pessoas em objeto de lucro, muitos políticos os rebaixam ao valor de um voto. Aproximam-se dessas famílias em busca de um lugar digno para viver movidos pela cobiça de votos fáceis de comprar. Transformamos assim os pobres não só em pessoas que não merecem desfrutar de um mínimo de dignidade, no caso um teto para cobrir-se e um trabalho para se sustentar, mas em votos comprados com promessas que nunca serão cumpridas. Só assim se explicam alguns lapsos de políticos que, diante da tragédia dos sem-teto de São Paulo, confessaram que aqueles pobres não lhes pertenciam. Eram propriedade de outras organizações. Eram de outra fábrica sobre a qual não tinham responsabilidade. Não eram seus pobres.
Se é dolorosa a existência dessas caravanas de excluídos, fruto da cobiça de quem tem de sobra e das políticas do capitalismo que cria exclusão, não é menos grave transformá-los em um número, um voto nas urnas, comprado com as migalhas de vãs esperanças. Às vezes nos sentimos tentados a pensar que interessa a muitos políticos a perpetuidade da pobreza porque ela é a fonte de onde se tira proveito para eternizar-se no poder. Só assim se explicaria a cobiça na disputa pelos sem-abrigo e sem-trabalho, já que depois de despossuí-los de tudo aparecem dispostos a vender-se em troca de um sonho que nunca se realiza. E só assim se explicaria também a negligência dos governos para buscar soluções para uma situação tão degradante e para perseguir os que tentam se aproveitar dela.
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Sem-teto, os novos párias de nossa civilização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU